Foi no exato dia do aniversário da morte de Lênin que TUTAMÉIA entrevistou Vijay Prashad, jornalista e historiador indiano. Assim, ainda que o tema central de nossa entrevista fosse o mundo depois da derrota de Trump nos Estados, o legado do revolucionário comunista morto em 21 de janeiro de 1924 não deixou de ser destacado pelo editor-chefe da LeftWord Books.
“Para aqueles de nós que nos beneficiamos do movimento anticolonialismo, um de nossos grandes heróis é Lênin. Quando a Revolução Soviética venceu, o povo da Índia, do Peru, da África do Sul, da China, nós aprendemos o marxismo não com Marx, mas com Lênin. O que nós chamamos de marxismo é, na verdade, marxismo-leninismo”, diz Prashad (clique no vídeo abaixo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
O historiador explica: “Tomando Marx ao pé da letra, ele nos diria que a revolução não seria possível em nossos países, que precisaríamos esperar o desenvolvimento das forças produtivas. Mas veja o que aconteceu: a República Soviética veio primeiro [mais tarde, União Soviética], em 1917. Mongólia teve a revolução vitoriosa seguinte; a revolução alemã foi derrotada. Depois, Vietnã, em 1945; depois, a China, em 1949. Depois, Cuba, em 1959. Então Burkina Fasso em 1983 e assim por diante. Todas as revoluções de linha marxista aconteceram no Terceiro Mundo, em países pobres, camponeses. Nós seguimos a trilha leninista. Essa é a questão que quero destacar: Lênin não foi apenas o homem que fez a revolução russa, como dizem dele em alguns livros; ele foi quem levou o marxismo para o Terceiro Mundo, e por isso somos muito gratos a ele”.
Esse aprendizado é usado pelo pensador marxista, diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, para avaliar a situação das relações humanas e do planeta nos dias de hoje. Aponta a necessidade de combater o pensamento de extrema direita –o que vai além de enfrentamentos em eleições, ainda que esses sejam muito importantes.
“A extrema direita tem raízes profundas na sociedade. Não se deve acreditar que essa é apenas uma questão eleitoral; é um problema social profundo. Em um país como o Brasil, além disso, há questões não resolvidas, como o racismo, a questão da Amazônia, o fundamentalismo evangélico, alguns deles com ideologias bastante perturbadoras… Todos essas são questões culturais, não políticas. Amanhã Bolsonaro será passado, mas vocês ainda vão ter de lidar com essas questões, do crescimento do conservadorismo, tradicionalismo e da direita.”
O mesmo vale para a Índia de Prashad, onde Modi é primeiro-ministro representando uma organização extremista. Ou para os Estados Unidos, apesar da recente derrota de Trump, como diz o historiador:
“Trump pode ter sido derrotado, mas o trumpismo existia antes do Trump. Ele foi apenas um sintoma, não a causa. Os Estados Unidos tiveram sua Guerra Civil, que teve várias razões –a questão da escravatura foi uma delas. A guerra terminou em 1865, mas continua até hoje. Não apenas no Sul, na antiga República Confederada, mas nos Estados Unidos, depois que a Confederação foi derrotada, foram erigidas estátuas para o general Robert Lee, presidente da Confederação, e para seus generais! Depois da derrota! Isso está sendo atacado agora: a luta do movimento Black Lives Matter também envolveu a retirada dessas estátuas de líderes racistas. Mas a bandeira dos confederados foi empunhada por vários daqueles que, em seis de janeiro, invadiram o Capitólio. É a bandeira do racismo, da intolerância. Isso tem raízes culturais abjetas, profundas, na nossa sociedade, que ainda precisam ser confrontadas.”
Por isso, ele faz um alerta: “Uma coisa é nos livrarmos de Trump, de Bolsonaro, de Modi. Isso é muito bom, nos permite um suspiro de alívio. Mas não é suficiente, precisamos enfrentar as raízes culturais. Precisamos confrontar os ataques à ciência, precisamos atacar qualquer tradição que desrespeite ou deprecie pessoas, grupos sociais. Porque essas coisas começam aí. Bolsonaro, Trump, Modi são sintomas; as raízes podres estão nessas questões culturais, no desprezo às pessoas”.
PERSPECTIVAS DO GOVERNO BIDEN
Existem avanços. A vitória do democrata Joe Biden nos Estados Unidos tem um sinal positivo, acredita Prashad, não sem ficar com um pé atrás:
“Vamos esperar que seja melhor. Mas é preciso ser realista: para o mundo, nada vai mudar. Internamente, haverá algumas mudanças positivas. No primeiro dia, Biden assinou uma série de medidas muito progressistas. Ou seja, internamente os democratas devem cumprir uma agenda liberal –mais ou menos, porque também têm compromissos com os bancos, têm uma agenda corporativa. No plano internacional, sou um pouco cético. As relações com a China devem ficar as mesmas, assim como em relação à Rússia e à América Latina”.
Lembramos que Biden, em seu discurso de posse, apontou o racismo como um dos grandes desafios a serem enfrentados nos Estados Unidos, e denunciou a ação dos grupos supremacistas brancos. A questão é: terá ele força e vontade política para enfrentar as milícias e os grupos neofascistas brancos?
“Vamos ver”, responde Vijay Prashadm. Lembra a invasão do Capitólio para justificar seu ceticismo: “Já estive em muitos protestos em Washington, contra o FMI, o Banco Mundial, muitas manifestações. A polícia sempre estabelecia um perímetro, mantinha os manifestantes longe. No dia seis, agora, eles não fizeram nada, simplesmente deixar os caras chegar. Parece não haver coragem naquele país para enfrentar o terrorismo branco. Portanto, vamos ver”.
Historiador, o pensador indiano traz mais exemplos que apontam a parcialidade do próprio Estado norte-americano: “Não há nenhuma evidência, desde 1865, de que o governo dos Estados Unidos vá reprimir o terrorismo branco. Não enfrentaram a Klu Klux Klan na era dos linchamentos, não reprimiram o White Citizen Councils na era da luta pelos direitos civis, nunca reprimiram as milícias nos anos 1990… Simplesmente deixaram que existissem. Hoje, esses Proud Boys e todos esses outros anarquistas, supremacistas, eles simplesmente têm completa impunidade, ninguém os enfrenta”.
CANIBALISMO NEOLIBERAL E DEMOCRACIA
Em contrapartida, um aspecto que deverá ser positivo no governo Biden é o abandono do negacionismo –pelo menos, no que diz respeito à pandemia. Terá, porém, muitas dificuldades e gastará muito mais do que o que seria necessária por causa dos estragos provocados por seu antecessor –destruição também realizada por outros governos anticiência e antipovo, como os do Brasil e da Índia, diz Prashad:
“Quando, em 11 de março do ano passado, a OMS declarou a existência de pandemia, os governos do Brasil, dos Estados Unidos, da Índia, do Reino Unido, de vários países da Europa não fizeram nada para proteger suas populações. Esses governos não fizeram nem as coisas mais básicas: riram do uso de máscaras, destruíram os sistemas de saúde pública com anos de investimentos insuficientes… Foi uma combinação de canibalismo neoliberal –ao longo de uma década, talvez mais, a maioria desses países havia engolido, destruído seu sistema de saúde pública—com incompetência criminosa dos governos. Gente como Bolsonaro e Boris Johnson fizeram piada sobre a pandemia, divulgaram informações anticientíficas, atacaram a China, atacaram a OMS. Então, claro, os números dispararam nesses países.”
Mesmo assim, esses governantes seguem tendo algum apoio, ainda que decadente. O que, no entender de Prashad, leva a um debate sobre a própria essência da democracia: “Donald Trump é um criminoso, sob muitos aspectos: ele mentiu para seu povo sobre a severidade da pandemia, mentiu sobre as medidas que seu governo estava tomando, e mesmo assim recebeu mais de 70 milhões de votos. Precisamos analisar seriamente o que está acontecendo com a razão em nosso mundo”.
Ele prossegue:
“As ideias democráticas existem em nosso mundo. Nós sabemos o que significa, significa o governo do povo, em que o povo é soberano. Mas a vontade do povo não é respeitada em países como o Brasil e os Estados Unidos. O que há são instituições criadas há décadas, séculos até, que se intitulam democráticas, mas não são suficientes. Há eleições, o que é bom. Mas as eleições são corrompidas por dinheiro, a mídia intervém manipulando a opinião pública… Então, instituições do processo democrático são corrompidas pelo dinheiro. O resultado é que não impera a vontade do povo, mas a vontade dos ricos, por meio de instituições que aparentam ser democráticas.”
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