quarta-feira, 17 de julho de 2019

A renovada dependência e a transição autoritária brasileira

A renovada dependência e a transição autoritária brasileira

 

 
17/07/2019 13:42
 
 
A renovada dependência e a atual transição autoritária brasileira para ser compreendida necessitam de uma visão sobre aspectos históricos anteriores, sendo que o texto que segue levanta alguns pontos para este entendimento. 

O processo de globalização, a crise da divida dos anos 1980 e a dinâmica econômica passiva brasileira a partir da década de 1990 aprofundaram as precárias condições de desenvolvimento autônomo, seja pela desnacionalização de segmentos expressivos da indústria, seja pela elevação da vulnerabilidade externa nos principais aspectos a ser considerados: na capacidade produtiva (maior dependência de investimento externo direto), tecnológica (baixa capacidade de estruturação de um sistema nacional de inovação e baixa dinâmica tecnológica) e financeira (investimentos financeiros, empréstimos e financiamentos). 

Vale frisar que as específicas condições econômicas enfrentadas nas décadas de 1980 e 1990, fruto da transição do modelo de substituição de importações (ISI) ao neoliberalismo e assim o reduzido papel do Estado na economia compuseram o quadro mais geral. Naquele período firmou-se não somente no Brasil, mas também na América Latina como um todo, percepção centrada na noção de que são os desequilíbrios internos os únicos responsáveis pelos limites do desenvolvimento no continente. Estas formulações ignoravam o peso e a forma da articulação da América Latina à economia mundial, de outro modo abandonou-se a perspectiva de que as relações capitalistas eram, antes de tudo, relações de poder econômico imperialista que produzem ao mesmo tempo desenvolvimento e subdesenvolvimento como componentes de uma mesma totalidade que é o capitalismo mundial.

Duas grandes tendências se estabelecem no sistema capitalista mundial a partir de meados dos anos 1990: i) a revolução científico-técnica, reduz a massa de valor empregada na força de trabalho, tornando a economia de trabalho estabelecida pela inovação tecnológica exígua para valorizar a quantidade de mercadorias gerada pelo aumento da produtividade; ii) a tecnologia nas economias nacionais permite significativamente o barateamento dos preços, em função da elevação do nível de produtividade, sendo que a adoção crescente da automação diminuiu drasticamente o emprego industrial, agravando ainda mais as condições de expansão do exército industrial de reserva e a subutilização de força de trabalho, ao lado da intensificação da exploração dos trabalhadores.

O resultado disso é a tendência à queda de preços e a crise de excesso de produção, fazendo com que o capital reaja de quatro formas: i) apropria-se dos recursos públicos do Estado, impulsionando a dívida pública e as dívidas privadas para sustentar lucros extraordinários que não se realizam integralmente pelo ciclo específico do capital produtivo; ii) privatização de empresas públicas, estabelecendo uma forma de acumulação fundada na desapropriação de capital estatal, a exemplo do amplo processo de privatização ocorrida na década de 1990, especialmente Companhia Vale do Rio Doce, e agora neste novo ciclo com a privatização da Petrobras e Eletrobras; iii) transfere-se parcialmente para países que ofereçam força de trabalho com qualificação próxima e significativamente mais barata que a dos países centrais; iv) apoia-se na sobrevalorização cambial estabelecida pelo governo estadunidense, que permite abalizar as diferenças entre os custos em moeda nacional e a realização de mercadorias em dólar, via exportação, restituindo parcialmente o lucro extraordinário por intermédio de vultuosos déficits comerciais dos Estados Unidos. 

Por outro, a parcial mundialização da revolução científico-técnica e a globalização rentista estabeleceram mudanças que levaram a uma intervenção estatal totalmente distinta da que se determinou durante o período longo de crescimento econômico dos anos 1940 a 1960. Na fase dourada do keynesianismo, este tipo de intervenção favoreceu o desenvolvimento da produtividade, e o ciclo produtivo do capital garantia com razoável autonomia a sustentação dos lucros extraordinários. Entretanto, o novo período de crescimento longo, que se estabeleceu a partir de meados dos anos 1990, criou a lógica de intervenção estatal baseada na sustentação de valores fictícios de ativos em detrimento do desenvolvimento da produtividade. Esta nova lógica manifesta-se pela drástica elevação da dívida pública e dividas privadas localizadas, pelas baixas taxas de investimento e pelo aumento das taxas de desemprego como fenômeno generalizado.

De um modo geral cinco pontos característicos do neoliberalismo enquanto “ideologia da crise do sistema mundial”, são pontos macroeconômicos fundamentais:

a) A maior intervenção financeirizada do Estado, com elevação do esforço fiscal para fazer frente à elevação da divida pública, dentro de uma lógica de produzir divida pública para transferir rendas nacionais para o centro capitalista. A burguesia subserviente brasileira impôs a Emenda Constitucional 95/17, estabelecendo a mais estúpida e impossível regra de controle fiscal da história do capitalismo como parte das regras do capitalismo rentista.

b) O reforço ao discurso do “territorialismo” e a noção de que políticas de desenvolvimento devam ser pontuais e locais, como negação a políticas nacionais e de afirmação de capacidades soberanas de desenvolvimento. Aspecto que reforça a disputa interna a cada nação pelo fluxo de investimento, minando, muitas vezes, a capacidade fiscal local em favorecimento aos capitais empresariais e desorganizando às relações federativas, como no Brasil a “guerra fiscal” é exemplar.

c) Imposição pela OMC (Organização Mundial do Comércio) de normas tarifárias e para-tarifárias que sufragam os “princípios da concorrência, abertura comercial e flexibilidade cambial” desiguais e fortemente assimétricos, diminuindo a capacidade de negociação dos países periféricos e reforçando os circuitos comerciais norte-norte. A diminuição de barreiras tarifárias associadas a acordos multilaterais realizados no âmbito da OMC e à proliferação de acordos regionais favoreceu a globalização de processos produtivos, reforçando formas de subcontratação e a crescente externalização produtiva em diversos setores. 

d) Elevação dos desequilíbrios financeiros e comerciais. A financeirização se processa tanto pelo reforço do caráter rentista da estrutura econômica, compreendendo a expansão da massa de capital fictício no sistema de crédito, como pela flexibilidade cambial e liberalização da conta de capital com consequente instabilidade das transações correntes e balanço de pagamentos das economias periféricas e, nos últimos anos das próprias economias centrais.

e) Desmonte das políticas sociais, flexibilização dos mercados de trabalho e destruição da seguridade social, componentes necessários à expansão sem freios do Exército Industrial de Reserva e ao estabelecimento da ideologia liberal-conservadora (“cada um por si, Deus por todos”). No Brasil já temos 41 milhões de pessoas que são desempregas e subempregadas constituindo parte desta enorme massa de pessoas não servíveis ao capitalismo. 

Nas décadas de 1990 e 2000, as alterações são sensíveis, conformando políticas externas da economia hegemônica com o objetivo de buscar superávits comerciais que pudessem, mesmo de forma limitada, recompor a capacidade de financiamento estadunidense. Será neste contexto que se imporá as economias latino-americanas e, especialmente, aos países mais industrializados da região (Brasil, México e Argentina) uma agenda que sedimentará uma trajetória de desestruturação industrial e de reprimarização de suas bases produtivas. 

Vale observar que os anos dos governos petistas (2003/2016) demarcaram um período de parcial interrupção da lógica dependente-neoliberal, centrado em três aspectos: i) priorização das políticas sociais e não o ajuste fiscal; ii) fortalecimento da integração regional e; iii) priorização do papel do estado como indutor anticíclico. 

A destruição da base institucional estabelecida ao longo do período posterior a Constituição Federal de 1988 e fortalecida com os governos petistas se colocou como parte da readequação dependente-neoliberal, impondo a ruptura com o padrão democrático-burguês e uma agenda de radical subordinação geopolítica aos EUA, inclusive com a destruição de parcela da estrutura industrial ainda prevalecente, a exemplo do esfacelamento da Petrobrás e da venda da Embraer.

Derivado dos processos possíveis de estratégia de desenvolvimento ou sua negatividade abrem-se muitas possibilidades, porém duas estão neste momento em disputa: i) aquela que se encontra no controle do Estado brasileiro neste momento, estabelece a condição de aprofundamento da dependência e neocolonização brasileira, determinando a intensificação da superexploração dos trabalhadores, a marginalização da fronteira tecnológica e a completa espoliação dos recursos naturais brasileiros; ii) a alternativa à barbárie imperialista é o estabelecimento de uma agenda de desenvolvimento nacional que rompa com a dependência, se aproxime da fronteira tecnológica e defina uma nova regra de poder geopolítico, essa perspectiva somente se abrira com uma crescente radicalidade social e democrática brasileira. Agora começou o século XXI, o Brasil está no centro da disputa entre a hegemonia decadente dos EUA e a hegemonia em ascensão da China. A articulação para o mundo multipolar foi derrotada, agora nos resta a resistência e a inteligência para superar a miséria que nos quer ser imposta.

José Raimundo Trindade é professor de economia da UFP

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