Este ano, ele recebeu a medalha de ouro do Royal Institute of British Architects. Em 2016, levou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, pelo conjunto da obra. Em 2006, já havia recebido o Pritzker, o mais importante prêmio da arquitetura mundial, algo que só outro brasileiro alcançara: Oscar Niemeyer.
Concreto dançante, vidro e vertiginosos espaços abertos são as sentenças da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, que completará 90 anos em 2018. Sua notável lucidez e firmeza de propósitos faz dele um homem leve, que desliza como um sensei de artes marciais por entre as grandes pranchetas de seu escritório de 30 anos na região da Praça da República, entre boates de travestis e clubes de strip-tease.
No mundo hipermercantilizado da arquitetura, ele representa uma espécie de antídoto contra a imperiosidade do consumismo e do corporativismo. Projetou alguns dos edifícios mais consistentes da cidade, como o Museu Brasileiro de Escultura, a Pinacoteca do Estado, o Centro Cultural Fiesp e o ginásio do Club Athletico Paulistano.
No dia 19, inaugura-se o Sesc 24 de Maio, projeto que o arquiteto definiu como um “navio-tarefa”, reapropriando-se do antigo prédio da loja de departamentos Mesbla. Ele falou a CartaCapital.
CartaCapital: Quando o senhor ganhou o Leão de Ouro de Veneza, no ano passado, o arquiteto que o premiou, Alejandro Aravena, disse que sua obra sobreviveu ao teste do tempo, tanto estilística quanto fisicamente. E que isso se devia à sua integridade ideológica.
Paulo Mendes da Rocha: Você sabe, eu não sei falar muito da minha obra, porque eu tenho a impressão de que a questão é de interpretação do desejo das pessoas, não do arquiteto, compreende? Você se volta para tentar satisfazer o desejo das pessoas.
O que já mostra que a questão não é de caráter estilístico. Porque ninguém deseja um estilo. Você deseja o desfrute da coisa. Então, se alguém perguntasse – o que é absurdo, porque são infinitas as razões – como fazer um programa de televisão para provocar uma das respostas intrigantes da questão “qual é a razão da arquitetura?”, eu gosto de dizer que é amparar justamente a imprevisibilidade da vida. É um pretexto, não é um programa definitivo que obrigue as pessoas a se comportarem.
Você não pode ir a um restaurante para praticar patinação. Vai para comer. Mas comer o quê? Qual o modo que você se serve? Tem uma lista de coisas, o menu etc. Essa variação toda, esse gozo da vida, uma visão erótica da vida, é que é o objeto da arquitetura. Mas não que eu queira dizer verdades, é pôr para discutir. É que, com o andamento, como é fatal que haja um andamento da consciência, da nossa formação humana...
CC: Há uma dialética.
PMR: Nós não nascemos humanos, nos tornamos humanos. É a macacada que vem vindo aí, afinal de contas. Portanto, as coisas mudam, não são sempre as mesmas. E o interessante é esse desfrute. A arquitetura é feita... O programa é um pretexto para que as coisas se desencadeiem e, eventualmente, se transformem, através do próprio uso. Que é o que acontece na vida da gente. Outro dia eu estava me divertindo com a visão que está meio na moda, que tem muito barbado atualmente. Não sei se você concorda.
CC: É, voltou a ter.
PMR: Jovens até. E, antigamente, a barba era imagem de sabedoria, de maturidade. Os grandes barbados da história a gente sabe quem são. Você ver na rua um barbado de bermuda e sandália é meio inesperado, é muito engraçado. É o que se vê hoje. O cara deixa crescer uma barba de sábio, de maduro, e se veste de moleque, digamos. As coisas mudam.
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As relações masculino e feminino hoje estão completamente mudadas. Uma questão de consciência sobre a superpopulação, o planeta não aguenta. Então, as relações masculino e feminino passam a ter outro sentido, a reprodução da espécie já é posta em discussão etc. Isso muda completamente o mundo. Muda a política, mudam as relações dos homens entre si, muda a vida da cidade etc.
A arquitetura saiu do interesse do edifício como um fato isolado e deteve-se na questão da cidade. O objeto da arquitetura, hoje, é a cidade, a realização da cidade. E aí entram conflitos incríveis, entre razões de caráter utópico, do que seja a cidade, e as razões do mercado, que destroem tudo, passam por cima de tudo, necessidades e desejos de modo concomitante.
CC: Então, o arquiteto seria um intérprete de desejos, em última instância?
PMR: É o construtor dos desejos, no sentido de abrigar aquilo. Mas esse desejo, por sua vez, pode ficar em aberto. É essa a graça da arquitetura. O desejo, inclusive, faz com que o homem seja capaz de realizar seus desejos de novo, naquele ambiente construído, antigo. Aí aparece, talvez, o objeto da nossa conversa, que é a inauguração do Sesc 24 de Maio, como exemplo.
A transformação do uso, a transformação da mesma coisa, com outro uso. Você não vai demolir tudo. A construção exige – cada vez mais, mas sempre exigiu – complexidades tão delicadas do conhecimento, como fundações, distribuição de carga, sistemas estruturais. Aquilo que a técnica mostra que evoluiu. Hoje você pode fazer uma estrutura metálica, pode construir com concreto, o próprio concreto armado, depois armado e protendido. São coisas que evoluíram no tempo. Uma vez realizado aquele edifício, suponha, ele pode ser transformado por dentro. É o que se vê.
CC: É o caso da Pinacoteca.
PMR: O caso da Pinacoteca e tantos outros bastante notáveis da cidade de São Paulo. Veja você onde está instalada a Prefeitura hoje – que não é pouca coisa, a administração municipal de 12 milhões de habitantes – é o antigo prédio Matarazzo. É uma ocupação.
O próprio povo, de certo modo revolucionário, sabendo de um prédio abandonado, vai lá e ocupa para habitação, principalmente, que é o que falta à classe menos favorecida. E são as melhores habitações, porque, geralmente, esses prédios abandonados estão na porta do metrô. E a grande virtude da casa é o endereço. Não adianta nada o povo querer oferecer uma casinha quase casa de cachorro no arrabalde, é um desastre para a população que trabalha.
CC: Hoje uma palavra muito em moda nessa tendência é “requalificação”. “Requalificação dos centros”.
PMR: Bem, aí se usam as palavras às vezes de maneira até grotesca, “requalificação”. Não tem requalificação, a qualidade já é suprema, é a capital. É o lugar onde etc. etc. Eu não gosto da palavra “requalificação”.
A qualidade de São Paulo, do Centro da cidade, está lá definitivamente. A cidade é de tal maneira virtuosa – você pode dormir na rua – que quem é mal preparado, que não se preocupa com essa questão histórica, dessa fantástica realização, transformação da natureza em realmente habitável, a cidade, abandona a cidade. Isso causa certo prejuízo aparente.
Mas talvez seja a grande virtude, porque justamente aqueles que não tinham direito à cidade vão começar a ocupá-la e, quem sabe, vai surgir a verdadeira cidade, livre para todos – que não era tanto assim. Se você deitar na rua e dormir, ninguém te incomoda. Se você deitar e dormir em um bairro desses chamados “estritamente residenciais”, aparecem quatro jagunços armados para te expulsar, não é verdade?
CC: Li o senhor dizendo que a palavra sustentabilidade é um modismo.
PMR: É, porque não se trata de sustentar, mas de transformar de modo adequado. Você pode não saber exatamente como fazer, mas tem a obrigação de saber exatamente aquilo que, entretanto, não deve fazer. Como é o caso do transporte individual com motor a explosão.
Só pelo nome do motor já era para pôr um pé atrás. Uma das caricaturas para agora reduzir a questão... Uma conversa pública, um instrumento de convicção que é muito bom, que é a ironia e o humor, é realçar a estupidez do automóvel. Um carro pesa 700, 800 quilos e transporta um de nós, que pesa 60 quilos.
Então, você transporta... uma lataria, todo esse panegírico de extração de petróleo, transformar matéria sólida pesante de todo o sistema da mecânica celeste, de conservação da energia pela matéria, tudo isso, você transforma em matéria volátil para transportar lataria de lá para cá, de cá para lá.
A visão de transporte público, a concentração da população para a eficiência do transporte público, verticalização, tudo isso são engenhosidades que não podem ser vistas como balela para pôr mercadoria para vender. Temos de fazer a crítica da exacerbação da ideia de mercado, que exige inclusive e desfruta da propaganda.
CC: As transformações tecnológicas operam grandes mudanças nas profissões humanas e também na ocupação física das coisas. Isso é algo que o senhor já viu antes, ou não?
PMR: Eu tenho a impressão de que sempre foi assim. O que você tem de ver, porque é impossível deixar de ver, é que houve uma aceleração muito forte, por razão da eficiência da comunicação etc. Afinal de contas, nós somos americanos. Isso aqui foi descoberto há 400 anos, não é nada. Portanto, não se sabia se de fato existiam terras. Se o planeta é que girava em torno do Sol ou se o Sol... Discutia-se isso há 400 anos, 400 anos não é nada, não é verdade? Só de Niemeyer tem cem anos.
CC: E Paulo Mendes da Rocha, no ano que vem, 90.
PMR: Já não vai ser nada. Então, você vê, a velocidade com que o conhecimento avança. A revelação daquilo que eram grandes mistérios do universo... Deixam de ser. A constituição da matéria, descontinuidade, molécula, átomo, neutrinos etc., coisas que você não sabia. E, sabendo, um avisando o outro, o conhecimento avança muito. O que é importante na arquitetura é a política da cidade.
CC: Quando Aravena fala da sua integridade ideológica, ele pode estar errado? O senhor pode ter tido dúvidas em relação às suas convicções?
PMR: Toda integridade ideológica é feita, inclusive, de uma justa dúvida. Essa é uma visão dialética. A ideologia dogmática não nos interessa, é o homem-bomba. Isso aí não faz sentido nenhum. Portanto, eu acho que você discutir aquilo que pensa envolve não fazer afirmações categóricas nunca, mas ir experimentando com cuidado.
CC: Por outro lado, parece unanimidade mundial que nós estamos vivendo um retrocesso político.
PMR: No momento, parece que sim. É muito desanimador você ver que a Europa não conseguiu resolver o infame problema da última guerra horrorosa que houve lá. Até hoje a Europa não conseguir esse ideal da União Europeia é muito desanimador. Mas você também poderia dizer, particularmente, enquanto americano, brasileiro, que eles estão pagando o preço, não como punição, como experiência, da política colonial. Voltou-se contra eles mesmos.
CC: E o Brasil, a inserção dele, que é sempre uma promessa? Entra no mundo, e aí damos dois passos para trás?
PMR: Já foi tanto dito, e é verdade: essa bateção no peito de “nós somos brasileiros”, esse elogio dessa brasilidadezinha frágil do samba é uma besteira que não tem tamanho. Esse lado lírico e poético o homem tem em todas as suas atitudes, não precisa ficar fazendo alarde. É difícil um país como o Brasil. Só o que temos aqui de convivência de gente do mundo inteiro... Uma cidade como São Paulo, a influência italiana, além da portuguesa, lituanos, árabes, japoneses. Isso pressupõe uma riqueza potencial, mas muito atrasada ainda.