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Memórias do cárcere no centenário de Nelson Mandela

por Pedro Alexandre Sanches — publicado 19/07/2018 00h15, última modificação 18/07/2018 15h50
No livro 'Mandela - Meu Prisioneiro, Meu Amigo', ex-carcereiro relata tempo de reclusão do líder anti-Apartheid sul-africano que completaria 100 anos
Juda Ngwenya/Reuters
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Em 1994, três anos após a libertação, Frederik de Klerk empossa Mandela como presidente negro eleito pela África do Sul, após 46 anos de Apartheid
Um dia, no início dos anos 1980, o carcereiro de Nelson Mandela no presídio da Ilha Robben flagrou um bebê escondido por um cobertor nas mãos da esposa do líder sul-africano, Winnie Mandela. Ela carregara clandestinamente a neta Zoleka, de 4 meses, no barco que levava à ilha situada no Oceano Atlântico, a 11 quilômetros da costa da Cidade do Cabo, uma das capitais da África do Sul, onde Mandela cumpria sentença de prisão perpétua, por “terrorismo”, desde 1964.
Winnie suplicou ao carcereiro que deixasse o líder anti-Apartheid segurar ou ao menos ver a neta por alguns segundos. Christo Brand, o carcereiro, negou peremptoriamente o pedido e o dinheiro com que Winnie pretendia demovê-lo.
Enquanto ela aguardava a visita ao marido, Christo segurou a bebê e a levou até a cabine onde Mandela também aguardava, sem que Winnie soubesse. O avô observou a neta durante 30 segundos, e manteve esse segredo com Christo até depois de ser libertado, em 11 de fevereiro de 1990, após 27 anos de pena cumprida. 
A cena de subversão da ordem entre prisioneiro e carcereiro integra o relato de Christo Brand em Mandela – Meu Prisioneiro, Meu Amigo, publicado originalmente em 2014 e lançado agora no Brasil pela Editora Planeta.
Branco, pobre, descendente de holandeses que cresceu na zona rural, Brand, após o serviço militar, aos 19 anos, em 1978, tornou-se agente penitenciário e foi enviado à inóspita e isolada Ilha Robben, populada por prisioneiros políticos, a maioria deles era de negros.
“A minha ignorância da história fez de mim um candidato ideal e, quando me avisaram que ajudaria a vigiar os criminosos mais perigosos da África do Sul, acreditei”, escreve, apoiado pela jornalista britânica Barbara Jones, correspondente na África. 
Brand afirma que até então nunca ouvira falar de Mandela nem do Congresso Nacional Africano (CNA), organização anti-Apartheid que o prisioneiro político liderava desde antes da prisão. Brand era cidadão comum num regime político que trabalhava incessantemente para apagar a lembrança da existência do líder junto à população sul-africana, sobretudo a marginalizada maioria negra.
 À chegada em Robben, foi informado de que “trabalharíamos com os maiores assassinos e estupradores do país, piores que os bandidos que encontramos antes e depois, e tão perversos que foram sentenciados à prisão perpétua na ilha”. Encontrou um homem de 60 anos que, aos poucos, foi percebendo não se parecer em nada com o retrato que lhe haviam imposto. De perto, o diabo não era tão feio como pintavam.
Meu Prisioneiro, Meu Amigo flagra as memórias do cárcere sob a ótica de um algoz apaixonado pelo prisioneiro, nalgum tipo de inversão da célebre Síndrome de Estocolmo. Não é à toa, já que, em 1994, Mandela tornou-se o primeiro presidente eleito (com 62% dos votos) após 46 anos de vigência do regime de segregação racial imposto por colonizadores brancos de origem holandesa e inglesa aos africanos negros nativos.
Até sua morte, em 2013, Mandela manifestou gratidão a Christo. Eleito presidente, ele e os demais líderes do CNA com que Brand conviveu no cárcere realocaram o ex-carcereiro em postos como o de assessor parlamentar à época da Assembleia Constituinte pós-Apartheid. Foi nesse momento que o presidente tirou o ex-algoz do armário:
“Eu tinha secretamente apreciado a ideia de – até Mandela anunciar o fato com tanto alarde na frente de todos – ninguém importante, fora os rivonianos, saber que eu tinha sido um carcereiro. Agora todos sabiam”.
Rivonia, subúrbio de Johannesburgo, sediou, em 1964, o julgamento que sentenciou Mandela e mais sete militantes que viviam clandestinos numa fazenda de onde moviam ações de sabotagem ao regime por parte do Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), o braço armado do CNA.
À época, os africâneres (cidadãos africanos de origem holandesa e inglesa) no poder empilhavam normas segregacionistas como a Lei dos Locais Públicos Separados (que impunha separação física entre brancos e negros em ônibus, hospitais, escolas, banheiros públicos e até em lápides em cemitérios), a Lei de Proibição de Casamentos Mistos e a Lei da Imoralidade (que governava os corpos vetando relações sexuais entre negros e brancos).
Inicialmente um dos quatro carcereiros em contato direto com Mandela, Brand ganhou confiança simultânea dos dois lados e foi promovido ao Gabinete do Censor, de onde trabalhava na censura de correspondências e de tudo que circulasse entre a prisão e o mundo exterior, e também na interceptação de conversas entre encarcerados, advogados e visitantes.
Ele conta que na Penitenciária Victor Verster, última estada da pré-libertação, onde Mandela desfrutava de casa privativa e algum conforto, até as árvores do quintal eram grampeadas.
As descrições de Brand encorpam o mito Mandela, retratado em trabalhos forçados, recebendo menor ração alimentar em relação a prisioneiros não negros, em solidão extrema, na obsessão (sabotada diuturnamente pelos dirigentes do presídio) por estudar incansavelmente na prisão.
“Os seus anos de encarceramento passarão mais rápido se você se aprimorar pela educação”, dizia aos companheiros, em sugestão incorporada pela experiência presente do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva no isolamento em Curitiba.
A narrativa de Brand demonstra que nunca, em momento algum, o regime de força conseguiu apagar a presença do líder revolucionário no imaginário sul-africano. A relação de amizade e confiança cultivada com o carcereiro é um de muitos testemunhos muito vivos da inexorabilidade da História com H maiúsculo.
Atualmente, Christo Brand atua como administrador de lojas de souvenires no circuito memorial a Mandela, fincado entre a costa e a Ilha Robben. O algoz, ao contrário do prisioneiro, acabou por se manter indefinidamente atado ao local do encontro original.