Viúva de Paulo Freire lança a obra Pedagogia do Compromisso
A obra é lançada em um momento em que Paulo Freire volta a ser atacado por movimentos conservadores. O presidente eleito Jair Bolsonaro fala em expurgar as ideias do educador das escolas
A viúva de Paulo Freire, Ana Maria Araújo Freire, lança o livro “Pedagogia do Compromisso: América Latina e Educação Popular”, pela editora Paz & Terra. A obra reúne transcrições de entrevistas, conferências e discursos feito pelo patrono da educação não só no Brasil, mas na Argentina, Chile e Uruguai, além de um manifesto em homenagem ao povo da Nicarágua.
Os textos que compõem o livro, alguns inéditos, datam do final dos anos 80 e início dos 90 e reafirmam as convicções de Freire em relação à politicidade da educação, ao seu sentido ético e estético e ao significado da esperança como motor da prática de educadores progressistas.
Em uma das passagens do livro, o educador coloca: “eu acredito que é preciso cuidar da especificidade dos intelectuais em um processo de Educação Popular; é preciso aproveitar tudo o que cada um deles sabe, pode e queira fazer bem feito. Deve-se, por exemplo, pedir aos matemáticos: ‘Venham conosco num sábado para ver como os garotos do povo vendem e como fazem o cálculo sem saber nada da chamada Matemática oficial. Estudem propostas para ver como podemos melhorar o ensino da Aritmética e de outros campos da Matemática em áreas populares’. Se você é matemático ou biólogo, não pode ficar satisfeito somente com as aulas que dá na universidade. Qualquer especialidade pode ser importante para apoiar a Educação Popular, para alcançar uma compreensão mais humanizada e mais científica do que é a identidade cultural do povo”.
Nita, como é conhecida Ana Maria, coloca que a nova obra é uma continuidade de seu dever e, sobretudo, de seu gosto de perpetuar a obra de Paulo Freire – uma delas, a Pedagogia do Oprimido, produzida enquanto o educador cumpria exílio durante o regime militar, completa 50 anos em 2018.
Legado x conservadorismo
As ideias de Paulo Freire voltam a ser alvo de ataques conservadores. O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) trazia já em seu plano de governo a ideia de “expurgar” a ideologia do educador, vinculando-a a um projeto de modernização de conteúdo, que tem como principal objetivo acabar com a forte doutrinação escolar, agenda também defendida pelo Escola sem Partido, movimento do qual o presidente é apoiador.
Para o professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti, uma das hipóteses do ódio a Freire tem a ver com suas ideias de que a educação transforma pessoas e pessoas transformadas podem transformar o mundo.
“Isso apavora aqueles que não desejam mudanças, aqueles que estão bem confortáveis mergulhados em seus privilégios. Isso apavora, sobretudo, as “elites do atraso”, aponta o educador, ao que acrescenta:
“Se a população começar a ter acesso a uma educação problematizadora, que questiona a desigualdade social e econômica, os privilégios das elites, a ausência de mecanismos de controle social, por exemplo, sobre a mídia e sobre o sistema financeiro, que questiona a injustiça social e todas as formas de preconceito e de discriminação, enfim, uma educação que problematiza nosso “estar no mundo” e a forma como o mundo está sendo e mostra que a realidade é algo mutável pela organização do povo…Isso tudo tira o poder de quem não quer perder privilégios, de quem não quer um Brasil para todos e todas. Nossa sociedade pode mudar, porque a mudança da sociedade depende do grau de conhecimento da população sobre sua realidade e isso Paulo Freire formulou densamente em sua filosofia educacional.
Para Gadotti, a atuação do Escola sem Partido se dá no sentido inverso pregando a falta de espírito crítico, de reflexão e da convivência civilizada. “Na falta de argumentação, entra em campo a ofensa, a desqualificação, o preconceito, o nascimento do ódio e da intolerância. O movimento é um sintoma de uma sociedade manipulada pelo complexo conservador midiático, empresarial e religioso, em oposição ao pensamento de Paulo Freire”, declara.
No ano passado, uma proposta legislativa criada por uma estudante apoiadora do movimento [Escola sem Partido] queria retirar o título de patrono da educação de Freire, concedido em 2012, pela presidenta Dilma Roussef. A justificativa era que Freire é um filósofo de esquerda e que os resultados de seu método de educação são “catastróficos”, com fracasso, inclusive, nas avaliações internacionais. A proposta foi rejeitada pela Comissão Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal.
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Gadotti também pontua um erro na perspectiva de responsabilizar Freire pela qualidade da educação brasileira. “Suas ideias nunca penetraram de forma hegemônica as políticas educacionais”, assegura. “Contestar Paulo Freire é, na verdade, contestar a própria democraciaque ele defendia ao lado de outros grandes educadores do século XX. Para todos e todas que desejam conhecer e viver uma pedagogia de inspiração humanista, sua obra é imprescindível e deveria estar em todas as escolas”, coloca o pesquisador.
O acervo do Educador Paulo Freire foi inscrito no Registro Nacional do Programa Memória do Mundo (MoW Brasil), em 2014, no Registro Regional da América Latina e do Caribe do Programa Memória do Mundo (MoW LAC), em 2015 e, em 2017, no Registro Internacional, como patrimônio documental da humanidade. Pedagogia do Oprimido é o único livro brasileiro a aparecer na lista dos 100 títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa consideradas pelo projeto Open Syllabus. De acordo com a Google Scholar – ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica – Freire é o terceiro pensador mais citado do mundo em trabalhos acadêmicos de universidades de humanas.
Gadotti entende que o movimento que está por trás da campanha contra Freire é ideológico. “Está ideologicamente comprometido com a “colonização das mentes’ e lança mão de mecanismos de alta perversidade, principalmente, quando incita violência entre alunos e professores, estimula desconfiança e vigilância por parte dos alunos e familiares em relação ao trabalho dos professores”, atesta.
“O professor brasileiro está precisando de valorização, de melhores salários e condições de trabalho, de formação continuada, de acesso à pesquisa, e não de punição diante do direito de se expressar livremente, assegurado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96). O direito de cátedra do professor foi também assegurado, recentemente, pelo Supremo Tribunal Federal. A liberdade é um princípio de toda educação e o ofício de ensinar, uma conquista da humanidade. Sem democracia não há aprendizagem. Intimidar professores é negar ao povo o direito à educação. Expurgar Paulo Freire é expurgar o conhecimento crítico, científico, rigoroso, sensível, afetivo, libertador”, conclui.
Fonte: Carta Capital
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