O assassinato de opositores não era nenhuma novidade nos primeiros anos do regime militar. Contudo, naquele dia a morte de um garoto de apenas 18 anos, durante um protesto estudantil no Rio de Janeiro, galvanizaria a oposição democrática e popular e faria eclodir o maior movimento de contestação à ditadura desde a sua implantação em 1964.
Por Augusto C. Buonicore*
Um tiro na tarde
Tudo começou com uma manifestação de estudantes contra o preço e as más condições do restaurante Calabouço. Este não foi o primeiro protesto daqueles jovens que, em geral, eram secundaristas filhos de famílias empobrecidas. Muitos, além de suas refeições diárias, faziam ali pequenos serviços para complementar a renda. Portanto, o seu perfil era bem diferente em relação ao daqueles que frequentavam as universidades brasileiras.
Os jovens do Calabouço, como de hábito, foram atacados pela Polícia Militar. Mas, desta vez, eles não estavam dispostos a apanhar ou correr. Por isso, tomaram a decisão de reagir à altura e o fizeram com paus e pedras. A polícia, desprevenida e assustada, recuou diante desse primeiro confronto. Logo em seguida voltou à carga com redobrada violência, utilizando bombas de efeito moral e tiros. A ordem para a fuzilaria partiu do general Osvaldo Niemeyer Lisboa. No conflito que se estabeleceu um rapaz caiu mortalmente ferido. Seu nome é Edson Luís de Lima e Souto. Estávamos em 28 de março de 1968.
Artur Poerner no seu livro O poder jovem resumiu assim a breve vida do garoto assassinado: “Tratava-se de um menino ainda – completara 18 anos no dia 24 de fevereiro –, parecia baixinho, a pele morena e os cabelos bem pretos e lisos de caboclo nortista. Os dentes – tinha-os estragados, como a maioria dos jovens de nosso país. Órfão de pai, viera havia três meses de Belém do Pará para cursar o Instituto Cooperativo de Ensino, anexo ao Calabouço, onde passava a maior parte do dia, inclusive auxiliando em serviços burocráticos da secretaria e de limpeza no estabelecimento, pois não conseguia emprego. As esperanças que o trouxeram ao Rio estavam ali agora, transformadas no sangue que manchava a camisa branca empunhada pelos seus colegas”.
O oficial que comandava a tropa, sem medo de parecer ridículo, afirmou que a “Polícia Militar atirou por se encontrar numericamente em situação inferior aos estudantes, inclusive em quantidade de armas”. O general Niemeyer foi afastado de seu posto para que as investigações supostamente pudessem ser feitas de maneira isenta. No entanto, ninguém seria punido pela morte do estudante. A impunidade para os “crimes do Estado” seria uma das marcas do regime instalado em 1964.
Em editorial, o Correio da Manhã revelava toda a sua indignação: “Não agiu a Polícia Militar como força pública. Agiu como bando de assassinos (...). A Guanabara, cidade civilizada e centro cultural do Brasil, não perdoará os assassinos”. O general-presidente Costa e Silva quando assumiu o cargo, no começo de 1967, prometeu solenemente abrir o diálogo com os trabalhadores e estudantes descontentes. Acenou até mesmo com a possibilidade da eleição de um civil em 1971. Meses mais tarde ficou claro que o único diálogo que o regime conhecia era o da violência.
Os estudantes se recusaram a entregar o corpo de Edson Luís às autoridades, temendo que ele pudesse desaparecer. Por segurança, ele foi levado à Assembleia Legislativa onde foi realizada uma longa e tensa vigília. O governo estadual proibiu a presença da Polícia Militar no local, mas ela desobedeceu às ordens e realizou atos de provocação, atirando bombas de gás lacrimogêneo e prendendo populares. O clima ficou explosivo.
A notícia da morte do estudante correu de boca em boca. As escolas e teatros cariocas foram fechando suas portas. “A impressão que se tem hoje, evidentemente exagerada, é de que todo o Rio de Janeiro passou pelo velório. Nunca a Assembleia havia recebido a visita de tantas celebridades”, escreveu Zuenir Ventura. As filas eram intermináveis e também os discursos. Coroas de flores chegavam a todo momento. Um espírito de indignação tomou conta da cidade. Mataram um estudante. E agora?
Neste luto, começa a luta
O enterro de Edson Luís foi a primeira grande manifestação contra o regime militar. Mais de 50 mil pessoas tomaram as ruas numa última homenagem ao estudante morto. Eram universitários, secundaristas, professores, artistas, clérigos, profissionais liberais. Havia também muitos elementos populares. Uma faixa se destacava: “Mataram um estudante. Ele poderia ser seu filho”. Das janelas caíam flores e papel picado. Parecia uma reprodução da “marcha da família com deus pela liberdade” com sinais invertidos. Foi a explosão incontida das frustrações de amplos setores das camadas médias que haviam apoiado o golpe – em nome da liberdade e da luta contra a corrupção – e agora viam suas expectativas serem traídas pelos generais.
No cortejo, os estudantes, como de praxe, queimaram uma bandeira dos Estados Unidos e cantaram o hino nacional brasileiro. Sob o caixão foi colocada a bandeira brasileira. Nada mais justo, pois o corpo do pequeno Edson, naquele momento, representava o grito represado de toda uma nação agrilhoada.
Diante da casa de Carlos Lacerda ouviram-se vaias e gritos de “fascista” e “abaixo a Frente Ampla” – frente política que congregava Lacerda, Jango e JK. Sinais evidentes da radicalização que vivia o movimento estudantil, particularmente sua vanguarda. Ironicamente nas semanas seguintes o governo militar acusaria a Frente Ampla de ter incentivado aquela manifestação.
Sem condições de reprimi-la, o regime tentou escondê-la. Naquele cair de tarde e começo de noite as luzes da cidade, misteriosamente, não foram acesas. Esforço inútil. Durante todo o trajeto, os motoristas acendiam os faróis e muitos comerciantes forneciam velas e lanternas. A multidão também transformava os jornais do dia em archotes, que queimavam rapidamente. O improviso acabou dando mais grandiosidade à cena. Ninguém se esqueceria daquele dia. No final, a massa presente fez um juramento solene: “Neste luto, começou a luta!”.
O assassinato teve impacto imediato na maioria dos estados, inflamando o movimento estudantil e oposicionista. Em Goiânia a Polícia Militar invadiu a Catedral Metropolitana, onde se celebrava uma missa em memória de Edson, e feriu à bala vários estudantes. O secundarista e engraxate Ornalino Cândido da Silva de apenas 16 anos veio a falecer devido aos ferimentos. Ele parecia muito com uma das principais lideranças secundaristas da cidade: Euler Ivo. Isso criou certa confusão quanto à identidade do morto.
Em Brasília também ocorreram confrontos violentos entre estudantes e policiais. Outro jovem levou um tiro no peito. Nos dois casos, seguindo o exemplo dos cariocas, os estudantes enfrentaram a polícia com pedras e paus. A fase de só fugir ou apanhar havia passado. “Dente por dente, olho por olho” era a nova palavra de ordem que surgia nas ruas. Nem sempre isso correspondia à real correlação de forças existente.
A morte de Edson Luís também provocou cisão nas próprias fileiras do regime ditatorial. No dia seguinte ao assassinato, o general Mourão Filho – presidente do Superior Tribunal Militar e um dos principais expoentes do golpe de 1964 – declarou: “É incrível que a polícia atire contra estudantes, em uma democracia (sic). Estou indignado, fora de mim, com tais acontecimentos (...) quando se permite que policiais atirem contra estudantes, não podemos ficar tranquilos em casa, pois fatos como esses poderiam atingir qualquer pessoa de nossas famílias”.
Lacerda, rompido com o regime desde 1965, aproveitou o momento para elevar o tom de suas críticas. “A violência tornou-se norma nas relações entre o governo e o povo. (...) Ninguém deseja a baderna, mas ninguém suporta a crueldade e a covardia. É inaceitável que o Exército trate os estudantes como uma horda de inimigos (...). O Brasil está ultrajado pela orgia da violência (...). É tempo de fazer a revolução pela qual a mocidade anseia, a revolução pela educação e o voto”. Em breve ele constaria da lista de novas cassações e seria preso.
1º de abril: Nada a comemorar
O próximo encontro entre estudantes e a repressão já estava marcado. Seria por ocasião das comemorações do quarto aniversário do golpe militar. No dia 31 de março, hipocritamente, o general-presidente Costa e Silva afirmou: “Eles querem sangue, mas o país prosseguirá sem sangue porque não estamos com a ideia de violência. Nós queremos a paz”. Paz foi uma coisa que não houve nos dias – e anos – que se seguiram.
O Correio da Manhã narrou o que aconteceu naquele fatídico dia: “Por cinco horas e meia (...) mais de cinco mil elementos da PM agrediram, com violência nunca vista, estudantes e populares participantes do movimento de protesto na Guanabara”. Continuou o jornal: “O Rio converteu-se num campo de batalha. A polícia caçava pelas ruas estudantes, intelectuais e homens do povo, como se fossem representantes de uma nação inimiga”. Um detalhe: desta vez o número de policiais ferido foi tão grande como o de civis. Escreveu Zuenir Ventura: “poucas vezes a polícia apanhou tanto no Rio de Janeiro”.
Segundo Poerner, 60 manifestantes e 39 policiais ficaram feridos e mais de 321 pessoas foram presas. Mas, a luta continuava bastante desigual: pedras contra balas. Outros dois jovens tombaram mortos na Guanabara: David de Souza Neiva e Jorge Agripino de Paula. Quatro ficaram feridos à bala. O I Exército ocupou as ruas da cidade e Costa e Silva ameaçou: “custe o que custar a ordem será mantida”. Falava-se na decretação do Estado de Sítio e mesmo na promulgação de um novo ato institucional, ainda mais draconiano que os anteriores. Esta era a única forma de diálogo que a ditadura conhecia.
A missa de 7º dia de Edson Luís também foi marcada pela violência. Como se preparasse o cenário para uma tragédia, o governo estadual decretou ponto facultativo e feriado bancário. Foi sugerido aos comerciantes que não abrissem suas lojas. Desde as primeiras horas, a cidade foi tomada pelo exército. Havia um odor insuportável de pólvora saturando o ambiente. Na missa da manhã, encomendada pela Assembleia Legislativa e ocorrida na Candelária, as pessoas foram cercadas e massacradas pela cavalaria quando saíam pacificamente da igreja. A mesma coisa ameaçava se repetir à noite.
Dom José de Castro Pinto, vigário-geral, foi pressionado para que a missa noturna não ocorresse. O clérigo se manteve firme e realizou o ato religioso ao lado de mais 15 padres. Nas ruas que davam acesso à igreja, policiais e soldados intimavam os que desejavam entrar. Precisava ter muita coragem para romper o cerco armado. Bombas de gás lacrimogêneo eram lançadas a esmo. O cheiro do gás tomou conta do interior do templo que estava completamente lotado. Todos ali temiam pelo pior. A Candelária virou uma verdadeira praça de guerra.
Visando a proteger os que saíam da igreja, os padres formaram um cordão de isolamento que separava o povo dos cavalarianos enfurecidos. À frente do estranho cortejo estava o vigário-geral. Apenas quatro anos antes a cúpula da igreja católica abençoava os golpistas e agora protegia os contestadores do regime. As coisas, realmente, estavam mudando no país.
A Frente Ampla – rechaçada pelos estudantes no enterro de Edson Luís – pagaria a conta pelos acontecimentos daqueles dias. Em abril, no dia seguinte à missa, uma portaria do ministro da Justiça proibiu sua existência e estabeleceu pena de prisão para quem, estando banido ou cassado, fizesse qualquer pronunciamento político. “O governo foi ao cerne da crise estudantil ao decidir proscrever a Frente Ampla, jogando-a na clandestinidade. As manifestações de rua provaram que a semeadura da Frente Ampla estava caindo em terreno favorável (...). A linha da agitação correspondeu inteiramente à linha de ação política da Frente Ampla”, afirmou alguém ligado ao regime.
A morte de Edson Luís ocasionou uma mudança de posição política de amplos setores das camadas médias em relação ao movimento estudantil. Elas passaram a reconhecer nele certo papel de vanguarda de suas aspirações democráticas. De um apoio difuso passou-se a um apoio ativo.
Após a missa, a diretiva da União Metropolitana dos Estudantes (UME) foi para que os estudantes voltassem para dentro das universidades. Vladimir Palmeira, então presidente da entidade, afirmou: “Ultrapassada a última fase de manifestações a palavra de ordem é retornar às escolas, promovendo assembleias para o debate político dos acontecimentos e para a estruturação das medidas necessárias ao atendimento das reivindicações específicas da classe estudantil”.
O recuo foi provisório. Dentro de mais alguns meses o movimento estudantil e popular tomaria novamente as ruas nas maiores manifestações de enfrentamentos à ditadura militar: a sexta-feira sangrenta e a passeata dos cem mil. Esse é assunto para alguma de minhas próximas colunas.
Bibliografia
DIRCEU, José & PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a ditadura: movimento de 68 contado por seus líderes. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento estudantil e ditadura militar (1964-1968). São Paulo: Papirus, 1987.
POERNER, Artur J. O poder jovem. São Paulo: Civilização brasileira, 1979.
REIS FILHO, Daniel Aarão & MORAES, Pedro de. 68: a paixão de uma utopia. São Paulo: FGV, 1988.
SAES, Décio. Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985.
SANFELICE, José Luís. Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. Campinas (SP): Autores Associados, 1986.
SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. São Paulo: Global, 1992.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
VALLE, Maria Ribeiro do. 1969: o diálogo é a violência. Campinas (SP): Unicamp, 1999.
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. São Paulo: Nova Fronteira, 1988.
Tudo começou com uma manifestação de estudantes contra o preço e as más condições do restaurante Calabouço. Este não foi o primeiro protesto daqueles jovens que, em geral, eram secundaristas filhos de famílias empobrecidas. Muitos, além de suas refeições diárias, faziam ali pequenos serviços para complementar a renda. Portanto, o seu perfil era bem diferente em relação ao daqueles que frequentavam as universidades brasileiras.
Os jovens do Calabouço, como de hábito, foram atacados pela Polícia Militar. Mas, desta vez, eles não estavam dispostos a apanhar ou correr. Por isso, tomaram a decisão de reagir à altura e o fizeram com paus e pedras. A polícia, desprevenida e assustada, recuou diante desse primeiro confronto. Logo em seguida voltou à carga com redobrada violência, utilizando bombas de efeito moral e tiros. A ordem para a fuzilaria partiu do general Osvaldo Niemeyer Lisboa. No conflito que se estabeleceu um rapaz caiu mortalmente ferido. Seu nome é Edson Luís de Lima e Souto. Estávamos em 28 de março de 1968.
Artur Poerner no seu livro O poder jovem resumiu assim a breve vida do garoto assassinado: “Tratava-se de um menino ainda – completara 18 anos no dia 24 de fevereiro –, parecia baixinho, a pele morena e os cabelos bem pretos e lisos de caboclo nortista. Os dentes – tinha-os estragados, como a maioria dos jovens de nosso país. Órfão de pai, viera havia três meses de Belém do Pará para cursar o Instituto Cooperativo de Ensino, anexo ao Calabouço, onde passava a maior parte do dia, inclusive auxiliando em serviços burocráticos da secretaria e de limpeza no estabelecimento, pois não conseguia emprego. As esperanças que o trouxeram ao Rio estavam ali agora, transformadas no sangue que manchava a camisa branca empunhada pelos seus colegas”.
O oficial que comandava a tropa, sem medo de parecer ridículo, afirmou que a “Polícia Militar atirou por se encontrar numericamente em situação inferior aos estudantes, inclusive em quantidade de armas”. O general Niemeyer foi afastado de seu posto para que as investigações supostamente pudessem ser feitas de maneira isenta. No entanto, ninguém seria punido pela morte do estudante. A impunidade para os “crimes do Estado” seria uma das marcas do regime instalado em 1964.
Em editorial, o Correio da Manhã revelava toda a sua indignação: “Não agiu a Polícia Militar como força pública. Agiu como bando de assassinos (...). A Guanabara, cidade civilizada e centro cultural do Brasil, não perdoará os assassinos”. O general-presidente Costa e Silva quando assumiu o cargo, no começo de 1967, prometeu solenemente abrir o diálogo com os trabalhadores e estudantes descontentes. Acenou até mesmo com a possibilidade da eleição de um civil em 1971. Meses mais tarde ficou claro que o único diálogo que o regime conhecia era o da violência.
Os estudantes se recusaram a entregar o corpo de Edson Luís às autoridades, temendo que ele pudesse desaparecer. Por segurança, ele foi levado à Assembleia Legislativa onde foi realizada uma longa e tensa vigília. O governo estadual proibiu a presença da Polícia Militar no local, mas ela desobedeceu às ordens e realizou atos de provocação, atirando bombas de gás lacrimogêneo e prendendo populares. O clima ficou explosivo.
A notícia da morte do estudante correu de boca em boca. As escolas e teatros cariocas foram fechando suas portas. “A impressão que se tem hoje, evidentemente exagerada, é de que todo o Rio de Janeiro passou pelo velório. Nunca a Assembleia havia recebido a visita de tantas celebridades”, escreveu Zuenir Ventura. As filas eram intermináveis e também os discursos. Coroas de flores chegavam a todo momento. Um espírito de indignação tomou conta da cidade. Mataram um estudante. E agora?
Neste luto, começa a luta
O enterro de Edson Luís foi a primeira grande manifestação contra o regime militar. Mais de 50 mil pessoas tomaram as ruas numa última homenagem ao estudante morto. Eram universitários, secundaristas, professores, artistas, clérigos, profissionais liberais. Havia também muitos elementos populares. Uma faixa se destacava: “Mataram um estudante. Ele poderia ser seu filho”. Das janelas caíam flores e papel picado. Parecia uma reprodução da “marcha da família com deus pela liberdade” com sinais invertidos. Foi a explosão incontida das frustrações de amplos setores das camadas médias que haviam apoiado o golpe – em nome da liberdade e da luta contra a corrupção – e agora viam suas expectativas serem traídas pelos generais.
No cortejo, os estudantes, como de praxe, queimaram uma bandeira dos Estados Unidos e cantaram o hino nacional brasileiro. Sob o caixão foi colocada a bandeira brasileira. Nada mais justo, pois o corpo do pequeno Edson, naquele momento, representava o grito represado de toda uma nação agrilhoada.
Diante da casa de Carlos Lacerda ouviram-se vaias e gritos de “fascista” e “abaixo a Frente Ampla” – frente política que congregava Lacerda, Jango e JK. Sinais evidentes da radicalização que vivia o movimento estudantil, particularmente sua vanguarda. Ironicamente nas semanas seguintes o governo militar acusaria a Frente Ampla de ter incentivado aquela manifestação.
Sem condições de reprimi-la, o regime tentou escondê-la. Naquele cair de tarde e começo de noite as luzes da cidade, misteriosamente, não foram acesas. Esforço inútil. Durante todo o trajeto, os motoristas acendiam os faróis e muitos comerciantes forneciam velas e lanternas. A multidão também transformava os jornais do dia em archotes, que queimavam rapidamente. O improviso acabou dando mais grandiosidade à cena. Ninguém se esqueceria daquele dia. No final, a massa presente fez um juramento solene: “Neste luto, começou a luta!”.
O assassinato teve impacto imediato na maioria dos estados, inflamando o movimento estudantil e oposicionista. Em Goiânia a Polícia Militar invadiu a Catedral Metropolitana, onde se celebrava uma missa em memória de Edson, e feriu à bala vários estudantes. O secundarista e engraxate Ornalino Cândido da Silva de apenas 16 anos veio a falecer devido aos ferimentos. Ele parecia muito com uma das principais lideranças secundaristas da cidade: Euler Ivo. Isso criou certa confusão quanto à identidade do morto.
Em Brasília também ocorreram confrontos violentos entre estudantes e policiais. Outro jovem levou um tiro no peito. Nos dois casos, seguindo o exemplo dos cariocas, os estudantes enfrentaram a polícia com pedras e paus. A fase de só fugir ou apanhar havia passado. “Dente por dente, olho por olho” era a nova palavra de ordem que surgia nas ruas. Nem sempre isso correspondia à real correlação de forças existente.
A morte de Edson Luís também provocou cisão nas próprias fileiras do regime ditatorial. No dia seguinte ao assassinato, o general Mourão Filho – presidente do Superior Tribunal Militar e um dos principais expoentes do golpe de 1964 – declarou: “É incrível que a polícia atire contra estudantes, em uma democracia (sic). Estou indignado, fora de mim, com tais acontecimentos (...) quando se permite que policiais atirem contra estudantes, não podemos ficar tranquilos em casa, pois fatos como esses poderiam atingir qualquer pessoa de nossas famílias”.
Lacerda, rompido com o regime desde 1965, aproveitou o momento para elevar o tom de suas críticas. “A violência tornou-se norma nas relações entre o governo e o povo. (...) Ninguém deseja a baderna, mas ninguém suporta a crueldade e a covardia. É inaceitável que o Exército trate os estudantes como uma horda de inimigos (...). O Brasil está ultrajado pela orgia da violência (...). É tempo de fazer a revolução pela qual a mocidade anseia, a revolução pela educação e o voto”. Em breve ele constaria da lista de novas cassações e seria preso.
1º de abril: Nada a comemorar
O próximo encontro entre estudantes e a repressão já estava marcado. Seria por ocasião das comemorações do quarto aniversário do golpe militar. No dia 31 de março, hipocritamente, o general-presidente Costa e Silva afirmou: “Eles querem sangue, mas o país prosseguirá sem sangue porque não estamos com a ideia de violência. Nós queremos a paz”. Paz foi uma coisa que não houve nos dias – e anos – que se seguiram.
O Correio da Manhã narrou o que aconteceu naquele fatídico dia: “Por cinco horas e meia (...) mais de cinco mil elementos da PM agrediram, com violência nunca vista, estudantes e populares participantes do movimento de protesto na Guanabara”. Continuou o jornal: “O Rio converteu-se num campo de batalha. A polícia caçava pelas ruas estudantes, intelectuais e homens do povo, como se fossem representantes de uma nação inimiga”. Um detalhe: desta vez o número de policiais ferido foi tão grande como o de civis. Escreveu Zuenir Ventura: “poucas vezes a polícia apanhou tanto no Rio de Janeiro”.
Segundo Poerner, 60 manifestantes e 39 policiais ficaram feridos e mais de 321 pessoas foram presas. Mas, a luta continuava bastante desigual: pedras contra balas. Outros dois jovens tombaram mortos na Guanabara: David de Souza Neiva e Jorge Agripino de Paula. Quatro ficaram feridos à bala. O I Exército ocupou as ruas da cidade e Costa e Silva ameaçou: “custe o que custar a ordem será mantida”. Falava-se na decretação do Estado de Sítio e mesmo na promulgação de um novo ato institucional, ainda mais draconiano que os anteriores. Esta era a única forma de diálogo que a ditadura conhecia.
A missa de 7º dia de Edson Luís também foi marcada pela violência. Como se preparasse o cenário para uma tragédia, o governo estadual decretou ponto facultativo e feriado bancário. Foi sugerido aos comerciantes que não abrissem suas lojas. Desde as primeiras horas, a cidade foi tomada pelo exército. Havia um odor insuportável de pólvora saturando o ambiente. Na missa da manhã, encomendada pela Assembleia Legislativa e ocorrida na Candelária, as pessoas foram cercadas e massacradas pela cavalaria quando saíam pacificamente da igreja. A mesma coisa ameaçava se repetir à noite.
Dom José de Castro Pinto, vigário-geral, foi pressionado para que a missa noturna não ocorresse. O clérigo se manteve firme e realizou o ato religioso ao lado de mais 15 padres. Nas ruas que davam acesso à igreja, policiais e soldados intimavam os que desejavam entrar. Precisava ter muita coragem para romper o cerco armado. Bombas de gás lacrimogêneo eram lançadas a esmo. O cheiro do gás tomou conta do interior do templo que estava completamente lotado. Todos ali temiam pelo pior. A Candelária virou uma verdadeira praça de guerra.
Visando a proteger os que saíam da igreja, os padres formaram um cordão de isolamento que separava o povo dos cavalarianos enfurecidos. À frente do estranho cortejo estava o vigário-geral. Apenas quatro anos antes a cúpula da igreja católica abençoava os golpistas e agora protegia os contestadores do regime. As coisas, realmente, estavam mudando no país.
A Frente Ampla – rechaçada pelos estudantes no enterro de Edson Luís – pagaria a conta pelos acontecimentos daqueles dias. Em abril, no dia seguinte à missa, uma portaria do ministro da Justiça proibiu sua existência e estabeleceu pena de prisão para quem, estando banido ou cassado, fizesse qualquer pronunciamento político. “O governo foi ao cerne da crise estudantil ao decidir proscrever a Frente Ampla, jogando-a na clandestinidade. As manifestações de rua provaram que a semeadura da Frente Ampla estava caindo em terreno favorável (...). A linha da agitação correspondeu inteiramente à linha de ação política da Frente Ampla”, afirmou alguém ligado ao regime.
A morte de Edson Luís ocasionou uma mudança de posição política de amplos setores das camadas médias em relação ao movimento estudantil. Elas passaram a reconhecer nele certo papel de vanguarda de suas aspirações democráticas. De um apoio difuso passou-se a um apoio ativo.
Após a missa, a diretiva da União Metropolitana dos Estudantes (UME) foi para que os estudantes voltassem para dentro das universidades. Vladimir Palmeira, então presidente da entidade, afirmou: “Ultrapassada a última fase de manifestações a palavra de ordem é retornar às escolas, promovendo assembleias para o debate político dos acontecimentos e para a estruturação das medidas necessárias ao atendimento das reivindicações específicas da classe estudantil”.
O recuo foi provisório. Dentro de mais alguns meses o movimento estudantil e popular tomaria novamente as ruas nas maiores manifestações de enfrentamentos à ditadura militar: a sexta-feira sangrenta e a passeata dos cem mil. Esse é assunto para alguma de minhas próximas colunas.
Bibliografia
DIRCEU, José & PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a ditadura: movimento de 68 contado por seus líderes. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento estudantil e ditadura militar (1964-1968). São Paulo: Papirus, 1987.
POERNER, Artur J. O poder jovem. São Paulo: Civilização brasileira, 1979.
REIS FILHO, Daniel Aarão & MORAES, Pedro de. 68: a paixão de uma utopia. São Paulo: FGV, 1988.
SAES, Décio. Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985.
SANFELICE, José Luís. Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. Campinas (SP): Autores Associados, 1986.
SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. São Paulo: Global, 1992.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
VALLE, Maria Ribeiro do. 1969: o diálogo é a violência. Campinas (SP): Unicamp, 1999.
VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. São Paulo: Nova Fronteira, 1988.
*É historiador, diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
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