quarta-feira, 24 de julho de 2019

Em defesa da competência da Justiça Eleitoral

Por Esmael Morais

Em defesa da competência da Justiça Eleitoral

Publicado em 24/07/2019
Os advogados Luiz Fernando Casagrande Pereira e Dante D’Aquino, especialistas em direito eleitoral e criminal, respectivamente, asseguram que ‘os fins não justificam os meios’ quando o assunto é o combate à corrupção. Eles citam a gravação ilícita de Lula e Dilma como exemplo de contrariedade à norma na discussão da competência da Justiça Eleitoral no julgamento de crimes conexos aos eleitorais.
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Os fins justificam os meios? Em defesa da competência da Justiça Eleitoral
Luiz Fernando Casagrande Pereira* e Dante D’Aquino**
Todos almejam viver em uma sociedade que proporcione segurança pública e combata a corrupção. Atualmente, ao lado das demandas econômicas, são valores que estão em primeira ordem de importância. Mas tudo é válido para alcançá-los? Se o objetivo é “bom” para a sociedade (segurança pública, combate à corrupção), não importa o que faremos para alcançar esse objetivo? Nem como faremos?
No histórico recente dos acontecimentos há episódios que remontam ao renascentista Nicolau Maquiavel e sua máxima de que os fins justificam os meios. Vem à lembrança o dia em que Dilma Rousseff iria nomear o ex-presidente Lula para o cargo de ministro-chefe da casa civil. Antes, no entanto, houve a inusitada divulgação de um áudio que foi gravado após o término da autorização judicial. Gravação e a divulgação do áudio foram ilícitos?
Sim.
Do ponto de vista jurídico, a gravação e a divulgação do áudio foram tão contrárias à norma (no caso à lei de interceptação telefônica, de 9.296/96), quanto o furto, o roubo e a corrupção são contrários ao que dispõe a norma dos artigos 155, 157 e 317, respectivamente, do Código Penal. Afinal, segundo a perspectiva de um direito penal democrático, que valora o fato e não o autor, a ilegalidade é a característica que uma conduta possui de transgredir a norma jurídica, independentemente de quem a pratica. Ponto.
Ou não?
Em 14 de março, o STF decidiu que os crimes conexos aos eleitorais devem ser julgados pela Justiça Eleitoral, e não pela Justiça comum. Trazendo à crítica um exemplo banal, se a corrupção foi praticada para levantar mais recursos à eleição de um candidato, o suposto crime também deverá ser julgado pela justiça eleitoral, juntamente com o crime eleitoral praticado.
É que o artigo 35, II, do Código Eleitoral dispõe que compete aos juízes eleitorais processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos. E para reforçar, o Código de Processo Penal endossa essa tese, ao referendar, em seu artigo 78, inciso IV, que a justiça especializada terá prioridade sobre a justiça comum, sempre que ocorrer conflito de atribuição entre essas duas esferas.
Difícil ser mais categórico do que os mencionados artigos.
Porém, há uma grande crítica à decisão e ao STF, que ficou encarregado de interpretar essa questão, como se sabe, dando a última palavra. Alguns, mais superlativos, chegaram a apregoar o “fim da Lava Jato”; outros afirmaram que a decisão do Supremo iria “fechar a janela de combate à corrupção”.
Talvez o acirramento dos ânimos e a adjetivação que a decisão recebeu, sobretudo nas redes sociais, se deva às possíveis consequências jurídicas em vista da própria jurisprudência do STF. Com a decisão determinando a aplicação do artigo 35, II do Código Eleitoral, não se está apenas diante da prevalência da justiça especial sobre a geral. Trata-se, em verdade, de uma questão de competência distribuída em razão da matéria versada no processo ou na investigação. Aliás, no caso, a competência eleitoral só é especial, em razão da matéria sob exame.
E, tecnicamente, a competência em razão da matéria, é um critério de distribuição de competência absoluta, uma questão de ordem pública, que poderá ocasionar a nulidade integral dos atos praticados pelo juízo que não detinha atribuição no caso.
É dizer: as decisões do juiz sem competência não admitem convalidação, aproveitamento. São nulas. Integralmente. E também são nulos os atos que decorrerem das decisões nulas, pela aplicação da teoria dos “frutos da árvore envenenada” (the fruits of the poisonous tree) de há muito adotada pelo STF – o leading case ocorreu em 1993 na Suprema Corte, quando do julgamento do HC 69.912-RS.
E, claro, essa não é apenas uma opinião pessoal aqui externada. É a reprodução da jurisprudência da Suprema Corte, que pode ser lida, por exemplo, no julgamento da reclamação 24473, de junho de 2018, onde o ministro Dias Toffoli afirma que “por estrita observância ao princípio do juiz natural (CF, art. 5º, LIII), somente o juiz constitucionalmente competente pode validamente ordenar uma medida de busca e apreensão domiciliar.” E finaliza afirmando que: “o reconhecimento, portanto, da imprestabilidade do resultado da busca realizada (…) para fins probatórios, como também de eventuais elementos probatórios diretamente derivados (fruits of the poisonous tree), é medida que se impõe.”
É preciso recordar, como o fez o ministro Celso de Mello em seu voto proferido no último dia 14 de março, quando decidiu pela competência da Justiça Eleitoral, que o combate à corrupção não o ocorre por uma “janela” da lei; a polícia judiciária e o ministério público tem essa atribuição como decorrência da própria Constituição da República e, desse modo, as operações investigativas e o combate à corrupção só não irão prosseguir se deixarem de atuar órgãos tais, em franca prevaricação.
Ademais, qual seria a alternativa? Permitir a ilegalidade em nome de combater a ilegalidade, a corrupção? Praticar crimes é válido quando se busca combater a prática de crimes? Juízes sem atribuição poderão determinar buscas, apreensões, decretar prisões ou sentenças condenatórias?
Parece óbvio que não.
A Justiça Eleitoral é o foro competente para o processo e julgamento dos delitos eleitorais e conexos de acordo com a lei vigente. E isso é confirmado até mesmo pelo projeto anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, o qual, expressamente, propõe a alteração dessa norma jurídica para cindir as competências, o que comprova sua vigência.
Por ora, sem alterações realizadas, sem se falar de lege ferenda, isto é de leis futuras, é (e sempre foi) na Justiça Eleitoral que tais processos deverão validamente tramitar, sob pena de se admitir o não cumprimento da lei para supostamente combater a corrupção, criando-se um sistema em que crimes podem ser praticados para se combater crimes – com os fins justificando os meios.
*Luiz Fernando Casagrande Pereira é sócio do escritório VG&P advogados. Advogado com atuação em direito eleitoral. Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
**Dante D’Aquino é advogado com atuação em processo penal. Mestre em Direito Penal Empresarial. Professor de Processo Penal.

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