terça-feira, 30 de abril de 2019

Desgoverno e disrupções em transição regressiva: a turma da demolição

Política

Desgoverno e disrupções em transição regressiva: a turma da demolição

Haveria uma nova esfinge disforme a devorar nas platitudes sinistras das terras tupiniquins?

 
29/04/2019 18:41
(Reprodução/Fernando Badharó/Brasil de Fato)
Créditos da foto: (Reprodução/Fernando Badharó/Brasil de Fato)
 
Meses atrás, eu escrevi um texto no qual buscava identificar os grupos de interesses implicados no início do governo Bolsonaro (publicado em Carta Maior) e antecipava o seu pendor instável, com tensões (auto)disruptivas. Assim como muitos que também versaram sobre o mesmo assunto, não alcancei prever a rapidez e a instantaneidade de tal degradação, a vertiginosa sucessão de contraditos intestinos e de trapalhadas governamentais, a liquidação precoce de capital político gerado pelas expectativas eleitorais. 

Diante de tamanha demonstração de incompetências governamentais, muitos quedaram desconfiados e se questionando: não seria esta uma nova forma de (des)governar? Um governo que se dispõe como oposição a si próprio e que se nutre de instabilidades cotidianas para decompor a institucionalidade estatal no “varejo”, enquanto encaminha a agenda de reformas ultraliberais no “atacado”?

Haveria uma nova esfinge disforme a devorar nas platitudes sinistras das terras tupiniquins?

Projetar intencionalidade e engenhosidade disruptiva ao novo governo seria superestimar a capacidade política de seus expoentes? Ou desconsiderar tal possibilidade seria subestimar a inteligência estratégica de seus mentores e conddotieris ocultos? 

Creio que existem termos de contextualização que precisam ser melhor alinhavados para não quedarmos aprisionados em falsos impasses, sejam mitológicos ou de mitômanos.

Em uma primeira contextualização sumária, de abrangência global e contemporânea, convém destacar alguns fenômenos emergentes, cujas versões domésticas têm se constituído de modo particular. O processo de consolidação do bloco histórico da plutocracia rentista consubstancia um conjunto de tendências, exaustivamente analisadas por muitos autores, que possuem sinergias, mas distintas ênfases, sincronicidades e termos de viabilidade e factibilidade.

É fenômeno global o sequestro de Estados nacionais para o parasitismo do mercado financeiro pela via da agiotagem de orçamentos públicos; para a interposição de institucionalidades de Direito Privado e o agenciamento empresarial de estabelecimentos e serviços públicos; para a substituição de governos direcionais por instâncias e dinâmicas de governança intercorporativa; para a desconstituição de prerrogativas regulatórias do Estado sobre os mercados e o concomitante incremento de formas coercitivas de controle societário pela via do Lawfare e ampliaçao de regimes de exceção; para redução da égide democrática aos termos de (auto)regulação econocrática com a institucionalização de Estados Financeiros de Exceção (nos termos analisados por Agambem) com a proeminência de diversas modalidades de Lawfare... Enfim, trata-se de regressividade pós-moderna que paradoxalmente nos remete aos idos da pré-modernidade liberal (só que em vez de aristocracia decadente, lidamos com plutocracia predatória), cujas versões em nosso continente tendem a ser mais despudoradas, cruas e cruéis.

Também emergem novas formas de fascismos institucionais e sociais (nos termos analisados por Boaventura Santos), com a ascenção de grupos proativos em bolhas virtuais, nos sistemas institucionalizados de ação e no mundo da vida. Grupos adestrados em disseminar ódio e mentiras, aptos a inflingir constrangimentos, intimidações e outras de violência. Aqui no Brasil, já são evidentes, embora ainda dispersos em torno de um Messias inábil.

Em se tratando de táticas e meios utilizados para a disputa ideológica prepondera globalmente a indução de pós-verdades e mitomanias, com ênfase na relativização dos termos usuais para a validação de conhecimentos. Multiplicam-se instâncias virtuais instrumentalizadas pelo uso sistemático de tecnologias seletivas para a disseminação de enredos e narrativas (uso de robots, seleção e separação algorítmica de “tribos” e “rebanhos” etc.). Entre nós, tais táticas e dispositivos tiveram papel crucial nas eleições presidenciais e estão sendo experimentadas como meios de governo (por enquanto, ainda de forma sectária).

Sobre estilos governamentais, busca-se naturalizar globalmente o que antes era definido como “politicamente incorreto” sob a aura do autêntico despudorado (sob inspiração performática de Trump). Tal estilo coaduna com um perfil de populismo de grande apelo para determinados sensos comuns Aqui no país, além do arremedo caricatural e carismático do presidente autêntico patético , esse estilo de populismo possui grande ênfase e repercussão em determinadas instâncias micropolíticas, tais como aquelas conduzidas por mercadores da fé religiosa... O que não pode ser desprezado em razão de sua capilaridade, alcance e abrangência.

 Tais fenômenos mais destacados no plano global revelam pretensões para a institucionalização (ou imposição) de uma agenda ética, política e econômica, que depende da regressão de direitos humanos, sociais e políticos. Daí, porque muitas vezes implicam no advento de transições regressivas com dinâmicas particulares, a depender de cada caso nacional ou regional.

Creio ser importante distinguir os termos e condicionalidades para transições regressivas em relação aos outros, típicos e característicos das transições conservadores (que Gramsci denominava como revoluções passivas). Nas transições conservadoras (tivemos inúmeras no nosso país), apesar da reciclagem e manutenção do status quo e da ordem dominante, existem quase sempre algumas alternativas, janelas de oportunidades, para se buscar mediações políticas consentidas e se iniciar e alcançar reformas sociais/institucionais compensatórias, progressivas e incrementais (eis os exemplos da institucionalização do voto feminino, da legislação trabalhista, do Sistema Único de Saúde e muitos outros). Nos casos de transições regressivas, não há porque se buscar tais janelas incrementais e alternativas compensatórias porque não são permissíveis sequer como brechas numa agenda neocolonial e ultraliberal na periferia do mercado financeiro.

Assim mesmo, perdura uma questão genérica: governabilidade palaciana instável, (des)governança intercorporativa volátil e (des)governo com (auto)disrupções intencionais seriam úteis para amparar e sustentar transições regressivas?

A resposta parece óbvia. Somente em condições dramáticas e extremas, de guerras ou de assaltos para saques e fugas (Átila e seus hunos não eram afeitos aos dilemas de governo e governabilidade porque nunca se preocuparam em cultivar terras arrasadas) existem exemplos históricos de que incompetências governamentais, ingovernabilitade e medidas disruptivas tenham utilidade estratégica. Mesmo em regimes ditatoriais e totalitários muito fechados, tais empenhos disruptivos seriam insustentáveis em médio e longo prazo. Diga-se de passagem, mesmo os territórios dominados por milícias necessitam de mínima governabilidade e de alguma competência governamental.

 Em sendo assim, desgovernos com tais características só poderiam ter utilidade instrumental disruptiva para serviços de desmonte e demolição, ainda assim, temporária.

Em outra sumária contextualização intento enfocar algumas particularidades históricas brasileiras, inclusive no que se refere a fenômenos inusitados. Habituados que estamos a transições conservadoras, lidamos raramente com contextos de transições regressivas.

A chegada ao poder presidencial de um expoente populista surfando numa especie de udenismo inorgânico e descerebrado não é novidade em nosso país (veja texto sobre o assunto também publicado em Carta Maior). Em duas experiências anteriores (Jânio e Collor) também havia afã reformista na implicação conjuntural de grupos de interesses com agendas estratégicas (inclusive da própria UDN original no início do governo de Jânio e, no caso abortivo de Collor, grupos com prenúncios neoliberais), entretanto, as idiossincrasias e incompetências dos atores presidenciais puseram tudo a perder em curto prazo. A instabilidade e as expectativas frustradas deixadas por Jânio ajudaram a ocasionar uma ditadura militar, as de Collor foram atenuadas e absorvidas em um mini transição conservadora (Governo Itamar) e num ensaio e arremedo de reformas neoliberais parciais e incompletas (Governo FHC).

Acontece, que, se Bolsonaro surfou no udenismo redivivo e reativado midiaticamente, não se trata de um ator inorgânico descerebrado qualquer. Alguns o identificam como a personificação do lumpesinato no poder governamental e, convenhamos, o pendor (auto)disruptivo seria, então, de sua natureza, pelo menos na fábula do escorpião. O atual presidente e seu grupo íntimo poderiam até ser aliados e cúmplices dos grupos orgânicos e estratégicos ao rentismo periférico, mas sua mentalidade e vinculação miliciana não alcançaria mais do que obtusas táticas de varejo, tão ao gosto de seus pares (das multas às “brigas de galo”). Poderiam até ser manipulados, desde que também pudessem ser controlados e “protegidos de si próprios” até que fizessem o “trabalho sujo”. 

O ponto que chegamos: não se trata de dilemas de governo, de governabilidade palaciana ou de governança intercorporativa, mas de gangstereagiotas tentando “gerenciar” capatazes milicianos, sob a ambígua cumplicidade dos sócios menores (agenciadores e atravessadores de diversos mercados).

Dentre os sócios que fizeram a aposta disruptiva que vigora desde o golpe de 2016, não parece haver agendas estratégicas pós-disruptivas viáveis em médio prazo. Milicianos neofascistas, olavetes delirantes, lavajatistas juramentados (diria Odorico Paraguassú), mercadores da fé alheia e da pequena política não possuem agenda estratégica nem de curto prazo, seja pela mentalidade obtusa, seja pela cincunscrição corporativa de seus interesses. Assim, esses grupos tendem a ser instrumentalizados em troca de compensações no varejo, seja para aprofundar e incrementar disrupções ou para reforçar a agenda propositiva de grupos dirigentes mais orgânicos (caso atuem de modo efetivamente estratégico).

Os milicos que migraram da caserna para o novo governo tampouco possuem uma agenda estratégica de políticas governamentais, para além do retrovisor. Entretanto, não parecem muito dispostos a continuar apostando em disrupções contínuas e passam a ser vistos como fiadores para o viés econômico da transição regressiva em curso. Seriam o plano “B” no horizonte de curto prazo (até a próxima eleição presidencial), por isso mesmo, já torpedeados pelo clã miliciano, seu astrólogo de plantão e as bases neofascistas

O grupo palaciano dos Chicagos's boys anunciou e parecia dispor de agenda estratégica para uma transição regressiva rumo ao neoliberalismo de periferia. Especulava-se sobre sua capacidade dirigente sobre os outros grupos aliados e sobre a sua habilidade para a condução de arranjos de governança com jogos de soma positiva entre os sócios. Nos meses iniciais de governo, tem demonstrado somente restrita capacidade para chefiar a turma da demolição (tigrões da capatazia).

Considerando a conjuntura inicial deste governo propenso às disrupções e instabilizações, possíveis decorrencias precisam ser analisadas. Uma Lúmpen milícia governamental e seus sócios de ocasião estão sendo utilizados para realizar o “trabalho sujo” de desmonte estatal e agenciamento empresarial de políticas públicas, da desconstituição de direitos e o advento de regime ampliado e permanente de exceção, todavia, sem “preparar o terreno” para o que tende a vir depois...Mas, o que viria depois, em se tratando da particularidade brasileira?

Evidentemente a política pública não se reduz e nem se resume aos termos de governabilidade ou da capacidade de gestão governamental, mesmo em se tratando de indigências e incompetências, senão intencionais, pelo menos degradantes. Tampouco depende unilateralmente dos propósitos anunciados em ímpetos autoritários. O problema maior seria passarmos das disrupções conjunturais, talvez remediáveis, para as disrupções estruturais, nas quais as dinâmicas institucionais de governos e as condições de governabilidade poderão escapar da esfera pública e tenderão a se tornar meros apêndices procedimentais sob guarda da capatazia que zela pelos interesses predatórios da plutocracia rentista e de outras oligarquias congêneres.

Trata-se, pois, de se tentar deter a degradação de direitos humanos e sociais, a demolição do Estado brasileiro e o desmonte das políticas públicas de seguridade social, antes que os escombros caiam mais uma vez sobre aqueles que, aí sim, têm vivido secularmente em permanente regime de exceção Trata-se, sobretudo, que a oposiçao real sobrepuje a oposição performática (muitas vezes calcada em paradoxal iluminismo pós-moderno), que busque convergências propositivas e programáticas, que apresente alternativas estratégicas viáveis, apara disputar projetos e programas políticos e não somente as eleições e os governos. 

Alcides Miranda é Professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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