Geraldo Magela
O ex-chanceler Celso Amorim
publicou importante artigo neste fim de semana, na Carta Capital, em que
retrata o governo Michel Temer como uma perigosa ameaça à soberania nacional.
"A soberania é o que define uma nação como tal, do ponto de vista jurídico
e político. Se abrirmos mão de parcelas importantes desse atributo essencial
dos povos independentes, estaremos nos condenando a um papel de ator secundário
e subordinado na cena internacional, com repercussões no bem-estar da nossa
população e na segurança do Brasil como Nação".
Confira, abaixo, a íntegra:
Não é só no terreno das
medidas internas, como Previdência Social, relações trabalhistas e
investimentos sociais, que a desmontagem do que resta de um projeto de
desenvolvimento autônomo e inclusivo do Brasil está sendo levada a cabo por um
governo que carece da legitimidade que só o voto do povo pode conferir.
Dois fatos recentemente
noticiados, sem muita análise, têm o potencial de afetar de maneira
significativa a visão que até hoje prevaleceu sobre a inserção do Brasil no
contexto global e regional. Comecemos pelo mais simples. Segundo relatos,
sempre esparsos e desprovidos de detalhes, estariam programados, ou já em
curso, exercícios militares envolvendo alguns de nossos vizinhos, além de
Panamá e Estados Unidos.
O objetivo dessas manobras
estaria definido por seu caráter humanitário, mas, segundo comentários não
desmentidos, elas poderiam também servir a questões ligadas à segurança, como o
combate ao narcotráfico. O parceiro norte-americano do Brasil, nessas
operações, seria o Comando Sul do Pentágono, uma espécie de quartel-general
avançado para questões latino-americanas e caribenhas, por meio do qual
Washington procura garantir sua hegemonia na região.
Cabem, a propósito, duas ou
três observações, que faço com certa cautela, até porque as informações a
respeito desses exercícios não são facilmente disponíveis. Um primeiro
comentário refere-se justamente à relativa falta de transparência que cerca o
tema, diferentemente, por exemplo, da ampla divulgação dada à chamada Operação
Ágata, realizada em nossas fronteiras durante o governo Dilma Rousseff.
Na época, o esforço de
transparência visava também, mas não exclusivamente, tranquilizar os países
fronteiriços sobre os objetivos da operação e dar-lhes garantia de que sua
soberania não seria violada. Outro ponto refere-se ao objetivo dos exercícios e
o que eles implicarão na prática. A presença de forças extrarregionais,
entendidas como não sul-americanas em exercícios militares sempre foi vista com
bem fundamentada cautela, se não mesmo desconfiança, por nossas Forças Armadas.
A presença de observadores, mesmo em uma operação definida como humanitária, dá
acesso a dados e informações fundamentais à nossa segurança (e à dos nossos
vizinhos).
O Brasil, em diversos
governos, sempre foi muito prudente nesse particular. Recordo-me, a propósito,
de um episódio ocorrido no governo Itamar Franco, quando um cônsul dos Estados
Unidos pretendeu acompanhar a vistoria do terreno em que se deu a matança de
índios ianomâmis. Na ocasião, o diplomata foi retirado do helicóptero em que
embarcou juntamente com autoridades brasileiras, por orientação expressa do
Itamaraty.
Talvez ainda mais grave, o
fato de essas manobras ocorrerem em um momento especialmente delicado que vivem
vários países da América do Sul alimenta suspeitas e desconfianças que
procuramos, ao longo dos anos, superar. A criação do Conselho de Defesa
Sul-Americano, no âmbito da UNASUL, contribuiu decisivamente para melhorar a
atmosfera das relações entre países da região de diferentes matizes
ideológicos, afastando a ameaça de conflitos que pareciam iminentes.
Uma fissura entre países
descritos como “bolivarianos” e os que se perfilam (em tese) a um suposto
padrão democrático liberal não interessa ao Brasil, que deve justamente zelar
pela concórdia e a unidade na América do Sul, respeitando o princípio essencial
do pluralismo. Ao que tudo indica, o esforço em acentuar essa personalidade
sul-americana (consubstanciado, entre outras iniciativas, na criação da Escola
Sul-americana de Defesa – ESUDE) está cedendo lugar a cediças concepções de
“Segurança Hemisférica”, gestadas durante a Guerra Fria.
O outro tema que gera
preocupação é o da apressada adesão à OCDE, o clube de países ricos. O Brasil,
como outros emergentes, há anos tem acordos de parceria com aquela organização,
mas sempre evitou tornar-se membro pleno. Há razões econômicas e de natureza
geopolítica nessa postura. No mesmo dia em que escrevo este artigo, um jornal
especializado salienta que o Brasil terá de assumir novas obrigações em matéria
de liberalização econômica, mesmo antes de ser admitido como integrante pleno.
Entre os que defendem, por
boa-fé ou dever de ofício, esse curso de ação, argumenta-se que o Brasil
pratica muitas das normas preconizadas pela OCDE. A diferença é que, hoje, elas
podem ser revistas e modificadas por um governo que venha a ser legitimamente
eleito. No caso de adesão à organização, tais normas se transformam em
obrigação internacional, cujo descumprimento implicaria censura ou, no limite,
algum tipo de sanção.
Mas o prejuízo maior será de
natureza geopolítica. Nos últimos anos, de forma explicita e, há mais tempo, de
modo intuitivo, o Brasil tem se pautado pela visão de que um mundo multipolar,
sem hegemonias ou consensos fabricados nas capitais dos países desenvolvidos,
era o que mais nos convinha.
A tendência à
multipolaridade, no campo econômico, foi consideravelmente fortalecida pelo
surgimento dos BRICS. Foi a ação concertada dessas grandes economias
emergentes, no fórum do G-20, na esteira da crise financeira do fim da primeira
década deste século, que se possibilitou uma reforma, ainda que modesta, do
sistema de cotas do FMI e do Banco Mundial, reforma que só foi implementada
quando as cinco economias emergentes decidiram criar suas próprias instituições
financeiras.
A soberania é o que define
uma nação como tal, do ponto de vista jurídico e político. Se abrirmos mão de
parcelas importantes desse atributo essencial dos povos independentes,
estaremos nos condenando a um papel de ator secundário e subordinado na cena
internacional, com repercussões no bem-estar da nossa população e na segurança
do Brasil como Nação.
* Celso Amorim foi ministro
das Relações Exteriores nos governos Itamar e Lula e ministro da Defesa no
primeiro mandato de Dilma Rousseff.
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