terça-feira, 6 de novembro de 2018

O brilho da inteligência na era do dinheiro e do cinismo

Cinema

O brilho da inteligência na era do dinheiro e do cinismo

Filme de Denys Arcand, 'A queda do império americano', mostra o mundo atual como "uma catástrofe em que imbecis adoram cretinos". Familiar?

 
06/11/2018 14:31
(Divulgação)
Créditos da foto: (Divulgação)
 
Inteligência e cinismo no mundo capitalista. As duas vertentes de mais um brilhante roteiro do filme – uma comédia dramática –- escrito e dirigido pelo canadense de Quebec, Denys Arcand, intitulado A queda do império americano. Exibido em algumas concorridas sessões do Festival do Rio, deve estrear no Brasil ano que vem, depois de lançado nos Estados Unidos, no início de 2019. Trata-se de programa imperdível.

O filme relembra a cloaca em que o mundo capitalista se transformou neste seu estágio final, da queda. Fala sobre o festival de hipocrisia, mentiras e impunidade nos círculos em que o valor do dinheiro é o bem único, e ganhá-lo em grandes quantidades é o objetivo maior.

"O dinheiro tem a sua linguagem", diz Arcand através de seus personagens. "As pessoas que não vão a Dubai ou para as férias em Bali não entendem como ela é". 

Segundo ele, o mundo de agora é uma "catástrofe" no qual "imbecis adoram cretinos". Familiar? 

É mais um filme oportuno, feito à medida do Brasil pós 28 de outubro no qual imbecis, além de adorar cretinos, criam heróis nauseabundos. 

La chute de l'empire américain é uma mistura de estilização e fábula com a visão real do mundo hoje. Um misto de esperança e ingenuidade que flerta com o sentimentalismo em nome da Beleza, à qual o diretor canadense, nos seus filmes, sempre se mostrou particularmente sensível.

O foco do lendário cineasta de Montreal, hoje com 77 anos de idade, continua o mesmo. Sua visão de mundo é petulante e provocativa. Arcand martela uma mesma tecla. As denúncias de mazelas sociais (no grande sucesso de O declínio do império americano, de 1986), as ideologias neoliberais (Invasões bárbaras, de 2002) e agora, na maior "catástrofe moral" do nosso tempo, como ele afirma, a obsessão por obter dinheiro; vírus devastador inoculado pelo capitalismo.

A trama que detona a história do filme é esta: Pierre-Paul é um jovem (ator Alexandre Landry, excelente) de 36 anos, muito inteligente e PHD em Filosofia, que trabalha como entregador de encomendas. Um dia ele encontra, caídas na rua, duas sacolas cheias de muito dinheiro, que um assaltante de uma loja abandona aos seus pés, antes de fugir, ferido. (Lembre-se do acaso de Woody Allen.)

Pierre-Paul precisa decidir rapidamente: apanha as sacolas antes da chegada da polícia, sem ninguém ver e deixa a cena do crime ou ignora a tentadora fortuna e segue em frente na vida modesta de motorista e entregador. Ele decide carregar consigo as bolsas e levá-las para casa. 

Vai desafiar o seu próprio comentário, no prólogo do filme, quando diz à namorada que cobra sua habilidade - que ele não tem - para ganhar mais dinheiro. 

"A inteligência atrapalha", ele responde. Para Pierre-Paul (ou seja, Arcand), os intelectuais não são inocentes. "Althusser enforcou a mulher. Sartre era stalinista e Heidegger, nazista". Ao que a namorada reage: "É que o que conta é o coração".

Pierre-Paul acaba montando uma equipe de cérebros "criminosos" para ajudá-lo e assessorá-lo na aplicação da fortuna que leva para casa. A mais bela prostituta da cidade por quem ele se apaixona seriamente. Um ex-detento que acaba de se formar num curso universitário, em ciências econômicas e contáveis, feito de dentro da prisão. A ex-namorada funcionária de um banco. O próprio ladrão sobrevivente do assalto. 

E um personagem magnífico, o feiticeiro financeiro de colarinho branco: um famoso operador de grandes fortunas aplicadas em paraísos fiscais, especialista emérito em evasão fiscal e em jogos do sistema realizados nas barbas da polícia – e do governo. No seu luxuoso escritório, Wilbrod Taschereau é sócio de políticos e de ex-ministros aposentados. Apenas o seu personagem vale o filme inteiro. O ator é Pierre Curzi.

Taschereau comete algumas pérolas: "Os banqueiros americanos emascularam os banqueiros suíços". E "lavar dinheiro em fundações? Hum...  há centenas delas... África? É um caso perdido. Mas uma fundação para crianças doentes impressiona..." Outras: "Tudo é tão relativo. Aqui no Canadá, você não pode bater na sua mulher, mas se for com ela para o Paquistão não tem problema dar uma surra nela"E sobre paraísos fiscais: "Não existe paraíso na terra."

Será mesmo o fim do fim do império com o roteiro edificante de Arcand? Vá ver o que ele diz sobre a guerra da inteligência contra o cinismo. 

Aqui, os nossos doleiros vão adorar o filme.

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