A casa de Sérgio Buarque de Holanda
Rua Buri, 35: a casa do historiador Sérgio Buarque de Holanda foi por mais de duas décadas um dos principais endereços culturais da cidade de São Paulo. Ali, história, memória e política se cruzaram em vários momentos.
Por Rafael Pereira da Silva
Aposentado desde 1969, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) não deixou de ter uma vida intelectual e social intensas. Quando não estava viajando, ele passava longos períodos em sua casa no bairro do Pacaembu, em São Paulo, ao lado da esposa, D. Maria Amélia (1910-2010) e na companhia dos filhos e netos. O casarão em estilo normando foi erguido em 1929 e adquirido pela família em 1957. O endereço era muito procurado por ex-alunos, pesquisadores, amigos próximos, que podiam passar sem avisar, amigos dos amigos, amigos dos filhos e jornalistas. A casa dos Buarque é lembrada pelos grandiosos encontros, dos quais figuravam nomes como Vinicius de Moraes, Paulo Vanzolini, Tom Jobim, Antonio Candido, Caio Prado Júnior, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, apenas para citar uns poucos. Há relatos de que houve ali festas incríveis que reuniam até 500 pessoas e com comércio ambulante na porta. Exageros à parte, além de espaço cultural, a Rua Buri, 35 também foi um reduto de resistência política durante a ditadura civil-militar (1964-1985).
As lembranças da casa
Muitas dessas histórias foram recordadas por amigos e registradas em documentos que contam um pouco da vida do anfitrião e da famosa casa. Luís Martins, por exemplo, se referia à hospitalidade dos Buarque de Holanda usando trocadilhos com os livros do autor: “A casa grande e hospitaleira – “raízes do Brasil” – o portão sempre aberto, a escadinha do jardim que dá uma porção de voltas – “caminhos e fronteiras” – a rede no terraço, enfim o salão cheio de livros, o anfitrião de chinelos, o cafezinho logo oferecido: “visão do Paraíso”! [1] A comida servida por lá também caía na graça dos frequentadores. O cardápio podia contar com Vatapá ou Bobó de Camarão, mas eram os doces que mais impressionavam. Fernando Sabino registrou na crônica “Um pouco de doçura” que, entre outros predicados, Maria Amélia tinha o de saber fazer doce de coco. Inspirado pelo amarelo “Van Gogh” do nectáreo, o escritor afirmava que “todo o brasileiro deveria ter o direito não apenas de saciar sua fome, mas também de receber como sobremesa o seu doce predileto desde menino” [2].
Quem também registrou sua passagem pelo famoso endereço foi o professor e crítico literário Antonio Arnoni Prado. Lembra que em outubro de 1976 chegou à residência munido de anotações, roteiro de perguntas, fichas de informações variadas e outros apetrechos. Depois de ser recebido por “Memélia” e iniciado a conversa, Sérgio disparou: – “Não escreva nada, rapaz, não vale a pena escrever nada agora, eu ando muito esquecido de tudo…Vamos conversando e eu vou falando do que lembrar” [3].
Diversas fotografias dessa época nos levam a imaginar como seriam as tardes de conversas com Sérgio Buarque em sua varanda, regadas à uísque e cigarros, sua afetividade ao lado dos netos, a alegria à mesa em dias de aniversários. Do lado de dentro do casarão subimos as escadas de madeira escura e chegamos ao caótico escritório do historiador. Atentos podemos ver prateleiras repletas de livros, uns valiosos, outros nem tanto, inúmeros papéis e rascunhos de anotações espalhados, poltrona para leituras, a máquina de escrever. A respeito do ambiente, o jornalista Jorge Andrade afirma que “esparramados entre os livros – como num bric-à-brac –,” encontramos “vidros de colírio Moura Brasil, envelopes de Engov, lápis, adesivos, cinzeiros, um vidro de Agarol, Sonrisal, fósforos, latas de leite em pó, garrafas de uísque, remédios para dormir e outros para o manter acordado” [4]. Era ali que Sérgio vivia submerso no universo de seus livros, os que lia e os que escrevia, mas sempre deixando a porta do escritório aberta para ouvir os ruídos da casa e as eventuais fofocas.
A casa também se transformou em set para a gravação do filme Certas Palavras (1980), dirigido por Maurício Berú sobre a trajetória musical de Chico, o mais ilustre dos sete filhos do casal. Em fotos dos bastidores o historiador aparece sentado à mesa saboreando um uísque ao lado de Chico e de Vinicius de Moraes. Em uma das sequências do filme, enquanto Vinicius de Moraes reconstrói a história da canção Samba de Orly, vemos em rápidas viradas de câmera Sérgio Buarque em movimento, um dos seus poucos registros em vídeo. Em Raízes do Brasil, uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, de 2002, a casa também recebeu uma dimensão importante. Foi de lá que o cineasta Nelson Pereira dos Santos deu voz às histórias e “causos” contados por parentes e amigos da família.
Um ambiente político
Além da memória das animadas festas ou dos simples encontros, a Rua Buri, 35 foi um endereço de resistência. Durante a ditadura civil-militar (1964-1985), por exemplo, a casa abrigou perseguidos políticos e teve o telefone grampeado, motivo pelo qual se criaram códigos de comunicação. “Fulano no hospital”, lembra Maria Amélia, significava que alguém tinha sido preso [5]. No governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), Sérgio Buarque recebeu em sua casa um grupo de jornalistas formado por Moacir Amâncio, Maria José, Miguel Fontoura e Sérgio Gomes. Juntos estavam ainda os amigos de longa data, Tarso de Castro e Paulo Duarte. O que eles não podiam prever é que uma simples conversa entre amigos pudesse gerar um processo que foi parar nas mãos do Ministro da Justiça, Armando Falcão (1919-2010).
Durante o bate-papo, Sérgio interrompe as falas a fim de encher os copos: “Preciso fazer uma coisinha, passa essa bengala aí. A bengala é meu ‘pai nosso de cada dia’ nos dias de hoje! Olha, mas tem muito uísque aqui embaixo ainda? Lá em cima tem à beça, mas não posso subir. Ontem, tinha umas meninas aí, tomaram muito uísque, olha a garrafa”. Tarso então pega uma garrafa debaixo da mesa e Sérgio finaliza: “Eu tenho medo que acabe, né?”
A conversa se transformou em uma memória de geração na medida em que os protagonistas dividiram suas lembranças e experiências, desde o modernismo até as suas críticas à ditadura e aos seus representantes. Também esboçaram um porvir nada promissor para o país. Por vezes figuras do governo foram citadas em tom de galhofa, o que gerou mal-estar em segmentos do aparelho de censura. A resposta do regime aos “ataques” verbais veio na forma de um processo [6] encaminhado ao Ministro da Justiça e sugerindo o enquadramento de Sérgio Buarque e Paulo Duarte no artigo 36 da Lei de Segurança Nacional.
A entrevista foi publicada no Folhetim do jornal Folha de São Paulo, em 26 de junho de 1977. Lida pela Divisão de Segurança e Informações e considerada ofensiva, uma cópia do material foi encaminhada no dia 12 do mês seguinte à José Carlos da Silva de Meira Mattos, responsável pela assessoria de assuntos sigilosos do Gabinete do Ministro da Justiça. O tom da acusação dizia que o posicionamento dos dois entrevistados era “nitidamente contestatório” ao governo, não sendo poupados ataques, “que culminam com ofensas diretas ao Titular da Pasta da Justiça e genéricas a deputados, senadores e ao Sr. Presidente da República”. Assim, no entender da Divisão de Informação, “a aplicação do art. 36 da Lei de Segurança Nacional era plenamente cabível no caso”.
A Lei de Segurança que vigorava naquela época era regida pelo Decreto-Lei 898, de 29 de setembro de 1969. Se fossem “enquadrados e condenados”, Sérgio Buarque e Paulo Duarte deveriam cumprir pena de 2 a 6 anos de reclusão. Embora hoje pareça absurdo, não podemos esquecer que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975, após comparecer para “prestar esclarecimentos”. Caso semelhante ao do metalúrgico Manoel Fiel Filho, também assassinado no mesmo DOI-CODI, em janeiro de 1976.
Esse documento é importante porque nos oferece pistas para pensar a forma como a entrevista foi lida pelo regime. Anexa ao processo, verificamos que diversas passagens foram sublinhadas e circuladas. O problema na ótica dos censores não estava necessariamente nas críticas ao país; antes, o que lhes despertava a ira eram o “deboche” e a “galhofa” dirigidas aos seus superiores. Um exemplo está na fala de Paulo Duarte, que se referia da seguinte forma ao ministro: “Você olha a cara dele, do Falcão, aquela cara cavalar. É uma cara cavalar a do Falcão, né? Mas não é o único cavalar que existe. Há cavalares aí por toda a parte, né?”.
Após uma primeira triagem o processo chegou às mãos do assessor de assuntos sigilosos, José Carlos Silva de Meira Mattos, que redigiu um outro parecer, encaminhado ao chefe de gabinete do ministro. No documento ele amenizava as acusações anteriores e responsabilizava os editores do jornal pelo descuido na publicação da entrevista, cabendo “ao Sr. Ministro julgar a extensão da ofensa sofrida e a conveniência de qualquer medida com intuito de repará-la”.
No dia 28 de julho o caso foi arquivado. É bem possível que tenham concluído que o bate-papo descontraído não traria grandes prejuízos à imagem já desgastada do regime, que àquela altura deveria estar mais preocupado com a perda de espaço no Congresso Nacional para o MDB, com a repercussão das mortes de Herzog e Fiel Filho, com a pressão dos movimentos sociais, a crise do petróleo e a carestia. Sérgio Buarque possivelmente nunca soube desse processo, por isso mesmo continuou a receber os amigos em casa e a debater questões políticas do país até a sua morte em 24 de abril de 1982.
E hoje?
Após a morte de Sérgio Buarque a casa passou por um longo período de abandono. Em 1992 surgiu a ideia de transformá-la em bem público. A proposta inicial previa um centro de pesquisas voltado para professores da rede pública. Em 2002, centenário de nascimento de Sérgio, o casarão foi declarado de utilidade pública pelo município, prevendo a construção de uma discoteca. Desde então o local foi alvo de um demorado processo judicial envolvendo a família e sua ex-funcionária, Emérita Carbone. Em 2010 Emérita perdeu o processo por usucapião e a família repassou a casa à prefeitura mediante indenização. Hoje ela abriga o Memorial do Ensino Municipal de São Paulo.
Rafael Pereira da Silva – Doutor em História pela Unicamp, com período sanduíche na Università di Roma, “La Sapienza”, e Mestre em História Cultural pela UFSC. Recentemente lecionou na Universidade de Brasília (UnB) como professor contratado e atuou como colaborador na Olimpíada Nacional em História do Brasil, da Unicamp. No momento desenvolve pesquisa de pós-doutorado (FAP-DF/UnB) sobre a trajetória e a construção do arquivo pessoal da jornalista de origem belga, Yvonne Silberfeld (1911-1981). Sua tese, orientada pelo Prof. Dr. Edgar de Decca deu origem ao livro “A Morte do Homem Cordial: trajetória e memória na invenção de um personagem (Sérgio Buarque de Holanda, 1902-1982) ”.
Notas
[1] MARTNS, Luís. Crônica, O Estado de São Paulo, 25/04/1969. Apud: WITTER, José Sebastião. Introdução. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense: Secretaria do Estado da Cultura, 1986. p. 21.
[2] SABINO, Fernando. Um pouco de doçura. In: _____. No fim dá certo.8.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
[3] PRADO, Antônio Arnoni. Sérgio, Mário e Klaxon: um encontro com Lima Barreto. In: _____. Trincheira, palco e letras: crítica, literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 257-258.
[4] ANDRADE, Jorge. 42 anos a.C: um Buarque antes de Chico, o perfil de um dos maiores historiadores brasileiros. Realidade, nº 75. São Paulo, 1972. Apud: WEGNER, Robert. Latas de leite-em-pó e garrafas de uísque: um modernista na universidade. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas/SP; Rio de Janeiro: EdUnicamp/EdUerj, 2008. p. 495.
[5] RENATO, Cláudio. Buarque de Hollanda. Os meninos da Rua Buri, Segundo Capítulo. Retirado do sítio: http://passavantecr.blogspot.com.br/2009/11/os-buarques-de-hollanda-nos-tempos-da.html. Acessado em 7 de maio de 2017 às 23h41min.
[6] Processo GAB no 100.430, 15/07/1977, Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Justiça. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
Sugestões Bibliográficas:
CARVALHO, Raphael Guilherme de. A biografia entre o cinema e a história: modos tradicionais de narrar na memória de Sérgio Buarque de Holanda. Revista Ágora (Vitória), v. 7, p. 1-20, 2011
MONTEIRO, Pedro Meira; EUGENIO, João Kennedy. Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas. Campinas/SP: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: EdUerj, 2008.
NOGUEIRA, Arlinda; PACHECO, Felipe de Moura; PLINIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Erika.(orgs). Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988.
SILVA, Rafael Pereira da. A morte do homem cordial: trajetória e memória na invenção de um personagem (Sérgio Buarque de Holanda, 1902-1982). Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2016.
_______. Um espaço de recordação: o Fundo Sérgio Buarque de Holanda na Unicamp. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, vol.12, n.2, p. 27-45, julho-dezembro, 2016.
______. Conversas com Sérgio Buarque de Holanda. História da Historiografia, v. 8, p. 232- 237, abril, 2012.
Filmes:
Certas Palavras, de Maurício Berú (1980).
Raízes do Brasil: uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda, de Nelson Pereira dos Santos (2002).
Sítios:
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