terça-feira, 30 de abril de 2019

Do outro lado do buraco negro

Política

Do outro lado do buraco negro

Quem não entende nada de ciência não sabe que, sem humanidade, a ciência não faz sentido

 
29/04/2019 18:31
 
 
Adivinha quem vai pagar essa conta?

Para quem acredita em coincidências, aqui vai uma das boas: depois da revelação de que o governo Bolsonaro prometeu conceder 40 milhões em emendas a cada parlamentar que votar a favor de sua proposta de reforma da previdência, foi feito o anúncio de cortes no orçamento de cursos de humanas das universidades públicas.

Claro que uma coisa não tem nada a ver com a outra, pois todos nós nascemos ontem. A promessa é que a "economia" com cursos como filosofia, sociologia, e história seria direcionada a outros que supostamente tragam “retorno imediato ao contribuinte", disse o presidente, logo após uma declaração sobre fatores de risco que levam à amputação de pênis.

O "pessoal de exatas"

A partir dessa nova diretriz (me refiro à diretriz do corte de recursos das "humanas", não à amputação de pênis, que é assunto das ciências biológicas bolsonaristas), os cursos listados como recomendados aos brasileiros são: medicina, engenharia e veterinária.

A ideia é tão tosca e mal formulada que Bolsonaro e Weintraub sequer se deram ao trabalho de citar alguma área mais inovadora, como a de ciência de dados, robótica e inteligência artificial.

E mesmo isso seria uma asneira. Alguém precisa avisar o olavete do MEC que grandes corporações de tecnologia, como Google e Microsoft, estão contratando, imagine você, cada vez mais filósofos. Deveriam apresentá-lo também a Peter Thiel, fundador da PayPal, que é formado em filosofia.

A Amazon fez sua fortuna vendendo livros principalmente de humanas, e não de medicina, engenharia e veterinária. A Disney, Netflix, HBO, Globo e a Record precisam de gente de humanas para escrever seus roteiros de filmes, séries e novelas. Harry Potter, Game of Thrones e O Alquimista são de humanas. J. K. Rowling é formada em francês e em filosofia clássica. George R. R. Martin cursou jornalismo. Paulo Coelho, o autor do livro mais traduzido do mundo - 69 idiomas - começou um curso de Direito, mas abandonou, claro. O "retorno imediato aos contribuintes" dado por eles tem sido bastante grande.

Empresas especializadas na contratação de pessoal nas áreas de tecnologia precisam de gente de exatas e de humanas. Mais importante, elas querem candidatos com mente criativa, inteligência emocional, capacidade de identificar e resolver problemas e espírito inovador. Tem gente assim em humanas, em ciências biológicas e em exatas. E tem gente que não se encaixa nesse perfil, tipo Bolsonaro e Weintraub.

É certo que medicina realmente é um campo de trabalho à espera de mais profissionais. Prova disso foi a necessidade de criação do programa Mais Médicos, para importar mão-de-obra de outros países. Engenharia e veterinária, porém, são áreas saturadas. Qualquer pesquisa sobre mercado de trabalho nessas áreas o demonstra.

Para quem é dessas áreas e viu a notícia, a conclusão foi óbvia: o salário médio desses profissionais tende a cair, e seu desemprego, tende a aumentar. Mais uma vez, Bolsonaro conseguiu desagradar gregos e troianos.

O "pessoal de humanas"

A base da matemática, assim como da informática, é a lógica. Onde se aprende lógica? Na filosofia.

Pitágoras, que dá nome ao mais famoso teorema matemático de todos os tempos, era, antes de tudo, filósofo. Descartes, Isaac Newton e Leibniz, idem.

Blaise Pascal era filósofo e matemático. Sua importância foi tal para o desenvolvimento da informática que, em sua homenagem, surgiu uma linguagem de programação chamada... Pascal.

Sem George Boole, que era filósofo, não haveria álgebra booleana, que se tornou essencial para o desenvolvimento da computação. Charles Peirce, fundador da escola filosófica do pragmatismo, também deu contribuições inestimáveis à lógica simbólica.

O escocês Adam Smith era professor de filosofia moral na Universidade de Glasgow. Não foi a toa que escreveu uma Teoria dos Sentimentos Morais, antes de A Riqueza das Nações. Vários biógrafos de Smith consideram que ele dava muito maior importância ao seu primeiro livro do que àquele que o tornaria célebre.

Vilfredo Pareto era sociólogo e cientista político. Na economia, o conceito de "ótimo de Pareto" se tornou corriqueiro.

Winston Churchill, além de ter sido um eminente político britânico e figura central na resistência ao nazifascismo na Segunda Guerra, era também historiador. Uma de suas frases mais famosas é a de que, quanto mais para trás você olha, mais adiante você enxerga. Traduzindo: a história não é só sobre passado. É sobre futuro.

Bolsonaro chegou a colocar uma biografia de Churchill sobre a mesa, em uma de suas transmissões de Facebook, mas pelo jeito não se deu nem ao trabalho de abri-la. Era marketing "fake news".

Alexandre de Gusmão e José Maria da Silva Paranhos Júnior (mais conhecido como Barão do Rio Branco), dois dos maiores expoentes da diplomacia brasileira, eram profundos conhecedores da história do país. Sem o conhecimento construído graças ao trabalho de historiadores, uma parte importante do território brasileiro não seria nossa.

Sistemas educacionais de excelência têm buscado integrar diferentes disciplinas, e não estigmatizar qualquer uma delas. A Finlândia tem buscado estimular o aprendizado com aulas colaborativas, com professores de diferentes disciplinas atuando de forma integrada.

O valor das "humanas", segundo um ícone das "exatas"

O dia em que cada um de nós achar que as ciências humanas não têm importância, é porque chegamos à conclusão de que a própria humanidade também não vale nada.

O físico Albert Einstein, criador da teoria da relatividade, era também um filósofo da ciência. Seu livro Como Vejo o Mundo é um livro de filosofia e em defesa do humanismo, influenciado pelo neokantismo.

Mais do que isso, Einstein vivia rodeado de filósofos com os quais debatia constantemente. Tudo "pessoal de humanas", como Ernst Cassirer, Henri Bergson, Moritz Schlick, Hans Reichenbach e Philipp Frank.

Em uma carta, Einstein chegou a dizer que, se não tivesse lido o Tratado Sobre a Natureza Humana, de David Hume, talvez não tivesse conseguido formular a teoria da relatividade.

Quem não entende nada de ciência não sabe que, sem humanidade, a ciência não faz sentido.

O que há do outro lado do buraco negro?

Einstein continua sendo lembrado e celebrado. Recentemente, cientistas conseguiram montar o quebra cabeças de inúmeras imagens do universo, provenientes de diferentes satélites, e divulgaram a primeira foto de um buraco negro. Ela guarda semelhança surpreendente com as simulações feitas tendo por base, mais que as equações, a imaginação de Einstein: um anel radiante de luz sendo sugado por um buraco sem fundo, sem luz.

A única coisa que ainda não se pôde comprovar é o que há do outro lado do buraco negro. A minha suspeita é de que pra lá do buraco negro há três pessoas: Bolsonaro, Weintraub e Olavo de Carvalho. O MEC, onde ainda há luz, está aos poucos sendo engolido.

Antonio Lassance é um "cara de humanas", doutor e mestre em ciência política e graduado em história pela Universidade de Brasília

Nenhum comentário:

Postar um comentário