Num país onde os erros do Judiciário não costumam ser debatidos nem avaliados com a franqueza necessária, a sentença que em 1936 negou o habeas corpus a Olga Benário, militante comunista e primeira mulher do líder do PCB Luiz Carlos Prestes, permitindo que fosse expulsa para a Alemanha nazista, onde foi morta numa câmara de gás, costuma ser apontada como um exemplo antológico de parcialidade e submissão da mais alta corte do país a interesses espúrios ao Estado Democrático de Direito.
Oitenta e dois anos depois, o processo contra Luiz Inácio Lula da Silva, condenado sem prova a doze anos e um mês, ameaça se transformar num caso equivalente no Brasil do século XXI, país que até há pouco tinha o direito de se imaginar livre de grande parte das barbaridades típicas de governos autoritários presentes no processo contra Olga Benário.
Caso seja mantido à margem da decisão final sobre Lula, como indica o atitude da presidente Cármen Lúcia até aqui, o Supremo Tribunal Federal será marcado por uma postura omissa como poucas vezes se viu ao longo de nossos 195 anos como nação independente. Pela função que desempenha no Tribunal, a presidente é quem tem autoridade para convocar o debate em plenário, dando sequência a uma decisão que nem é sua. Pode fazer isso a qualquer momento.
A decisão partiu do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, que resolveu que o debate sobre o um pedido de habeas corpus para Lula deveria ser debatido em plenário. Nem mesmo pela Segunda Turma de 5 membros, que em geral resolve as questões da Lava Jato, disse Fachin. Mas o colegiado de 11 membros, o time completo.
Mesmo no caso de Olga Benário a mais alta corte de justiça do país -- então chamada de Suprema Corte dos Estados Unidos do Brasil -- teve o direito de examinar um pedido de habeas corpus e se manifestar a respeito. Isso permite que suas decisões e os votos de cada juiz possam ser estudados e debatidos pelas gerações futuras, preservando lições úteis para a atitude que uma sociedade deve tomar quando o própria Justiça se torna um instrumento de medidas de exceção que deveria combater. Também obriga cada um assumir sua responsabilidade de portar togas negras numa hora grave da história brasileira.
A decisão da Corte Suprema de 1936 foi errada e indefensável, fato que o decano do STF, ministro Celso de Mello, que presidiu a instituição entre 1997 e 1999, reconheceu com humildade: “Lamentavelmente, o Supremo, na época, não deu a melhor interpretação ao caso e sim um tratamento injusto e trágico”, disse Celso de Mello em entrevista a Luciana Nanci, do Conjur (1/9/2004).
O erro primário foi não respeitar o artigo 134 da Constituição em vigor na época, que garantia o tratamento de brasileiros a filhos de pais brasileiros, como ocorria com a criança que Olga Benário trazia em seu ventre -- a futura historiadora Anita Leocádia.
Ao expulsar Olga do país, decisão provocada por um alinhamento com a diplomacia do governo Vargas no período -- cujo mérito ou demérito não se discute aqui -- a Corte permitiu que uma cidadã em pleno gozo de seus direitos fosse entregue a um regime que reconhecidamente deixara de respeitar garantias fundamentais previstas em nossa Constituição.
Num debate que tem paralelos óbvios com a discussão de hoje, quando a Lava Jato procura questionar garantias constitucionais -- como o trânsito em julgado que impede a prisão após uma segunda condenação -- a partir de medidas sem igual legitimidade.
Mesmo previsto na Constituição de 1934, o direito ao habeas corpus foi negado, com o argumento de que havia sido suspenso por um decreto presidencial, assinado por Vargas depois da chamada Intentona Comunista, liderada pelo PCB. O voto da minoria reconheceu o direito ao habeas corpus em tese mas questionou o mérito, aceitando, na prática, o pedido para que Olga fosse expulsa do país, ainda que estivesse disposta a cumprir integralmente a pena de prisão a que pudesse vir a ser condenada, caso viesse a ser julgada por um tribunal brasileiro.
Como era previsível, Olga jamais teve direito a um julgamento na Alemanha. Cumpriu um regime de seis anos "prisão preventiva", como se refere numa das cartas que pode enviar a Prestes, período no qual transitou por diversos campos de prisioneiros até ser executada, em 1942.
Apesar da oportuna auto-crítica de Celso Mello, o reconhecimento da falha criminosa em relação a Olga Benário não é uma unanimidade.
Num esforço que apenas serve para embelezar aquilo que deve ser criticado, costuma-se alegar que ninguém poderia antecipar, em 1936, as atrocidades mais graves promovidas pelo regime nazista a partir da década de 1940, quando começam as execuções em massa em campos de concentração. A sugestão é que, se pudesse adivinhar o que iria acontecer, o tribunal não teria tomado a trágica decisão de expulsar Olga do país.
Acredite quem quiser. O empenho para enviar Olga para a Alemanha era tamanho que as autoridades brasileiras chegaram a determinar seu embarque à força, num navio cargueiro, contra a vontade do próprio comandante, que não queria transportar uma passageira em avançado estado de gravidez.
O fato é que em 1936 nenhuma autoridade brasileira ignorava a realidade cotidiana da Alemanha nazista. Não havia dúvidas de que Hitler havia colocado de pé uma ditadura com traços peculiares de violência e crueldade. As câmaras de gás não tinham começado a funcionar mas havia campos de prisioneiros nos quais homens e mulheres eram submetidos a maus tratos, torturas, além de vários sofrimentos, injustiças e privações. Um dos primeiros, Dachau, onde os prisioneiros eram escravizados, que começou a funcionar em 1933, logo após a vitória de Hitler, chegou a reunir 200 000 pessoas.
O campo de Sachsenhausen, com a mesma dimensão, foi inagurado em julho de 1936 -- dois meses antes de Olga desembarcar na Alemanha, já expulsa do Brasil, onde foi recolhida pela Gestapo e internada num presídio feminino.
Logo após o nascimento de Anita Leocádia, numa postura típica de regimes totalitários que se apossam de órfãos produzidos por sua máquina de horrores, a polícia secreta nazista tentou entregar a criança para adoção, sendo forçada a desistir em função de uma campanha humanitária organizada em vários países pelos partidos comunistas e movimentos de esquerda.
Em 2018, o mundo é muito diferente do período histórico que gerou o holocausto. A decisão de 1936 implicou a perda de uma vida humana e não é disso que se trata aqui.
Mas uma questão essencial permanece.
É difícil negar uma semelhança entre o Brasil de hoje e aquele de 1936, pelo menos num ponto. Nos dois casos, temos um Supremo Tribunal Federal com magistrados encarregados pela Republica de zelar pela aplicação das leis em vigor no país, a começar pela Constituição. Hoje, como há 82 anos, a história oferece uma oportunidade para estancar de imediato um processo errado, torto, injusto. Os magistrados de 1936 tivera sua oportunidade, desperdiçada de modo vergonhoso.
No STF de 2018, que tem o dever de garantir o cumprimento da Constituição aprovada em 1988 por parlamentares eleitos por 59 milhões de brasileiros, o debate ainda se encontra em fase anterior. A partir da decisão do ministro Edson Fachin, cabe-lhe assumir seu lugar como representante de um dos Poderes da Republica e debater o habeas corpus, como instância superior à altura do Legislativo e do Judiciário. Com o poder único de pautar o STF, a presidente Cármen Lúcia sequer se dispõe a convocar o plenário de onze ministros para tomar uma decisão a respeito, que poderia ter a legitimidade que só uma decisão colegiada possui.
Com direito a manchetes de telejornal por ter encerrado um voto sobre liberdade de expressão, em 2015, com um verso de canção infantil ("cala a boca já morreu") a presidente do Supremo agora parece empenhada em manter os demais ministros sob um regime de silêncio forçado, submetidos a uma mordaça que nem todos estão dispostos a utilizar, como já deixaram claro. Eles têm ciência de seu papel numa hora como a atual.
A postura da presidente do STF sinaliza uma mensagem preocupante, assustadora, quando se considera a conjuntura de incertezas e tumultos que vive o país.
Sugere que, para Cármen Lúcia a melhor atitude que a mais alta corte de justiça pode tomar num caso com tamanha gravidade é fechar as portas, cruzar os braços e fazer silêncio, numa tentativa de silêncio completo e definitivo. Trata-se uma postura que não encontra amparo justificável. Pior. Num momento no qual ninguém tem o direito de ser ingênuo, é preciso admitir que estamos falando de um cálculo. A postura da omissão na verdade deixa no ar a suspeita lamentável de que a presidente teme um resultado final com o qual não estaria de acordo.
Esta é a sombra de Olga Benário sobre o STF. Deu para entender?
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Fonte: Rede 3Setor
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