quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Lista de Livros: O que é dialética (Parte II), de Leandro Konder


Lista de Livros: O que é dialética (Parte II), de Leandro Konder

“Mesmo os indivíduos mais empenhados na luta pela transformação da sociedade se confundem, com frequência, quando falta coesão à unidade deles."

Seleção de Doney

Lista de LivrosO que é dialética (Parte II) – Leandro Konder


Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-1101-023-7
Opinião: bom
Páginas: 88 
  
“A teoria é necessária e nos ajuda muito, mas por si só não fornece os critérios suficientes para estarmos seguros de agir com acerto. Nenhuma teoria pode ser tão boa a ponto de nos evitar erros. A gente depende, em última análise, da prática – especialmente da prática social – para verificar o maior ou menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e com as totalizações).”
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“Na investigação científica da realidade, começamos trabalhando com conceitos que são, ainda, sínteses muito abstratas. Marx dá o exemplo da população. A população é um todo, mas o conceito de população permanece vago se não conhecemos as classes de que a população se compõe. Só podemos conhecer concretamente as classes, entretanto, se estudarmos os elementos sobre os quais elas se apoiam, na existência delas, tais como o trabalho assalariado, o capital etc. Tais elementos, por sua vez, supõem o comércio, a divisão do trabalho, os preços etc. “Se começo pela população, portanto, tenho uma representação caótica do conjunto; depois, através de uma determinação mais precisa, por meio de análises, chego a conceitos cada vez mais simples. Alcançado tal ponto, faço a viagem de volta e retorno à população. Dessa vez, contudo, não terei sob os olhos um amálgama caótico e sim uma totalidade rica em determinações, em relações complexas.” Esse texto de Marx é de grande interesse para nós. O ponto de partida – observemos – não é um conceito rudimentar: é uma expressão que designa, ainda confusamente, uma realidade complicada. A análise, portanto, só pode ser orientada com base em uma síntese (mesmo precária) anterior. Uma certa compreensão do todo precede a própria possibilidade de aprofundar o conhecimento das partes.
Mas o texto ainda diz mais: por análise, eu decomponho e recomponho o conhecimento indicado na expressão que me serviu de ponto de partida. No fim, realizada a viagem do mais complexo (ainda abstrato) ao mais simples e feito o retorno do mais simples ao mais complexo (já concreto), a expressão população passa a ter um conteúdo bem determinado. O concreto, portanto, é o resultado de um trabalho. “O concreto” – insiste Marx – “é concreto porque é a síntese de várias determinações diferentes, é unidade na diversidade”.
A concepção de Marx, segundo a qual o conhecimento não é um ato e sim um processo, desenvolveu-se em polêmica contra a concepção irracionalista. Os irracionalistas consideram aintuição um instrumento privilegiado do conhecimento humano; para eles, o que é “sacado” intuitivamente já possui valor de verdade, de modo que não existe nenhum motivo para nós trilharmos o trabalhoso caminho indicado por Marx: a impressão genérica obtida no ponto de partida já nos basta. O irracionalismo desestimula o ser humano a realizar o paciente esforço de ir além da aparência, em busca da essência dos fenômenos. E as “totalidades” dos irracionalistas permanecem um tanto vazias, não têm um “recheio” definido.
A dialética é muito mais exigente do que o irracionalismo. Para reconhecer as totalidades em que a realidade está efetivamente articulada (em vez de inventar totalidades e procurar enquadrar nelas a realidade), o pensamento dialético é obrigado a um paciente trabalho: é obrigado a identificar, com esforço, gradualmente, as contradições concretas e as mediações específicas que constituem o “tecido” de cada totalidade, que dão “vida” a cada totalidade.
“A dialética” – observa Carlos Nelson Coutinho – “não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto político) como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).”
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“Para que o nosso conhecimento avance e o nosso laborioso (e interminável) descobrimento da realidade se aprofunde – quer dizer: para podermos ir além das aparências e penetrar na essência dos fenômenos – precisamos realizar operações de síntese e de análise que esclareçam não só a dimensão imediata como também, e sobretudo, a dimensão mediata delas. (…)
As mediações, entretanto, obrigam-nos a refletir sobre outro elemento insuprimível da realidade: as contradições. (…)
As conexões íntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Em tais unidades, a contradição é essencial: não é um mero defeito do raciocínio. Num sentido amplo, filosófico, que não se confunde com o sentido que a lógica confere ao termo, a contradiçãoé reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. A dialética não se contrapõe à lógica, mas vai além da lógica, desbravando um espaço que a lógica não consegue ocupar.
Para desbravar esse novo espaço, a dialética modifica os instrumentos conceituais de que dispõe: passa a trabalhar, frequentemente, com determinações reflexivas e procura promover uma “fluidificação dos conceitos”.”
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“Engels chegou à conclusão de que as leis gerais da dialética (comuns tanto à história humana como à natureza) podiam ser reduzidas, no essencial, a três:
1) lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa);
2) lei da interpenetração dos contrários;
3) lei da negação da negação.
A primeira lei se refere ao fato de que, ao mudarem, as coisas não mudam sempre no mesmo ritmo; o processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações quantitativas) e por períodos de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”, modificações radicais). Engels dá o exemplo da água que vai esquentando, até alcançar cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado líquido ao estado gasoso.
A segunda lei é aquela que nos lembra que tudo tem a ver com tudo, os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes. Conforme as conexões (quer dizer, conforme ocontexto em que ela esteja situada), prevalece, na coisa, um lado ou o outro da sua realidade (que é intrinsecamente contraditória). Os dois lados se opõem e, no entanto, constituem uma unidade (e por isso essa lei já foi também chamada de unidade e luta dos contrários).
A terceira lei dá conta do fato de que o movimento geral da realidade faz sentido, quer dizer, não é absurdo, não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação.”
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“O húngaro Georg Lukács (1885-1971) advertiu: “Não é a predominância dos motivos econômicos na explicação da história que distingue decisivamente o marxismo da ciência burguesa: é o ponto de vista da totalidade”. Somente o ponto de vista da totalidade, segundo Lukács, permite à dialética enxergar, por trás da aparência das “coisas”, os processos e inter-relações de que se compõe a realidade. Somente o ponto de vista da totalidade permite que se veja no real um “jorrar ininterrupto de novidade qualitativa”.
O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) caracterizou o marxismo como um “historicismo absoluto”. Para ele, o fatalismo determinista pode se tornar uma força de resistência moral, pode ajudar o revolucionário a perseverar na luta, pode ajudar a organização revolucionária a manter a sua coesão interna nos períodos marcados por uma sucessão de graves derrotas. Nesse sentido, Gramsci se dispõe até a fazer-lhe um “elogio fúnebre”, reconhecendo a função histórica do determinismo, porém “enterrando-o com todas as honras”, pois se o determinismo persistir dificultará sempre o desenvolvimento do espírito crítico e da criatividade entre os revolucionários.
O materialismo histórico de Marx e Engels é constatativo e não normativo: ele reconhece que, nas condições de insuficiente desenvolvimento das forças produtivas humanas e de divisão da sociedade em classes, a economia tem imposto, em última análise, opções estreitas aos homens que fazem a história. Isso não significa que a economia seja o sujeito da história, que a economia vai dominar eternamente os movimentos do sujeito humano. Ao contrário: a dialética aponta na direção de uma libertação mais efetiva do ser humano em relação ao cerceamento de condições econômicas ainda desumanas.”
O alemão Walter Benjamin (1892-1940), aliás, lembrou que a história, tal como ela veio se desenrolando até o presente, está impregnada de violência, de opressão, de barbárie; e é exatamente por isso que a tarefa do teórico do materialismo histórico não pode ser pensar uma espécie de prolongamento “natural” dessa história, não pode ser promover a continuidade daquilo que essa história produziu, limitando-se a transmitir seus produtos de mão em mão. Um espírito dialético – escreveu Benjamin, através de uma sugestiva imagem – insiste em “escovar a história a contrapelo”.”
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“Mesmo os indivíduos mais empenhados na luta pela transformação da sociedade se confundem, com frequência, quando falta coesão à unidade deles. A falta de coesão diminui, para eles, as possibilidades de fazerem história de modo consciente. Diminui as possibilidades de se organizarem e de se reconhecerem na ação da comunidade organizada a que se integraram.
O indivíduo isolado, normalmente, não pode fazer história: suas forças são muito limitadas. Por isso, o problema da organização capaz de levá-lo a multiplicar suas energias e ganhar eficácia é um problema crucial para todo revolucionário. É preciso que a organização não se torne opaca para o indivíduo, que ele não se sinta perdido dentro dela; é preciso que ela não o reduza a uma situação de impotência contemplativa ou a um ativismo cego. Se não, o indivíduo fica impossibilitado de atuar revolucionariamente e se sente alienado na atividade coletiva. A organização deixa de ser o lugar onde suas forças se multiplicam e passa a ser um lugar onde elas são neutralizadas ou instrumentalizadas por outras forças, orientadas em função de outros objetivos. (Lembremos a frase de Sartre colocada como epígrafe no começo deste livrinho: “A dialética, como lógica viva da ação, não pode aparecer a uma razão contemplativa. […] No curso da ação, o indivíduo descobre a dialética como transparência racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem”.)”
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“A vida social, nos tempos atuais, já pressupõe a existência de indivíduos que alcançaram um razoável grau de autonomia. Algumas comunidades alienadas ainda conseguem, em determinadas circunstâncias, absorver e diluir grande número de indivíduos (fanatizados) no interior delas; mas já avançou bastante nas pessoas a consciência de que cada uma delas tem responsabilidades em relação às outras (e à sociedade em geral), porém possui igualmente responsabilidades em relação a si mesma.
A experiência vem ensinando a um número cada vez maior de indivíduos que há problemas que dependem da pessoa e somente dela e cuja solução não pode ser transferida para nenhuma organização social. Como escreveu o marxista tcheco Karel Kosik em sua Dialética do concreto: “Cada indivíduo – pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem de formar uma cultura e viver a sua vida”.
Essa compreensão que os indivíduos estão adquirindo cada vez mais concretamente do seu valor intrínseco não enfraquece neles o reconhecimento da necessidade de se associarem, mas cria importantes exigências, novas, quanto ao caráter das associações.
Por um lado, há um número crescente de indivíduos com maior riqueza e complexidade interior; e esses indivíduos experimentam uma necessidade mais imperiosa de superar seus limites como indivíduos, uma necessidade mais imperiosa de se completarem em alguma forma de existência comunitária, que os aproxime uns dos outros (sem prejuízo da individualidade deles). Por outro lado, a “racionalização” utilitária do capitalismo e o espírito exageradamente competitivo estimulado pelo mercado agravam muito as contradições entre os homens, diminuem a importância das velhas formas tradicionais de comunidade (família, vizinhança antiga), criam situações de solidão, desenvolvem frustrações, espalham muita agressividade e insegurança.
A falta de uma compreensão dialética desses problemas e a avidez dos indivíduos pelacomunidade (por formas de convivência mais profundas) levam as pessoas, com frequência, a aderirem, apaixonadamente, a sucedâneos de formas de existência autenticamente comunitárias (quer dizer, levam-nas a se integrarem em pseudocomunidades, em caricaturas de comunidades). É o que acontece, por exemplo, com algumas pessoas que passam a militar fanaticamente em organizações de tipo fascista, que se tornam propagandistas em tempo integral de seitas religiosas “salvacionistas”, que viram “formigas” num “formigueiro” qualquer. E é também um fenômeno que se manifesta, com gravidade bem menor, no caso de certos grupos de jovens que se irmanam na “curtição” de uma mesma diversão ou de uma moda passageira intensamente vivida.
A falta da dialética e o anseio pela comunidade, combinados, podem igualmente influir – e com frequência influem mesmo – no comportamento dos revolucionários. Antes de poder transformar a sociedade na qual nasceu e atua, o revolucionário é em boa parte formado por ela, de modo que seria ingenuidade supor que ele possa permanecer completamente imune aos seus venenos. Muitas, muitíssimas vezes, as ideias revolucionárias se combinam, na mesma pessoa, com sentimentos bastante reacionários e com preconceitos surpreendentemente conservadores. Por isso, não são raros os casos de revolucionários que tendem a transformar a organização em que desenvolvem suas atividades políticas numa espécie de ídolo sagrado, que não pode ser submetido a críticas profundas e que deve merecer todos os sacrifícios. Essa atitude, alienada, causa graves prejuízos tanto aos indivíduos como à organização: os revolucionários que “fetichizam” a organização em que atuam deixam de contribuir para que ela se renove e acabam facilitando o agravamento de suas deformações. Na medida em que não aprofundam suficientemente nem o espírito crítico nem a luta permanente pela democratização de todas as relações humanas, esses indivíduos mostram ser, em última análise, maus revolucionários.”
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“A dialética não dá “boa consciência” a ninguém. Sua função não é tornar determinadas pessoas plenamente satisfeitas com elas mesmas. O método dialético nos incita a revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente; ele questiona o presente em nome do futuro, o que está sendo em nome do que “ainda não é” (Ernst Bloch). Um espírito agudamente dialético como o poeta Bertolt Brecht disse uma vez: “O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar “tal como está”. Essa consciência da inevitabilidade da mudança e da impossibilidade de escamotear as contradições incomoda os beneficiários de interesses constituídos e os dependentes de hábitos mentais ou de valores cristalizados.
A dialética intranquiliza os comodistas, assusta os preconceituosos, perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários. Para os que assumem, consciente ou inconscientemente, uma posição de compromisso com o modo de produção capitalista, a dialética é “subversiva”, porque demonstra que o capitalismo está sendo superado e incita a superá-lo. Para os revolucionários românticos de ultraesquerda, a dialética é um elemento complicador utilizado por intelectuais pedantes, um método que desmoraliza as fantasias irracionalistas, desmascara o voluntarismo e exige que as mediações do real sejam respeitadas pela ação revolucionária.
Para os tecnocratas, que manipulam o comportamento humano (mesmo em nome do socialismo), a dialética é a teimosa rebelião daquilo que eles chamam de “fatores imponderáveis”: o resultado da insistência do ser humano em não ser tratado como uma máquina.
É verdade que, em muitos casos, o que tem sido apresentado como dialética não tem passado de mera instrumentalização de algumas ideias de Hegel ou de Marx, mal assimiladas e ainda mais mal utilizadas. Mas a reação potencialmente mais eficaz contra essa deformação é a que provém da autêntica dialética, que está sempre alerta para enfrentar as imposturas cometidas em seu nome, com o espírito rebelde que lhe é peculiar. A dialética – observa o filósofo brasileiro Gerd Bornheim – “é fundamentalmente contestadora”. Ninguém conseguirá jamais domesticá-la. Em sua inspiração mais profunda, ela existe tanto para fustigar o conservadorismo dos conservadores como para sacudir o conservadorismo dos próprios revolucionários. O método dialético não se presta para criar cachorrinhos amestrados. Ele é, como disse o argentino Carlos Astrada, “semente de dragões”.
Os dragões semeados pela dialética vão assustar muita gente pelo mundo afora, talvez causem tumulto, mas não são baderneiros inconsequentes; a presença deles na consciência das pessoas é necessária para que não seja esquecida a essência do pensamento dialético, enunciada por Marx na décima primeira tese sobre Feuerbach: “Os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo; trata-se, no entanto, de transformá-lo.”

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