Política
Brasil contraditório
As caravanas, de Chico e Lula
por Guilherme Santos Mello — publicado 31/08/2017 12h24
O país vem sendo sacudido de cima a baixo por duas caravanas há muito aguardadas, o novo álbum de Chico e a viagem de Lula pelo Nordeste
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Buarque poderia ser um grande músico erudito, mas aí não seria Chico; Luiz Inácio poderia ser um grande líder somente da esquerda, mas aí não seria Lula
Nos últimos dias, o Brasil vem sendo sacudido de cima a baixo por duas caravanas há muito aguardadas. A primeira, uma caravana musical/artística de Chico Buarque, que após seis anos lança seu novo álbum, recheado das tradições e inovações que marcam a carreira daquele que talvez seja o maior artista brasileiro vivo. Nesta caravana, passeamos pelo Brasil atual tão tristemente atrasado, com temas que versam sobre o preconceito, a intolerância, o futebol e a homossexualidade. Os ritmos mais variados se misturam e se sucedem, servindo como base para um lirismo rico e recheado de referências, contrapondo-se à música puramente comercial que domina as rádios brasileiras e se impõe sobre os ouvintes.
A segunda, uma caravana político/popular de Lula da Silva, que após sete anos fora da Presidência, ainda é lembrado por enormes parcelas da população brasileira como a maior liderança viva do Brasil. Nesta caravana, passeamos pelo Brasil profundo, de povo humilde e pobre, cujo tema mais importante é o emprego e a renda, perdidos em meio à maior crise econômica da história do Brasil. As cidades se misturam e se sucedem, servindo como cenário para a passagem de Lula, abraçado pelo povo e munido de um discurso recheado de esperança e orgulho próprio, contrapondo-se aos retrocessos e vergonhas alheias impostos pelo atual governo.
Ambas as caravanas levantaram muitas controvérsias, como era de se esperar. A primeira caravana polemizou logo na música de abertura do álbum, intitulada “Tua cantiga”. A canção foi repudiada por detratores e até mesmo alguns adoradores de Francisco, com o debate girando em torno de um refrão que diz que o personagem poderia “abandonar mulher e filhos”, caso a amante assim o desejasse. Curiosamente, assim como a obra do autor, os debates sobre o refrão remetem ao passado, quando o matrimônio era visto como algo sagrado e indissolúvel, assim como ao presente, quando a preocupação com o feminismo e o compartilhamento das responsabilidades assume protagonismo. Aqueles que chamam Chico (ou seu “eu lírico”) de machista parecem misturar esses dois elementos, tradição e modernidade, defendendo um conceito ultrapassado de família e matrimônio para reforçar o papel da mulher na sociedade moderna.
Na segunda caravana, a polêmica também vai além dos tradicionais detratores de Lula. Mesmo alguns apoiadores de Luiz Inácio questionam sua maleabilidade, sua capacidade de unir políticos de vários matizes ideológicos, alguns dos quais constam na lista de adversários do campo progressista. Curiosamente, foi exatamente essa capacidade de negociar e conciliar que tornaram Lula o fenômeno político de maior sucesso na história recente do Brasil (assim como Vargas antes dele).
Aqueles que o chamam de incoerente e o culpam pelas mazelas políticas do país parecem misturar desejo com realidade, supondo uma hegemonia política que o campo da esquerdanunca construiu. Ademais, se esquecem de que na democracia, tirando raros casos, a conciliação é a regra e os acordos políticos são a forma de construir maiorias, fundamentais para promover transformações no país.
Com pouco mais de um ano de diferença na idade, Chico e Lula são irmãos gêmeos, nascidos no mesmo país, mas em realidades absolutamente diversas. O primeiro, filho da elite intelectual, se fez artista popular cheio de erudição, carregando a tradição e a modernidade em sua obra para produzir o que de melhor há na música brasileira; o segundo, filho do Brasil pobre e profundo, se fez líder político popular, carregando o Brasil atrasado e moderno em suas alianças e governos para produzir um dos melhores governos da história do Brasil. “Gênios da raça”, carregam consigo as contradições de um país que não foi e que ainda poderá ser, mas que para isso deverá ser construído por seu povo, seus artistas e seus líderes políticos.
Aqueles que expressam suas inquietações com a convivência de pares de opostos, afirmando que tirariam o brilho da pureza das ideias e ideais, parecem incapazes de enxergar na obra de ambos as contradições inerentes aos fenômenos complexos. Falham em compreender a verdadeira natureza desses personagens: eles são brasileiros, filhos de um país cindido, complexo, heterogêneo e subdesenvolvido. Buarque poderia ser um grande músico erudito, mas aí não seria Chico; Luiz Inácio poderia ser um grande líder somente da esquerda, mas aí não seria Lula. Suas contradições são as contradições do Brasil, onde o moderno e atrasado convivem diuturnamente, entre harmonia e conflito. Para superá-las não é possível simplesmente negá-las, recusá-las como inaceitáveis, senão trabalhar dentro da realidade que nos foi imposta para construir um novo Brasil onde Chicos e Lulas não serão nem execrados por alguns, tampouco absolutamente necessários para todos. Por hora, precisamos demais desses dois brasileiros, irmãos gêmeos de um país esfacelado que ainda é capaz de sonhar na poesia de Chico e no discurso de Lula.
*Guilherme Santos Mello é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon-Unicamp).
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