Barbárie judicial Ante as novas mensagens reveladas, manter a condenação de Lula seria uma violação sem precedentes Por Pedro Estevam Serrano* Lula merece ser julgado de forma imparcial O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, retirou o sigilo de conversas obtidas na Operação Spooflng, o que tornou público um documento de 50 páginas de mensagens entre procuradores da força-tarefa da Lava Jato e o ex-juiz federal Sergio Moro, nas quais eles trocavam informações sobre ações contra o ex-presidente Lula. O conteúdo desses diálogos é de estarrecer qualquer estudante de Direito, por demonstrar que valores essenciais da democracia constitucional e de práticas de qualquer sistema de Justiça do mundo civilizado não foram, nem de longe, observados. O que se vê nessas mensagens pode ser classificado como escândalo: ao longo de todo o processo, o juiz "combinava o jogo" com o Ministério Público, oferecia informações detalhadas e orientação estratégica de como os procuradores deveriam agir, ajustava e coordenava as decisões. Dentre os muitos absurdos, Moro pede a Deltan Dallagnol que interceda para que as defesas de delatores desistam de ouvir testemunhas, preocupado em proteger o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e comemorando quando a denúncia contra Lula foi protocolada. O descaramento chega ao ápice quando Dallagnol anuncia aos seus colegas, numa determinada troca de mensagens, que Moro condenaria Lula no processo, ou seja, revela que sabia antecipadamente qual seria a sentença do juiz. Há muito afirmamos que as ações penais contra Lula eram fraude e, mais que isso, uma medida de exceção - processos com um invólucro, uma maquiagem de ato jurídico e democrático de cumprimento da Constituição e das leis, mas cujo conteúdo material se mostrou, agora de forma descarada, uma ação política de persecução a um inimigo. As mensagens corroboram a tese ao explicitar que o processo do caso do tríplex não teve um juiz, mas dois acusadores, totalmente articulados com a finalidade não de apurar a verdade e julgar o réu, mas de condená-lo, dando a aparência de imparcialidade, que nunca houve, à opinião pública. CASO O STF NÃO ANULE OS PROCESSOS, ACEITAREMOS A PIOR DAS DITADURAS, AQUELA DO PODER JUDICIÁRIO A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 10°, garante a qualquer ser humano o direito a um julgamento justo e imparcial. Esse direito mínimo de proteção jurídica e política não foi conferido a Lula. Isso, obviamente, não quer dizer que ele seja inocente, mas apenas que não teve assegurado um direito básico. E é simplesmente por isso que todos os processos contra o expresidente nos quais Moro e os procuradores da Lava Jato atuaram precisam ser anulados. Vamos aguardar os próximos capítulos, ressaltando que surgiu na mídia a hipótese de que a suspeição de Moro não poderia ser aplicada ao julgamento do caso do sítio de Atibaia, uma vez que a sentença foi dada pela juíza Gabriela Hardt, e não por ele, que só atuou na fase de instrução do processo. O que se pretende é, caso se confirme a nulidade do processo do tríplex, manter o veredicto do sítio, para que Lula continue alijado de seus direitos políticos e, assim, impedido de se candidatar na próxima eleição. Vale lembrar que o processo penal é um iter, roteiro em que a validade de um ato vincula a validade do ato posterior. A participação de Moro na aceitação da denúncia, na instrução do processo e na produção de provas é mais que suficiente para tornar também nulo o processo do sítio. Isso sem falar que é publicamente conhecido o fato de que a magistrada reproduziu em sua decisão trecho da sentença de Moro a Lula no caso do apartamento no Guarujá. Seria uma vergonha internacional para o STF, que julgará a questão, valer-se de subterfúgios como esses para manter válidos os processos. Como dizemos há tempos, o caráter fraudulento das ações contra Lula era verificável pela simples leitura técnica, jurídica e objetiva da ação. Os diálogos agora liberados apenas comprovam de forma robusta que o sistema de Justiça patrocinou uma medida de exceção. Medida essa que, mais que condenar o réu, produziu uma interferência indevida no processo democrático brasileiro e na soberania popular, pois não permitiu ao PT a possibilidade de escolher livremente o seu candidato à Presidência da República. É razoável pensar que, caso Lula tivesse sido candidato, teria derrotado Jair Bolsonaro e vencido as eleições de 2018. Portanto, essa é uma sombra que vai pairar sobre a legitimidade da última disputa presidencial e ficará como mácula ofensiva à democracia e à Constituição. Repousa sobre o STF uma imensa responsabilidade. Caso opte por algum caminho em que os casos nos quais Moro atuou contra Lula não sejam integralmente anulados, verificaremos aquilo que afirmei em artigos e pareceres dados a instituições nacionais e internacionais: não apenas Moro, mas o sistema de Justiça brasileiro como um todo foi parcial em relação ao ex-presidente. Se o Supremo não anular os processos, atestará para a opinião pública internacional que, no Brasil, não vivemos a plenitude de uma democracia constitucional. Além de profunda injustiça contra o ex-presidente da República, seria um ato de barbárie judicial que, juntamente com a aprovação da extradição de Olga Benário à Alemanha a pedido do governo nazista, se configuraria dentre os maiores de nossa história. Para além de Lula e dos efeitos políticos decorrentes da decisão, caso não anule os processos, o STF chancelará todos os abusos cometidos, como se ao MP e aos juízes estivesse permitido ultrapassar impunemente qualquer limite, atropelar qualquer direito e pisotear a Constituição. Esse é o imenso risco que corremos - o de jogarmos no ralo a nossa democracia constitucional e aceitarmos a pior das ditaduras: a do sistema de Justiça. • *Advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP. Capa Frutos podres Todos os atos tramados pela acusação em conjunto com o juiz são chamados, em qualquer país sério, de ilicitudes originárias Por Lenio Luiz Streck, Marco Aurélio de Carvalho e Fabiano Silva dos Santos* E o Supremo? Em uma de suas crônicas, Luis Fernando Verissimo brinca com contradições performativas, dizendo algo como: "Não fossem os 6 milhões de mortos, Hitler até que ... ", "não fossem as torturas e censuras, a ditadura militar até que ... ", "não fosse o desfalque no banco, meu primo até que seria um bom cara", e assim por diante. Daí a ironia: "Não fosse Moro um juiz suspeito, parcial, que fez conluio com a acusação, seria um bom juiz". São frases autocontraditórias. É como dizer "eu estou morto", ou, tanto pior, "em nome da liberdade, eu quero o Al-5". O Direito não funciona assim. Nele está vedado esse tipo de contradição. Nele se proíbe "prova ilícita de boa-fé", como queriam Sergio Moro e Deltan Dallagnol no projeto das tais dez medidas. Também não vale no direito a máxima de que "os fins justificam os meios". Ou, ainda, de que "é proibido vazar os diálogos de Lula e Dilma, mas vazarei". O que isso tem a ver com o processo da suspeição de Moro que está no Supremo Tribunal e com as mensagens da Operação Spooflng, agora periciadas pela Polícia Federal? Tudo. Porque demonstram, com detalhes sórdidos, a cumplicidade entre o juiz e a acusação. Combinação de provas, conselhos, reuniões, troca de informações, ironias e desdém para com determinados e específicos acusados, quebra de acordos internacionais, desprezo pela Constituição, tudo o que qualquer estudante de direito aprende que um juiz não pode e não deve fazer. Mas o juiz fez. E o acusador fez. E fizeram juntos. Nunca na história de um Estado Constitucional se ouviu falar em tamanha conspiração judicial mediante lawfare, o uso político do direito contra os inimigos. Os procuradores Dallagnol e Januário Palumbo escancaram o lawfare, ao dizer que as garantias processuais eram só "filigranas" e que o que valia era, mesmo, a política. Tudo confessado. Tudo periciado, embora Moro continue a ser, pateticamente, um negacionista. Pois é. Os que têm a ousadia de sustentar que "tudo o que ocorreu foi normal" até podem usar com certo grau de coerência as ironias de Veríssimo. Algo como: "Não fosse a falta de isenção, não fosse o fato de Dallagnol querer e usar a imprensa para pressionar tribunais, não fosse o criminoso vazamento dos diálogos de Lula e Dilma, não fosse o lado assumido pela força-tarefa (entre o Diabo e o Coisa Ruim) confessado pelo procurador Carlos Lima em rede nacional, não fosse a subserviência de Deltan Dallagnol ao juiz Moro, não fosse a tentativa da constituição de um fundo ou fundação por parte dos integrantes da Lava Jato - fulminada pelo STF -, não fosse tudo isso, até que ... "! O PROCESSO PENAL NÃO PODE SER JOGUETE NAS MÃOS DE GENTE ÁVIDA POR PROJETOS POLÍTICOS Falemos, pois, a sério. Uma democracia exige o rule of law, que é mais do que Estado de Direito. Direito é uma questão de meio, não de fim. Não vale estuprar em nome da continuidade da humanidade, para parafrasear um velho adágio. Por isso, os defensores da Constituição não podem aceitar qualquer tentativa de "passar panos quentes" nas ilicitudes cometidas pelo juiz Sergio Moro e a força-tarefa. Não dá para salvar o "insalvável". Todos os atos tramados pela acusação em conjunto com o juiz e as quebras das garantias e dos tratados internacionais são chamados, em um país sério, de ilicitudes originárias. Por isso, temos de ficar atentos a uma espécie de "puxadinho hermenêutico" que se pode querer fazer para salvar um dos processos, o do sítio de Atibaia, que, segundo seus defensores, "não seria nulo" (sic) porque não foi Moro quem sentenciou, e sim a juíza Gabriela Hardt. Ora, não se pode concordar com eventual "tese" de separação entre a fase de produção da prova e a fase da sentença neste processo. Aliás, pelo que se apurou, a juíza fez "um copia-ecola" da decisão de Moro. Este caso, como todos os outros conduzidos pelo então juiz Sergio Moro, começou pelo fim. O juiz atirou a flecha e depois pintou o alvo. Ilicitude originária ocorre quando a raiz da árvore envenena o fruto. Os diálogos mostram a dimensão da peçonha. Não foi por nada que os norte-americanos deram a essa tese o nome de "frutos da árvore envenenada". É preciso que o STF dê um basta. E diga que o processo penal não é joguete nas mãos de gente ávida por projetos políticos. O Supremo tem de mostrar para o Brasil que a imparcialidade é sagrada. E que Moro foi um juiz herege. As mensagens revelam que não dá para fazer discursos autocontraditórios. Assim, se o juiz se fez de acusador, na própria investigação feita pelo Ministério Público existe uma ilicitude originária. Não há "puxadinho hermenêutico" que salve. E, fundamentalmente, não se diga que as mensagens, porque produtos do trabalho de um hacker, não podem ser usadas. Ora, houve perícia e as mensagens valem como prova a favor da defesa. Isso se aprende no primeiro ano de qualquer faculdade. O Brasil, especialmente o STF, tem de seguir o exemplo do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que adota a teoria da aparência: ele exige não só a imparcialidade do juiz; ele exige a aparência da imparcialidade e de justiça. A tese é: Justice must not only be dane; it must also be seen to be dane, inspirada no caso Rex vs. Sussex Justices, (1924) (UK). Como a mulher de César, não basta o juiz ser imparcial; tem de parecer imparcial. O lema é: Nada deve ser feito que crie até mesmo a suspeita de que tenha havido uma interferência indevida no curso da justiça. Encaixa como luva, não? Ou seja, a Constituição do Brasil e o Tribunal Europeu abominam o modelo "juiz Larsen" (Caso Hauschildt vs. Dinamarca), para citar apenas um exemplo. Os juristas brasileiros podem e devem buscar inspiração no Tribunal Europeu. Por lá, juízes e procuradores como Moro e Dallagnol não "formam". Como será aqui? Seria muito ruim que, depois do julgamento pelo Supremo, alguém dissesse: "Não fosse o fato de o STF ter deixado passar todas as ilegalidades, até que foi um bom julgamento". Confiamos no Supremo Tribunal Federal e no papel constitucional para o qual foi desenhado. • *Lenio Luiz Streck é jurista, professor e advogado; Marco Aurélio de Carvalho é advogado e coordenador do Grupo Prerrogativas; Fabiano Silva dos Santos é advogado e professor.
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