O Brasil “exemplar e republicano” que se desenhava há uma década hoje se dissolve entre pedras e ovos
Por Matheus Pichonelli
Não foi no século passado nem é delírio de uma sociedade futurista e utópica. Foi outro dia, em 2009, quando, em um evento em Minas Gerais, a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, manifestou, durante entrevista, a sua admiração pelo então governador do estado, para ela “um dos melhores do país”. O governador era Aécio Neves.
No mesmo ano, o tucano diria que a ministra, se fosse candidata a presidente em 2010, seria “garantia de uma campanha de altíssimo nível”. “É um privilégio para o Brasil ter alguém da sua qualidade disputando eleições.”
Dilma e Aécio eram lideranças ascendentes em seus partidos, PT e PSDB, protagonistas das eleições presidenciais desde 1994. Eles voltariam a trocar elogios em público em outras oportunidades, como quando a ministra, já favorita para disputar a Presidência, agradeceu a recepção calorosa em nova visita a Minas e citou Aécio como parceiro “exemplar e republicano” do governo federal.
A campanha de 2010 não foi de “altíssimo nível” como previa o governador, mas as coisas pareciam encaminhadas. Dilma foi eleita e se tornou a primeira mulher a abrir a Assembleia Geral da ONU. Eleito senador, Aécio fez seu sucessor no estado e se consolidou como a grande liderança tucana de sua geração, cacifando-se para disputar a Presidência em 2014.
O fim da história todo mundo sabe: troca de ofensas nada exemplares nem republicanas quando os dois se enfrentaram na eleição, polarização levada às últimas consequências pelos marqueteiros das campanhas, crise econômica mordendo calcanhares e a Lava Jato espirrando sujeira no olho de petistas, tucanos e sebastianistas.
O que vimos, em 2014, foi o início da ruína de um projeto de país baseado numa ilusão: a de que, guardadas as diferenças programáticas, os dois principais partidos garantiriam uma certa estabilidade nos pontos em que concordavam.
A cena seguinte daquela campanha marcada pela virulência foi um país rachado, sem que um dos lados estivesse disposto a ceder. A viabilidade de governar entre tantas feridas estava bloqueada não apenas pela incapacidade de responder à crise, mas também por interesses e disposições de adversários em trancar o jogo, minar o terreno com pautas-bomba, desestabilizar, assumir os rumos e estancar a sangria, com Supremo, com tudo.
Dilma ficou marcada pela incapacidade de evitar a ruína econômica, destituída do posto, agora que bate-boca com diretor de série de Netflix por discordar de uma ficção baseada em fatos reais. Aécio é o senador rejeitado que pediu dinheiro para dono de frigorífico e avisou que é melhor mandar matar antes de um primo fazer a delação. Como previu um outro delator, foi o primeiro a ser comido.
Quatro anos depois daquela eleição, o cenário é de terra arrasada. Com os dois partidos na lona, quem ganhou terreno é quem se aproveita da desilusão alheia para propor soluções simplistas para problemas complexos. Basta prender, bater, arrebentar, criminalizar índios e sem-terra, abolir “privilégios” de minorias (o “privilégio”, no caso, de serem os grupos vítimas preferenciais da violência e da exclusão), armar os “cidadãos de bem” e tudo voltará à ordem. Conversa. Mas uma conversa que ganha voto e pode dar forma, se é que já não deu, a um modelo à brasileira de fundamentalismo.
Pulando nas sobras das duas legendas, o presidente em exercício é uma figura fragilizada, que terceirizou a gestão até da segurança no estado onde os colegas de partido, como um ex-governador, um ex-presidente da Assembleia Legislativa e um ex-presidente da Câmara, estão emparedados, condenados ou presos.
Lula, hoje, é sombra do presidente que deixou o Planalto com 80% de aprovação e pavimentou o caminho para a sucessora. Denunciado e condenado, é alvo não apenas da antipatia de quem se desiludiu e de quem jamais o aceitou e não quer vê-lo em campanha antecipada na véspera da confirmação de sua condenação. É alvo de pedras e ovos, como foi alvo de ovos o futuro ex-prefeito de São Paulo quando imaginou ser o futuro candidato a presidente do PSDB, para aplausos de muitos.
Não se trata de rebater discursos, mas de não permitir sequer que eles aconteçam, sob a ordem de meninos imberbes que propagam notícias falsas e têm na virulência o que lhes falta de índole e inteligência.
Alguma coisa se quebrou de 2014 para cá, e não foram apenas ovos. Essa tensão pode ser observada na troca diária de ofensas e infantilidades entre congressistas e até no bate-boca entre ministros do Supremo Tribunal Federal, onde um colega acusa o outro de fazer “dois e um” para propósitos estranhos e ouve que é “pessoa horrível” e desonra o convívio na mais alta Corte.
No Brasil de 2018 a intransigência virou figura de linguagem, e não há sinal de estabelecimento de comunicação ou resgate da estrutura daquele desenho de país, “exemplar e republicano”, que em menos de dez anos se revelou uma miragem.
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