quarta-feira, 26 de junho de 2019

Victor Moreto: Moro, Dallagnol e a casta dos doutores de um país cortesão

Victor Moreto: Moro, Dallagnol e a casta dos doutores de um país cortesão
Fotos; Eduardo Matysiak
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Victor Moreto: Moro, Dallagnol e a casta dos doutores de um país cortesão


26/06/2019 - 21h55
Moro, Dallagnol e a casta dos doutores
por Victor Moreto, especial para o Viomundo
Um juiz brasileiro ganha, em média, um salário de R$ 47 mil. O teto do funcionalismo público é de quase R$ 34 mil.
Ou seja: quem justamente deveria garantir o respeito às leis, já na remuneração se mostra transgredindo o código que deveria resguardar.
Numa década em que o salário mínimo obteve bons rendimentos, 62% de ganho real, os membros do Judiciário conquistaram benefícios de 134% acima da inflação.
Mais do que o dobro.
Uma pessoa que passa no concurso para o Ministério Público ganha, de partida, catorze vezes a renda média brasileira. Na União Europeia, um juiz da mais alta corte ganha 4 vezes a média da região.
Não para por aí. O custo do sistema judiciário para a Alemanha, por exemplo, é de 0,32% do PIB nacional. O do nosso é de 1,4%, 4,3 vezes mais. Em cifras absolutas: R$ 84 bilhões. Desse montante, quase a totalidade (89%) foi de gastos com pessoal em 2015.
Sabe o que nós temos menos do que a Alemanha? A quantidade de juízes. São 8,2 magistrados para cada 100 mil habitantes; a terça parte do que o país europeu possui proporcionalmente.
O que isso significa?
Que pagamos mais do que os países do mundo democrático a um membro da magistratura por um serviço concentrado em poucos seres humanos.
Ou seja: preferimos pagar muito a poucos. E, por serem poucos, são “deuses” e ricos.
Isso porque o Brasil possui a maior quantidade de empregados na área jurídica de todos os países do planeta. Mas, juízes, não: são poucos.
Analogamente, vimos uma classe médica brasileira rechaçar a vinda de cubanos para completar as vagas não preenchidas pelo programa “Mais Médicos” nos rincões do país.
Na cabeça de quem entende a profissão por privilégio e status, é preferível existir poucos médicos para valorizar o salário de cada um do que estender o serviço de saúde num país com mais de 210 milhões de habitantes, sendo a maioria pobre e sem acesso a uma simples consulta.
Médicos e juízes são provenientes históricos das mais altas classes brasileiras.
Não à toa são chamados de “doutores”. Houve, inclusive, um decreto de D. Pedro I em 1827 obrigando médicos e operadores do direito a serem identificados como tal.
É característica de um país cortesão, acostumado à realeza dos costumes, manter sua rebuscada classe inatingível.
Moro e Dallagnol são frutos de um sistema que desempenha o poder moderador – o Judiciário – que é literalmente “vitalício”, segundo a Constituição Federal.
Por lei, nada é vitalício no Brasil. Nada, nem as maiores penas podem passar de trinta anos. Mas o cargo do juiz é perpétuo.
Por isso, não surpreende o tom das conversas entre a casta de procuradores e a casta da magistratura nacional.
Como pressupor que um juiz federal criado na burguesia paranaense, tradicionalmente conservadora, beirando a um fascismo estrutural (como a da minha terra, o Rio de Janeiro), possa encontrar na figura de Lula alguma empatia?
Lula é o “nine” – assim, nove em inglês – para Moro. Nove é a quantidade de dedos que Lula tem nas mãos. Perdeu um trabalhando num torno mecânico em sua época de metalúrgico.
Dessa forma, dizem muitas fontes, Moro refere-se a Lula. Em inglês, um cortesão do sul deprecia um nordestino de origem pobre, que mesmo depois de duas vezes presidente da república, mostra evidentemente de onde veio.
Isso soaria factível em 1822, em 1898, em 1940 e em 2019. A mesma frase e o mesmo contexto.
Não importa que seja um presidente, um porteiro ou um cientista: no Brasil, se você atua como um cortesão, mesmo sendo pobre você consegue uma “graça” oferecida pela elite.
Essa é uma teoria adaptada do que disse o sociólogo Oracy Nogueira sobre a distinção entre racismo de marca e de origem, respectivamente o que ocorre no Brasil e nos EUA.
Oracy percebeu algo fundamental: no racismo dos EUA, quando um branco revela um antepassado negro, essa pessoa perderá imediatamente o seu rótulo de caucasiano, independente de ser rico ou pobre, ou de que hábitos apresenta socialmente.
No Brasil, ao contrário, vale a marca que você atribui aos seus hábitos. Um dos casos mais emblemáticos é o de Machado de Assis, que foi atestado como “branco” em sua certidão de óbito, depois de famoso e de ter frequentado recintos suntuosos. Machado nasceu negro, na condição de vida e na certidão de nascimento.
Mas, acreditando em Oracy Nogueira, ousaria dizer que a distinção se dá também na função de classe.
Lula frequentou os salões mais nobres do mundo, mas se manteve na linguagem popular, na cachacinha e no futebol. Ainda que você questione se isso é real ou não, é essa a persona que Lula faz questão de mostrar publicamente.
Então, é esperável que Moro, Dallagnol – e o resto dos procuradores da operação Lava Jato – tenham ojeriza à figura de Lula. Serviria para ser o sambista irreverente ou o craque da copa, mas não para ser presidente da república, na avaliação desses “nobres” servidores públicos.
A democracia, para esta casta, é um bibelô com sotaque francês e acento moderno yankee.
São expressões em inglês, CEOs, hindsight privilege, livros empilhados – e não lidos, empáfia e pouca atividade empática intelectual.
Pouca disponibilidade psicológica e cognitiva para entender o verdadeiro conceito de ser democrático: respeitar, pesar e valorizar as diferenças, sejam elas quais forem.
Nossos vizinhos, os argentinos de Buenos Aires, também tiveram um processo de modernização cultural que engolia da Europa livros e conceitos como se fossem chás da 5 em louças de porcelana.
A alta sociedade maravilhava-se com Rousseau e Montesquieu, mas a liberdade da população deveria ser mediada pela vontade dos iluminados – eles mesmos – , repelindo hábitos e produtos provincianos.
No início do século 19, a elite porteña já dizia não comprar ou usar os móveis dos artesãos locais porque não merecia aquele tipo de mobília, mas sim os requintados produtos ingleses. E ainda, segundo eles, preconizavam que faria bem à produção local a competição para que aprendessem a marcenaria europeia.
Como a argentina, a elite brasileira também acha lindo o Montesquieu, o Rousseau, a justiça social e a cidadania plena: na Europa.
Veja que não há nada de novo nos conceitos de meritocracia e livre-mercado. Eles saem da boca dos mesmos almofadinhas latino-americanos que estão se lixando para o que representa o popular, tanto na cultura quanto na economia há duzentos anos, pelo menos.
A diferença é que, com o passar dos anos, e a deterioração das condições sociais de um país que se moderniza de forma caótica na periferia do capitalismo, forma-se um mar de miseráveis e outsiders impossível de se ignorar.
O judiciário, formado por gente que teve todas as condições do mundo para estudar, se divertir e viajar – como eu e você que compartilhamos essa leitura – deveria ter a obrigação moral de, ao menos, ser sensível ao país que lhe paga o altíssimo salário.
Mas a regra não é essa, infelizmente.
Segue o jogo cortesão do exclusivismo hereditário: são famílias que se perpetuam em suas castas e usam do cargo, e do poder financeiro, para se manter no status imperial a que um dia pertenceram.
As mensagens reveladas pelo portal The Intercept Brasil, uma mídia tocada por um não-brasileiro, diga-se de passagem, são a prova fiel de algo corriqueiro.
Tão corriqueiro que, mesmo pegos no flagra, os atores não admitem o crime. Agem como agiam nobreza e clero, na Revolução Francesa, contra o povo, combinando o voto para tentar aniquilar todas as aventuras de se tentar equalizar minimamente o abismo desse laboratório tropical de miséria e desigualdade.
Mesmo o judiciário se degradou. Os doutores são Moro e Dallagnol: falam mal sua língua nativa (apesar de se aventurarem no inglês – o que seria o francês há um século), são rasos intelectualmente e quase não leem nada para além do necessário para passar no concurso: sua última e única façanha na vida.
O judiciário brasileiro é coerente com a história do país: um lugar onde se mantém muitos privilégios a poucos habitantes.
Um país de uma elite perversa e hipócrita que pensa no trabalhador para cobrir um “rombo” na previdência e sequer cogita a possibilidade de se questionar a estrutura fiscal que faz com que mi e bilionários não paguem lucros e dividendos, por exemplo. Só outro país concede esta dádiva: a Estônia.
Um judiciário que custa quase 2% do PIB (quando se adiciona o Ministério Público na conta), emprega mais gente do que todos os países do mundo, apesar de dispor de poucos magistrados e figura como um dos trinta mais lentos do planeta (dentre 133 nações).
Esse é o poder que desempata a fatura entre os irmãos mal-falados “Executivo” e “Legislativo”.
Num país que durante séculos, e até hoje, ofereceu poucas alternativas de sobrevivência.
Pior: que sempre sufocou o incentivo à arte e ao senso crítico em geral, com exceção visível da primeira década do século XXI.
Não pode este país querer ascender a um status de primeiro mundo, como querem os conservadores e os ultraliberais, sem financiar a diversidade.
Foi o conceito de valorização da diversidade, ação afirmativa, justiça social e direitos humanos que possibilitou que os países com os mais altos IDHs e GINIs pudessem hoje ser o que são.
Não foi na manutenção de castas intocáveis, nem na negação a direitos básicos de cidadania em nome da lei do mercado, muito menos no desrespeito às minorias que esses países se destacaram.
O Brasil foi, e continua sendo, por séculos, a terra dos doutores. Porque se recusa a dar opções à esmagadora maioria da população e a descentralizar a renda. Um país que prefere pagar caro pelo Uber Select do que lutar por um transporte público eficiente.
No inconsciente coletivo, propagado desde a escravidão, o exclusivismo é status nacional. Como nossa sociedade sempre preferiu concentrar, e não democratizar, vivemos anos bajulando profissões básicas da estrutura social: a medicina e a magistratura.
São funções públicas que deveriam ser pautadas pelo cuidado extremo com o outro. Elas decidem pela vida e pela morte de alguém.
Mas, na média, temos o contrário: médicos que nos enxergam como um pedaço de carne; e juízes, que nos tratam como súditos.
*Victor Moreto é historiador UNIRIO, mestre em Ciências Sociais PUC-Rio.

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