quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

A Crítica Social volta à Marquês de Sapucaí: a luta de visões sobre a realidade brasileira

Ricardo Lodi

A Crítica Social volta à Marquês de Sapucaí: a luta de visões sobre a realidade brasileira

Nesse “palco iluminado”, onde outrora foram vivenciadas, nos anos de 1980, memoráveis críticas sociais como as antológicas apresentações da Caprichosos de Pilares e São Clemente, tem havido, nos últimos anos, com honrosas exceções bissextas, um verdadeiro silêncio sobre a realidade em que vivemos.

Esse ano, esse silêncio foi quebrado pela apresentação de três escolas do Grupo Especial: Paraíso do Tuiuti, Estação Primeira de Mangueira e Beija-Flor de Nilópolis, a despeito a visão bem diferente das três apresentações.

A da Mangueira foi uma crítica necessária, mas pontual, à redução da subvenção que o Prefeito Crivella deu às escolas de samba esse ano. Assim, a crítica, embora muito oportuna, se limita ao descontentamento do comportamento do governo municipal com as escolas de samba do Rio de Janeiro e à influência da religião na folia.

Já a Beija-Flor fez uma aguda crítica ao quadro de desestruturação da nossa sociedade, o que, por si só já é uma boa notícia, uma vez que a Deusa da Passarela, que em 1989, com o gênio de Joãozinho Trinta, chocou o mundo do samba e apavorou os conservadores com o inesquecível e revolucionário “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”, há muito abandonou o estilo mais crítico, preferindo enredos patrocinados constituídos a partir da bajulação de figuras polêmicas , como Boni, da exaltação de produtos comerciais como o Mangalarga marchador, e da celebração de cenários bastante controvertidos, como a Guiné Equatorial do ditador Nguema Mbasogo, trazendo a recordação de enredos da primeira metade dos anos de 1970, com explícita apologia à ditadura militar brasileira.

A gente vê que a coisa está feia mesma, quando até a Beija-Flor mostra o quadro devastador por que passamos.

Porém, apesar do belíssimo desfile e da costumeira garra do povo de Nilópolis, a visão crítica apresentada soou equivocada e conservadora, bem ao gosto da explicação do establishment para a crise nacional, baseada na lenda do patrimonialismo herdado de Portugal.

A leitura que a Beija-Flor ofereceu é a de que a causa da crise nacional, muito bem demonstrada com a desagregação do tecido social representada pela violência urbana, pela desestruturação da saúde e da educação e pelo abandono das nossas crianças, é a corrupção de nossa classe política. Sob essa ótica, o problema está no Estado.

Nesse sentido, tivemos uma lindíssima representação dramática da dominante visão lavajatista de que a corrupção dos políticos é a causa de todas as nossas chagas, passando ao largo da escandalosa desigualdade brasileira, herdada da escravidão e perpetuada por um modelo que retira recursos das camadas mais pobres e dirige ao mercado financeiro, a partir da cooptação de todas as instituições nacionais a esses interesses.

Simbólica da imperdoável omissão sobre a desigualdade é a interessantíssima imagem da cabeça de Frankenstein, belíssima homenagem aos 200 anos da obra, formada por várias fatias onde se lia palavras como “preconceito”, “racismo”, “misoginia”, “intolerância”. Faltou a menção à expressão “desigualdade”. Mas isso é só um revelador detalhe.

A instigante reprodução dos políticos como ratazanas não destoa do que é reproduzido nos noticiários da grande mídia, e é crítica que, quando desacompanhada da revelação de que a corrupção é fenômeno inerente à subordinação da esfera política aos interesses do mercado e não fruto do desvio pessoal dessa ou daquela pessoa, soa como a negação da política. Apesar da visão equivocada do cenário nacional, a azul e branco da Baixada fez um dos seus mais belos desfiles dos últimos anos e é séria candidata ao troféu da Liesa.

No entanto, a principal vicissitude da exibição da Beija-Flor é a comparação com o desfile apresentado na véspera pela Paraíso do Tuiuti, que, ao mesmo tempo que celebra os 130 anos de abolição da escravatura, questiona se houve, de fato, a liberação do cativeiro social.

O desfile, que começa com uma das mais impressionantes comissões de frente que já passaram pela Sapucaí, com os barbaramente realistas açoites nos escravos impostos pelo feitor negro, encontrando bálsamo nas bênçãos do Preto Velho que lhes embala ao “grito de liberdade”. Cena indiscritível justamente premiada com o Estandarte de Ouro.

O enredo segue mostrando as vicissitudes do povo negro, das torturas e do cativeiro, passando pela Lei Áurea, até chegar aos dias atuais que revelam as condições terríveis a que são submetidos como subempregados e celetistas, que têm os seus direitos usurpados pela reforma trabalhista do presidente vampiro, sustentado pelos “manifantoches”, batedores de panela com a camisa da CBF, manipulados como marionetes pela corte do vampiro do neoliberalismo.

Em um desfile histórico a Tuiuti, em uma coragem invejável para uma escola que se segura para ficar no Grupo Especial, em tempos de macarthismo cultural, mostra como se coloca o dedo na ferida de verdade, revelando a escravidão como a principal causa dos nossos problemas, na linha destacada por Jessé Souza, e dos traços escravocratas que até hoje definem a sociedade brasileira.

Com isso, o desfile faz uma conexão corretíssima entre as causas e as consequências da crise nacional apontando o Golpe de 2016 como um mecanismo usado pelas elites para restringir os direitos dos pobres e negros no Brasil, por meio da Reforma Trabalhista, como meio de perpetuação da escravidão.

Independentemente do resultado oficial, Tuiuti realizou um desfile que entra para a história como um resgate das tradições das escolas de samba do Rio de Janeiro que, desde os anos de 1960 após a revolução que Fernando Pamplona fez no Salgueiro e nos desfiles em geral, sempre se prestou a ser a voz do povo negro que teimosamente se recusa a entregar a festa por ele criada aos patrocinadores.

Parabéns, Paraíso do Tuiuti!!!!


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