Uma “escola sem partido” é a perversão dos nossos filhos
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Uma “escola sem partido” é a perversão dos nossos filhos
Todo sistema de educação orientado à preservação acrítica da ordem estabelecida a todo custo só pode ser compatívelcom os mais pervertidos ideais e valores educacionaisIstván Mészáros
“As escolas são formas sociais que ampliam as capacidades humanas”, nos atenta a isso os pedagogos Henry A. Giroux e Roger Simon. Nelas devem ser realizadas “as transações simbólicas e materiais do cotidiano que fornecem a base para se repensar a forma como as pessoas dão sentido e substância ética as suas experiências”.[1] O objetivo do projeto “Escola sem Partido” é nos distanciar ainda mais desse caráter ideal da escola.
Parece que estamos presenciando um clássico dos anos 80 produzido pelo cinema hollywoodiano. Essas reformas no currículo da educação foram um debate nos anos 70 e 80 nos EUA. Michael W. Apple destacava o interesse dos conservadores em convencer a todos que se as escolas fossem mais rigidamente controladas pelas indústrias, a deteriorização das cidades, o desemprego e o aproveitamento escolar de péssima qualidade não existiriam.[2]
O autor estadunidense também atenta para o crescimento da Nova Direita nos EUA. Esse grupo queria que a educação aumentasse a competitividade internacional, o lucro e a disciplina como auxiliadores dos negócios, o “público” como ruim e o “privado” como algo bom. São neoconservadores que desejam um Estado forte nas questões de transmissão de valores e conhecimento. São neoliberais por dar grande ênfase ao mercado. O que funde essas duas ideologias aparentemente contraditórias é o fato de que a “liberdade” econômica exige maior controle social. No fim, a escola deve estimular a criatividade, de modo que prevaleçam os interesses pessoais e competitivos. Todos podem escalar o Monte Everest, mas é preciso ser um bom alpinista e ter altos recursos financeiros para bancar a escalada.
Itaguaí: educação e capital não combinam
A classe social dominante detém os meios de produção culturais para disseminar a sua visão de mundo transformando-a em absoluta. Os trabalhadores recebem uma educação que os prepara para o esforço físico e atividades conformistas. Assim, o sistema único de avaliação torna-se extremamente útil para o mercado, pois o Estado irá redistribuir o interesse deste em cada localidade. Não são os interesses locais que importam para o mercado, pelo contrário, as contradições e culturas locais devem ser substituídas pelos problemas que o mercado irá trazer.
Exemplo desse fenômeno foi o que aconteceu no município de Itaguaí no Rio de Janeiro. Houve um investimento na educação com construção de escolas, contratação de novos professores e outros profissionais da educação. Tudo para atender o crescimento do porto local. Empresas vinculadas ao empresário Eike Batista fizeram uma revitalização no centro do município. Inclusive, o Arco Metropolitano tinha um grande interesse em melhorar o trânsito e facilitar o escoamento de mercadorias a partir do Porto para outros pontos da Cidade. Tudo isso exigia uma mão de obra com um mínimo de conhecimento para a produção. O foco tornou-se a expansão do acesso à educação.
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Mas com a crise econômica que se instalou no Rio, o governo ameaça fechar escolas, retrair o acesso a educação para Jovens e Adultos e os profissionais da educação estão perdendo os direitos conquistados. Com a crise do mercado, não há mais necessidade de formar cidadãos produtivos, portanto, o foco passou a ser a contração das vagas à educação. O cenário poderia ser ainda pior se não fosse a mobilização dos trabalhadores da área e da população local que não querem perder o acesso à educação que, diga-se de passagem, é uma obrigação do Estado fornecê-la.
Infelizmente a aprendizagem de hoje não serve para a autoemancipação da humanidade, mas para a concretização dos objetivos do capital. Distanciamo-nos da época de Paracelso. Até os projetos iluministas de Kant e de Schiller foram transformados em meras utopias educacionais pela consolidação do capitalismo.
István Mészáros propõe uma “contrainternalização”, isto é, uma transformação em relação à internalização da concepção de mundo historicamente prevalecente. Essa “contrainternalização” deve ser capaz de criar uma alternativa abrangente concretamente sustentável ao que já existe: “o papel da educação é de importância vital para romper com a internalização predominante nas escolhas políticas circunscritas à ‘legitimação constitucional democrática’ do Estado capitalista que defende seus próprios interesses”.[3]
O modelo utilitarista
O projeto “Escola sem Partido” é uma forma de fortalecer ainda mais o modelo utilitarista da escola, o modelo tradicional que nos faz internalizar os conteúdos de modo a serem interessantes para se arrumar emprego e resolver problemas que agrade os supervisores das empresas. É uma escola que quer desenvolver apenas a “racionalidade instrumental” do aluno.
A partir desta perspectiva cria-se um discurso de que a escola deve ser um local de “neutralidade de valor”. Essa questão pode ser atraente à primeira vista se acreditarmos nos ideólogos que criam interpretações mirabolantes em nome da “objetividade científica”. No entanto, como adverte Mészaros, “as condições reais da vida cotidiana foram plenamente dominadas pelo ethos capitalista, sujeitando os indivíduos – como uma questão de determinação estruturalmente assegurada – ao imperativo de ajustar suas aspirações de maneira conforme, ainda que não pudessem fugir à áspera situação da escravidão assalariada”.[4]
A “neutralidade de valor”, reclamada pela Escola sem Partido, é de extrema importância para que encaremos os valores da ordem social capitalista como naturais. O indivíduo não terá outros valores críticos que possam combater os tradicionais, os que fazem girar a engrenagem do capitalismo. A ideia de ausência de valor cria uma liberdade ilusória, mas que no fim as pessoas optam pela prática, pelos procedimentos mecânicos que resolvem os seus problemas na realidade capitalista. Essa é a verdadeira doutrinação ideológica.
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Educar para a liberdade
“Os alunos devem ser encorajados a buscar mais conhecimento” coloca o professor Carlos Libâneo. Devem ser avaliados pela compreensão, originalidade, capacidade de resolver problemas e, sobretudo, pela “capacidade de fazer relações entre fatos e ideias”.[5] Paulo Freire diz que se não há a “possibilidade de reflexão sobre si”, o profissional da educação, “não é capaz de compromisso”. O indivíduo preso a sua realidade, aquele que não consegue “distanciar-se” do seu contexto, está “fora” do tempo, preso a um “perpétuo presente”. A imersão na realidade torna o ser a-histórico e, “em lugar de relacionar-se com o mundo, o ser imerso nele somente está em contato com ele. Seus contatos não chegam a transformar o mundo, pois deles não resultam produtos significativos, capazes de (inclusive, voltando-se sobre ele) marcá-los”.[6]
Essas reformas na educação têm o objetivo de inserir o aluno no contexto, de trabalhar com indivíduos (professor/aluno) que apenas entram em contato com o mundo. O próprio ensino de história acaba sendo moldado do jeito que o sistema quer. Ele passa a servir para o indivíduo se reconhecer como parte de uma sociedade que se desenvolveu tecnologicamente e que deve continuar a se desenvolver. O indivíduo é treinado para dar a sua contribuição nesse desenvolvimento tecnológico. Pretende-se apenas inseri-lo no sistema para este ser reforçado.[7]
Além disso, deparamo-nos com uma perversão pelo fato de uma escola que não é aberta a vários discursos acaba por incitar o preconceito e, consequentemente, a exclusão. Uma violência simbólica é cultuada porque todos são condenados a uma única maneira de conceber a realidade.
As esquerdas perderam muito tempo teorizando sobre a educação e não para a educação. Agora é preciso disseminar a ideia de que o professor é um intelectual e a escola um centro de contestação. O professor tem o dever de criticar o objetivo geral do sistema escolar que pretende preservar uma sociedade classe, a qual exclui certos grupos, de forma a identificar os objetivos que convergem para a efetiva democratização escolar. A escola não deve ser um local de mera reprodução dos interesses dominantes, mas um local onde grupos sociais se confrontam.
A escola não pode ser ideologicamente neutra. “A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso”, nos diz Paulo Freire, o autor brasileiro mais consultado pelos estudantes norte-americanos. Os que dizem neutros “estão ‘comprometidos’ consigo mesmo, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos quais pertencem”.[8]
É necessário evidenciar a contradição entre a aprendizagem casual e a aprendizagem organizada, chocar a cultura de sala de aula com a cultura de esquina, os diversos discursos da cultura popular com a cultura dominante. Somente assim conseguiremos despertar no aluno um discurso subversivo, crítico que não quer fazer apenas a sociedade funcionar, mas melhorá-la.
O projeto “Escola sem Partido” propõe uma mudança fictícia. Um novo que é forjado pelo velho, ou melhor, como a frase que conduz todo o filme de Luchino Visconti baseado no romance O Leopardo de Guiseppe Tomasi di Lampedusa:“Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”.
Referências
[1] GIROUX, Henry A. e SIMON, Roger. “Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o conhecimento curricular”. MOREIRA, Antonio F. e SILVA, Tomaz T. da (orgs.) Currículo, cultura e sociedade. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 95.
[2] APPLE, Michael W. “Repensando ideologia e currículo”. MOREIRA, Antonio F. e SILVA, Tomaz T. da (orgs.) Currículo, cultura e sociedade. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 40.
[3] MÉSZÁROS, István (org.). A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 61.
[4] Id. p. 80.
[5] LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez. p. 200.
[6] FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 17.
[7] BITTENCOURT, Circe. “Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de História”. _________. (org.) O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2006. p. 21.
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