As histórias no meio do caminho por Ricardo Terto
Eu sou do tempo em que os estudantes iam à biblioteca. Eu gostava de uma em particular no extremo leste de São Paulo, onde morava na adolescência. Tinha mesas bonitas e muito mais livros do que a biblioteca da escola, então se o professor pedia um trabalho, era pra lá que eu ia.
Cada vez que eu andava vinte minutos para ir ou voltar da biblioteca, a paisagem no caminho parecia mudar. Ler sobre definições poéticas, científicas, líricas ou até cínicas sobre o céu transformava o que eu enxergava quando olhava para o alto. Uma pedra no meio do caminho não era mais a mesma coisa depois de ler Drummond. O inverso também acontecia, o mundo ao meu redor transformava o sentido que eu lia nas palavras.
Quando eu terminava a pesquisa, minha curiosidade fazia eu bater perna pelos corredores de livros. Como às vezes a sorte é pura conveniência, acabei pegando um livro que me marcou muito: "A Bíblia do Caos", do Millôr Fernandes, uma espécie de dicionário de subversão de palavras. "O que os olhos não veem a língua inventa", estava escrito.
Hoje em dia, talvez por força de auto-preservação, estamos nos acostumando a conviver com notícias trágicas e palavras frias. Boletins na casa dos milhares de mortos em um só dia se tornam elementos difusos no meio de termos agora populares, como "curva exponencial", "achatamento", e números, muitos números. Com o tempo e o isolamento, é como se nos tornássemos espectadores da nossa realidade – e não parte dela.
A experiência com a subversão das frases do Millôr, lá na adolescência, acendeu uma ideia aqui no presente: para quais caminhos e histórias as palavras nos levam? E se, em vez de subverter, eu me propusesse a rever o sentido das palavras que andam atravessando o nosso cotidiano? O que significa "distância" numa hora dessas, o que seria, de fato, "cuidado"?
Ao lado da Andrea Dip e da Natalia Viana, que me convocaram para minha primeira missão como produtor de podcasts na Agência Pública, construí a proposta de me enveredar por essa estante de terminologias e sair de lá com uma história que fale ao ouvido de qualquer um, sobre quem são as pessoas nessas histórias da pandemia. Amarrando todos esses pensamentos e ideias, nasceu a minissérie de podcast "A Vida Nos Tempos do Corona".
Na verdade, esse podcast reflete o trabalho que a Pública já faz, mergulhando e se aprofundando no aspecto humano das notícias, só que em um novo formato.
Como produtor e consumidor de podcasts, percebo que eles viram uma espécie de companhia. Não à toa muitos escutam indo e voltando do trabalho, fazendo academia, na hora do almoço… é aquele respiro. Agora que estamos em isolamento social, tive o cuidado de pensar em como reproduzir essa sensação de tirar um tempo para pensar, aproveitando, por exemplo, os silêncios, as respirações, as variações de tom e a trilha sonora. Um podcast é um trabalho narrativo tridimensional.
Lidar com o aspecto humano também tem sido um desafio intenso, ainda mais trabalhando de casa. O primeiro episódio, "Coronavírus e as distâncias", sobre uma empregada que foi contaminada pela patroa, mexeu com a minha memória afetiva, já que minha mãe trabalhou como doméstica a maior parte da vida. Talvez essa proximidade contribua para um tom mais íntimo e reflexivo – eu cercado da minha história, contando as histórias de outras pessoas.
Tanto a literatura quanto as narrativas sonoras têm o poder de construir sentido em cima de algo que as pessoas não estão vendo, de criar imagens a partir do repertório de coisas que o ouvinte/leitor consegue imaginar. É o terreno da intimidade. Portanto, espero que esse podcast possa resgatar esse aspecto vivo e orgânico no novo mundo em que estamos vivendo.
É com a vontade de percorrer histórias, na ânsia de encontrar aquilo que conecte a todos nós, que eu começo todas as semanas de produção do podcast. É um caminho que eu sinto que percorro com vocês. Mesmo em época de isolamento e confinamento, é uma forma de andarmos juntos durante vinte minutos, vendo a nossa paisagem se transformar e nos transformando com ela.
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