terça-feira, 9 de julho de 2019

Guiné-Bissau: nasce uma Islândia africana?

Pelo Mundo

Guiné-Bissau: nasce uma Islândia africana?

 

 
09/07/2019 11:38
Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC (DW/F. Tchumá)
Créditos da foto: Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC (DW/F. Tchumá)
 
A democracia venceu na Guiné-Bissau. Esta notícia parece não fazer parte do novo padrão de notícias que merecem destaque em tempos de internet. É uma notícia boa e narra como o povo guineense é protagonista das decisões sobre o próprio futuro e o futuro que deseja para seu país.

É imperativo que seja feito um paralelo entre esta semente de democracia, plantada naquele pequeno país africano de língua portuguesa, e a luta dos islandeses em 2008. Assim como a Guiné-Bissau, apesar de ser um país pequeno e com uma população inferior à de muitas cidades brasileiras, a Islândia é um exemplo recente de consciência cidadã, um modelo a ser seguido quando falamos sobre a importância da luta de um povo, razão que faz a imprensa tentar esconder esta grande revolução desarmada.

De volta à Guiné-Bissau, na noite de 8 de março de 2019, precisamente dois dias antes das eleições legislativas, a Polícia Judiciária guineense, numa operação altamente secreta, interceptou e prendeu na capital Bissau um caminhão. Surpreendentemente, o Presidente da República José Mário Vaz, conhecido por JOMAV, tentou influenciar sem êxito a direção da Polícia Judiciária para que fosse concedida a libertação daquele transporte de carga. Não demorou muito para se soubesse a razão de tamanha importância daquele caminhão: nele foram encontrados 800 quilos de cocaína.

No país, há comentários sobre a suspeita do envolvimento do filho mais velho do presidente da República neste negócio e da existência de uma importante quantidade de ilícitos ainda escondidos no país. Rapidamente circularam rumores de que a droga apreendida se destinava a financiar a campanha eleitoral de um partido político, o MADEM G15. A suspeita ainda não foi confirmada. No entanto, há razões para acreditar num possível envolvimento de membros deste partido com o tráfico.

Há alguns anos, mais precisamente em 1994, Braima Camará, o atual Coordenador do MADEM G15, esteve preso por tráfico na cidade do Porto, em Portugal. Desde então, apesar de afirmar ser um empresário, muitos suspeitam que ele ainda esteja ligado ao mundo do narcotráfico. Desde 2016, Braima Camará lidera um grupo de deputados dissidentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) que, numa aliança com o PRS (Partido da Renovação Social) e o Presidente da República JOMAV, assumiu o poder através de um golpe palaciano.

Durante os últimos três anos, esta aliança política esteve à frente dos destinos da Guiné-Bissau. A Constituição foi sistematicamente desrespeitada, os fundamentos do Estado de Direito Democrático postos em causa, a justiça debilitada e o tecido social dilacerado. O Grupo tentou de todas as maneiras impedir a realização das últimas eleições legislativas. Mas a revolta do povo ante ao abandono foi superior ao medo que tentaram impor.

No dia 10 de março de 2019, aconteceu o que José Mário Vaz, Braima Camará e alguns outros temiam: os eleitores voltaram a dar sua confiança no PAIGC para governar. Partido histórico, fundado por Amílcar Cabral, o PAIGC conseguiu compor uma coligação capaz de assegurar a maioria parlamentar para a formação do novo governo. É aqui que começa a recente história política na Guiné-Bissau e que certamente será ocultada pela imprensa tradicional.

Foram necessários quase quatro meses após as eleições para que um novo governo fosse nomeado. Isso porque apesar da existência de uma maioria parlamentar clara e de decisões judiciais inquestionáveis sobre o processo da composição da mesa do Parlamento, José Mário Vaz refutava a nomeação do Primeiro-Ministro até que um impasse, artificialmente criado, no Parlamento fosse resolvido. Juristas guineenses afirmavam que a ANP - Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau era soberana e que não havia relações entre suas questões internas com a nomeação do novo governo.

O povo foi convocado às ruas pelo líder do PAIGC, Domingos Simões Pereira (DSP), natural Primeiro-Ministro de acordo com o que está estabelecido na constituição guineense. Os partidos da base aliada foram fiéis aos acordos e aderiram em massa ao chamado do dirigente. A cada passeata a multidão crescia e começou a chamar a atenção da comunidade internacional. Acuado, JOMAV ameaçou usar a força policial. Porém, o povo estava decidido a desafiar este comando e o risco de um banho de sangue nas ruas por um instante foi real.

Após ameaças da CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental) e cobranças de uma solução por parte da União Europeia, União Africana, Nações Unidas, CPLP e de países como EUA, Portugal e França, JOMAV enviou uma carta ao PAIGC para que o partido indicasse o nome desejado para assumir o cargo de Primeiro-Ministro. Pelos estatutos do PAIGC o presidente do partido é quem deve ser indicado. Quando todos esperavam que a crise política havia chegado ao fim, José Mario Vaz jogou mais gasolina na fogueira ao rejeitar o nome de Domingos Simões Pereira, mesmo sem ter o direito constitucional de fazê-lo.

O povo voltou às ruas, desta vez com a promessa de invadir o Palácio Presidencial para retirar JOMAV à força. “O Bureau Político, após um apurado debate e por reconhecer o direito constitucional e inalienável de indicação do nome do primeiro-ministro ao PAIGC, partido vencedor das eleições legislativas de 2019, delibera manter o nome de Domingos Simões Pereira, presidente do PAIGC, ao cargo de primeiro-ministro de acordo com o nº 1 do Artº 42 dos estatutos”, informava a nota publicada à imprensa. JOMAV proíbiu, através do uso da força policial, as manifestações e começaram os rumores de que o presidente nomearia por conta própria um novo Governo.

A esta altura era iminente o risco de um confronto entre a polícia e os cidadãos inconformados com a ousadia do presidente que, sem nenhuma razão plausível para a não nomeação do Primeiro-Ministro, ficou enclausurado em seu palácio. Organizações da sociedade civil e internacionais, parceiros de cooperação multilateral e bilateral, passaram a cobrar de JOMAV a formação imediata de um governo, apenas um ato de respeito à vontade popular expressa nas urnas. José Mário Vaz seguia inflexível.

Enquanto tudo isso acontecia, o país se afundava a olho nu. Após visitas de missões do FMI e Banco Mundial foi constatado que as finanças públicas estavam praticamente na bancarrota, os salários já não eram pagos, a saúde pública mergulhada no caos, o ano escolar estava praticamente perdido, e a campanha de castanha de caju, principal produto de exportação do país, em grandes dificuldades. O cenário que era péssimo para o país e o povo foi o combustível que faltava para que a comunidade internacional voltasse a pressionar JOMAV.

Poucos sabem, mas a última semana do mês de junho deste ano foi uma das mais tensas dos últimos cinco anos na Guiné-Bissau, desde o golpe que destituiu o atual Presidente do PAIGC, DSP, do cargo de Primeiro-Ministro. Naquela semana havia uma imensa interrogação sobre qual seria “a próxima violação constitucional a ser praticada por aquela figura (JOMAV) que ocupa a Presidência da República”, comentou um quadro da direção nacional do partido. A pergunta que todos faziam com perplexidade era acompanhada pelos sentimentos de revolta e também de preocupação, pois era sabido que JOMAV era capaz de promover ações de extrema gravidade para justificar algum decreto que lhe garantisse uma sobrevida como “imperador do caos”.

Aqui é necessário destacar a habilidade política do Presidente do PAIGC, Domingos Simões Pereira. Ciente de que gozava do apoio interno e internacional, abdicou do cargo que era seu para oferecer uma saída honrosa ao enfraquecido José Mário Vaz. No momento em que as forças especiais de segurança do país ocupavam as ruas dos ministérios e proximidades dos órgãos públicos e havia suspeitas de que JOMAV tentaria um golpe palaciano, DSP indicou o nome de Aristides Gomes ao cargo de Primeiro-Ministro. Este foi o xeque mate que sepultava de uma vez a pretensão de JOMAV de seguir no poder pela via da força. Aristides Gomes já era Primeiro-Ministro, um nome aprovado no acordo internacional intermediado pela CEDEAO.

JOMAV recebeu mais de um ultimato da CEDEAO para que nomeasse o novo governo. O mandato de JOMAV iria expirar no dia 23 de junho e pouco antes daquela data não havia um novo governo e sequer a garantia de que novas eleições presidenciais seriam realizadas. O presidente da República parecia estar apegado a um poder paralelo, o que levava a maioria da população e parte da comunidade internacional à inevitável comparação entre os políticos no poder e o narcotráfico.

A cumplicidade entre José Mário Vaz e Braima Camará punha em evidência a forte suspeita de uma relação marcante entre o narcotráfico e a política na Guiné-Bissau. Nada parecia justificar aquele sequestro do país por estes dois políticos, que não fosse uma ligação a negócios obscuros, cujo pilar central seria o tráfico de drogas. Nos hotéis e restaurantes da cidade, frequentados por políticos e diplomatas, havia comentários abertos sobre a existência de indícios de que parte da campanha eleitoral do MADEM G15 teria sido financiada com o dinheiro do narcotráfico. “Como pagar eventuais dívidas de campanha sem o controle da máquina administrativa do Estado?”, era a pergunta/resposta encontrada para tentar compreender o apego de JOMAV ao poder.

“Povo cansa, JOMAV!”, era o grito que ecoava nas ruas em crioulo (língua predominante no país). Angola entrou na briga e exigiu sanções aos governantes africanos que desrespeitassem as respectivas constituições dos seus países, isso em pleno Conselho de Paz e Segurança da União Africana, uma comunidade com mais peso e influência do que a própria CEDEAO. Agora não era mais uma questão de JOMAV obedecer ou não à Comunidade, mas a própria entidade que teve seu papel questionado diante de tamanha crise. Pressionado, JOMAV assinou um decreto que estipulava 24 de novembro como nova data para eleições presidenciais. No entanto, mantinha sob suspense a nomeação do novo Governo.

Pressionada, em Abuja, capital da Nigéria, a CEDEAO ordenou, em 30 de junho, que o novo Governo da Guiné-Bissau tomasse posse até 03 de julho. Pior, aquela organização sub-regional decidiu também pela continuidade de José Mário Vaz à frente da Presidência da República até as eleições de 24 de novembro, mas foi taxativa no comunicado final ao afirmar que o chefe de Estado ficaria limitado ao exercício das suas funções. Era a vitória do povo guineense na sua máxima expressão, pois agora JOMAV faz as vezes de uma mera “Rainha da Inglaterra”, como costumam dizer no Brasil.

O novo Governo assumiu no dia 3 de julho. É formado por 16 ministérios - sendo oito liderados por mulheres - e 15 secretarias de Estado. Foram dias tensos, praticamente quatro meses, mas após as eleições legislativas de 10 de março, finalmente, o povo viu o seu direito ao voto respeitado e ocupando as ruas nomeou o novo Executivo. Poucos governos no mundo representam tão bem o estrato social de um país como este novo Governo da Guiné-Bissau. Muçulmanos, cristãos, quadros experientes, jovens e mulheres foram distribuídos entre ministérios e secretarias de Estado. Devemos abandonar o preconceito e olhar com atenção para essa conquista histórica do povo guineense que, assim como o povo islandês, busca ser dono do próprio destino.

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