segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo

Rastafari nas ruas de Kingston, na Jamaica - Ilustração: Helton Mattei/Agência Pública

O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo


Caro leitor, Neste carnaval tive o prazer de passar alguns dias rememorando a última perna do Cablerun, um projeto para levar os cabos diplomáticos para o Caribe. Se você perdeu algum dos episódios desta série, basta dar uma olhadinha na página especial que preparamos para os leitores, aqui. Tenho recebido muitos comentários bacanas de leitores e um em especial merece menção honrosa: o escritor e jornalista Eduardo Lamas, ao ler o relato sobre o Haiti, enviou um poema que fez naquele ano de 2011, abalado por essa foto de uma criança haitiana (quem souber o nome do fotógrafo, avise!). Reproduzimos o poema no final do episódio de hoje, sobre nossa viagem à Jamaica e Bahamas. Boa leitura!
15 de fevereiro de 2021

Episódio 8 – Na Jamaica, sem maconha

Há algumas cenas das quais me lembro nitidamente, mesmo dez anos depois – acho que a gente guarda essas cenas porque elas nos ensinam algo mais profundo. Eu jamais esqueci da primeira vez que vi a notícia na TV, no dia em que nos instalamos no nosso hotel em Kingston, capital da Jamaica. Era 24 de abril de 2011, nosso primeiro dia de folga desde o começo da viagem, e no lobby do hotel eu vi a televisão anunciar que o WikiLeaks acabava de começar a publicação de mais de 700 documentos secretos sobre os prisioneiros de Guantánamo, incluindo avaliações confidenciais, entrevistas e memorandos internos sobre os detidos na famosa prisão militar amerciana por “terrorismo”. Entre os detentos havia mais de cem afegãos e paquistaneses inocentes, incluindo fazendeiros, chefs e motoristas, e até um garoto de 14 anos que fora sequestrado pela Al Qaeda e acabou em Guantánamo. Os arquivos continham ainda declarações de Khalid Sheikh Mohammed, arquiteto dos ataques de 11 de setembro, dizendo que a Al Qaeda defenderia Bin Laden a qualquer custo e que planejava até um ataque nuclear aos EUA. (Guarde essa informação; ela será importante depois).      

A publicação chamada “Guantánamo files” fazia parte daquela leva de documentos vazados por Chelsea Manning, os quais o Pentágono havia exigido que fossem devolvidos, alertando organizações de mídia “a não facilitar o vazamento de documentos classificados dessa organização de má reputação conhecida como WikiLeaks”.

Até hoje não sei o que levou Julian Assange e sua equipe a publicar todo o material em apenas três dias. Sem nos avisar. Talvez houvesse  por pressão dos antigos parceiros de imprensa com quem tinham rompido – o New York Times, por exemplo, publicou reportagens naquele dia deixando claro que não recebera o material do WikiLeaks, mas de “outra fonte sob condição de anonimato”.  (Àquela altura os documentos do WikiLeaks tinham peso de ouro no mercado de mídia, e instalava-se um quê de faroeste na corrida para obtê-los). Para mim, importava muito pouco o motivo. Fato é que nunca em um vazamento do WikiLeaks, uma equipe associada à organização estava tão perto do local dos fatos. 

A baía de Guantánamo, ao sul de Cuba, era logo ali, a menos de 300 quilômetros de onde estávamos. E nossa próxima parada, Bahamas, fica a apenas 100 quilômetros da costa de Miami, ou duas horinhas em um ferry boat que sai quatro vezes por semana. Estávamos conversando abertamente com representantes de grandes jornais, pelo telefone, sem nenhuma garantia que as autoridades locais não soubessem de nossa presença. E se as agências americanas – todas bem presentes no Caribe – achassem que tínhamos algo a ver com aquilo? Que estávamos roubando documentos secretos nas barbas do Tio Sam? Que estávamos vendendo segredos americanos? 

Obviamente nada disso era verdade; nem  tínhamos documentos conosco, nem estávamos fazendo nada além de estabelecer uma parceria jornalística. Mas, depois de ver Julian um tanto miserável depois de seis meses de prisão domiciliar, eu já sabia que a verdade era o que menos importava. Eu pensava, “eu vou matar esse cara”, e eu juro que nunca estive tão brava com alguém em toda minha vida. Você, leitor, não me conhece; eu sou uma pessoa de uma paciência quase infinita que evita a qualquer custo uma briga. Mas naquele dia, eu dei uma tremenda bronca no Julian. An earful, como dizem em inglês.

Fazia parte do roteiro de filmagem nos reunirmos, via Skype, a cada três ou quatro dias, com Julian e o resto da equipe, para contarmos como estava a viagem e o relacionamento com a mídia local e contarmos sobre o país. Na primeira reunião sobre o Haiti, por exemplo, levamos o laptop até a janela do nosso hotel em Porto Príncipe, e ele pôde ver, pela câmera, como logo ali na pracinha em frente havia um acampamento de vítimas do terremoto. Era nossa maneira de levar Julian em nossa viagem pelo Caribe. Pois naquela tarde, eu usei boa parte do tempo pra dizer que eles haviam colocado nossa equipe em perigo, que haviam traído minha confiança, que eu não sabia mais como ia seguir confiando nele; e eu estava sendo absolutamente sincera. Acho que foi a primeira vez que eu o vi efetivamente sem graça – não ao ponto de me explicar o que aconteceu de fato, mas ao ponto de pedir sinceras desculpas. Tanto Julian quanto Sarah explicaram que não tinham a intenção de adiantar a publicação, mas foram forçados a isso. Não tinha muito mais a ser feito, de fato. Então concordamos que o WikiLeaks compraria minha passagem de volta, também, evitando passar por Miami.  

Agora, em retrospectiva, eu entendo porque aquilo me abalou tanto. Além de estudar um pouco sobre cada país e entender os potenciais riscos associados à viagem, coube a mim liderar uma equipe com outros dois jornalistas, e ser responsável pela sua segurança. Isso nunca tinha acontecido antes – voltou a acontecer muitas vezes depois, inclusive em roubadas mais ou menos parecidas nas quais convenci Eliza Capai a me acompanhar. Mas eu não sabia como lidar com isso. E decidi, para bem de todos e minha tranquilidade mental, ser bastante rígida sobre os protocolos a serem seguidos. 

O primeiro, e mais óbvio assim que pisamos na Jamaica, foi proibir todo mundo de fumar maconha. Recebi reações indignadas de parte da equipe, mas me mantive firme. Embora seja reconhecidamente uma planta com uso religioso e cultural, fumar maconha – pasmem – é ilegal na Jamaica. Uma pessoa pega com até 50 gramas pode ser liberada imediatamente, mas fumar em público é ilegal e se o guarda não gostar da sua cara, já sabe. Era só o que me faltava: passarmos um mês organizando a entrega de documentos históricos para o jornalismo mundial, e sermos presos por causa de maconha! 

Pra ser honesta, minha ordem estóica não serviu de muita coisa, visto que nem um dia se passou até que encontrássemos “camarões” de maconha em uma gaveta no próprio quarto de hotel. A maconha, assim como o reggae, estava em toda parte: rapazes fumavam enquanto os entrevistávamos no mercado central, rastas andavam pela rua carregando camarões de 10, 15 centímetros mal disfarçados em sacos plásticos, oferecendo aos pedestres, pescadores fumavam enquanto consertavam suas redes na comunidade de pescadores em Port Royal. 

Como sempre, fomos conhecer mais sobre o país para colorir as lentes da Eliza, mas o nosso objetivo era mesmo organizar o acordo com o jornal The Gleaner, o periódico mais antigo do Caribe – tão antigo que os jamaicanos chamam jornais de “gleaners”. Passeamos com um apresentador da rádio Star, pertencente ao Grupo Gleaner, e vimos os bairros mais pobres e singelos, e como a música dominava cara portinha aberta naquelas casinhas de madeira com cercadinhos coloridos, como não havia um quarteirão onde não ecoasse as variantes do reggae – ragga, ska, reggeaton. Tudo é música na Jamaica. Dias depois, vimos a música em seu momento ápice, uma festa de rua onde mulheres e homens dançavam em frente a duas enormes caixas de som, de mais de 2 metros de altura. As mulheres, produzidíssimas, com perucas coloridas e roupas justas, dançavam sedutoramente, fazendo caras e bocas para a câmera de uma equipe de TV, até de manhã.    

O relacionamento com nosso parceiro local não tinha começado  muito bem. O editor, Garfield Grandison, simplesmente esqueceu de nos apanhar no Aeroporto. Apareceu horas depois, quando finalmente atendeu ao telefone, se desculpando; disse que não sabia que íamos chegar naquela hora. Tivemos ainda que esperar dois dias para a famigerada reunião, pois segunda-feira era feriado e ninguém no país parecia estar com a menor pressa. Mas, no dia da reunião, a costumeira emoção ao assinar o contrato, falar com Julian e ter acesso aos documentos. “Nossa, isso aqui parece um episódio de ‘As Panteras’!”, comentou uma das editoras do jornal. No final, uma revelação divertida: um dos documentos relatava um escândalo envolvendo o pagamento de propinas à polícia pelo dono do jornal. Garfield ria tão gostosamente, que todo meu bode foi embora. Lembrei-me que no final somos todos trabalhadores, dando o máximo que podemos e – por que não – tentando melhorar o mundo sempre que temos uma chance.

Havia pouco mais a fazer ali, além de filmar cenas do dia-a-dia. Tentamos entrar em um conjunto de prédios populares, o Tivoli Gardens, cercado por policiais fortemente armados que disseram que deveríamos entrar “por nossa conta e risco”. Saímos, e no final retornamos para o local dias depois, na nossa passagem de volta das Bahamas. Era, como sempre, um bairro pobre cheio de pessoas tentando ter uma vida digna. Enquanto isso, Lino aproveitou para entrevistar ativistas LGBT que enfrentavam enorme repressão no país, para uma matéria que saiu na revista Trip

Eu passei mais tempo no hotel e cheguei a me incomodar com a principal história que estava em todos os canais: o casamento do príncipe William com Kate Middleton (cada coisa que a gente se lembra, né?). Mas de fato, estava em todos os lugares, só se falava disso, dos detalhes, do vestido da noiva, e depois houve uma transmissão ao vivo que durou o dia todo. Foi só então que eu percebi que estávamos em terras da rainha; afinal, Jamaica e Bahamas fazem parte do Commonwealth of Nations, e em ambos os países a Rainha Elizabeth II é a chefe do Estado, rainha soberana. E todos os que estávamos encontrando e que encontraríamos – do rapaz rasta que fumava um enorme baseado diante de sua casa até o próprio Garfield – eram súditos da rainha da Inglaterra. 

Ainda na Jamaica, conseguimos alguns dias de folga, e nos separamos. Eu e Eliza fomos para uma praia paradisíaca no noroeste do país, chamada Port Antonio. Ali, algo nos chamou a atenção: não conseguíamos ficar um minuto tranquilas na praia sem que jovens jamaicanos, bonitos e musculosos, se aproximassem tentando puxar conversa. De início, pensei que fosse apenas o velho assédio que eu bem conhecia de minhas viagens pelo continente, mas não; era parte do esquema de turismo sexual masculino, algo bastante comum na Jamaica, assim como em alguns países africanos. 

Quando retornamos para a capital, no dia 1o de maio de 2011, um domingo, mais uma vez as notícias do mundo invadiram nosso caminho.  Nada mais, nada menos do que o assassinato de Osama Bin Laden por marines americanos em algum lugar do Paquistão. Eu jamais tive a oportunidade de perguntar ao Julian se ele achava que vazamento dos documentos de Guantánamo tiveram algo a ver com a data escolhida, se de alguma maneira eles adiantaram um plano que já estava em marcha. Acho que jamais saberemos a resposta. 

Na segunda-feira voamos para as Bahamas, um dos países que mais me surpreendeu dentre todos os que eu conheci no Caribe. Talvez porque eu não soubesse o que esperar. Mas eu nunca tinha visto um país assim: sem alma. Não conseguimos, por exemplo, filmar nada que se aproximasse do que é ser um nativo das Bahamas. 

As Bahamas são um conjunto de 700 ilhas, rodeadas por um mar de um azul intenso, hipnotizante. O arquipélago vive, obviamente, do turismo – seus cerca de 400 mil habitantes recebem, anualmente, mais de 7 milhões de turistas, sendo 70% de navios cruzeiros. 60% do PIB do país vem do turismo, e a segunda maior renda vem do nebuloso negócio de empresas offshore. Todo ano, a ilha recebe 5,5 milhões de turistas americanos. Ali, tudo parecia estar à venda, em um enorme parque de diversões temático. A moeda é o dólar das Bahamas – cujo valor é atrelado ao dos Estados Unidos, também amplamente usado na ilha. Assim, quando a economia americana decai, como na crise de 2008, o país vai à bancarrota. Se há um lugar em que eu vi como o turismo pode destroçar a essência de um país – mesmo que ele seja lindo, paradisíaco – foi ali. As Bahamas são o parque de diversões dos Estados Unidos, nada mais. Algo como o que Cuba era antes da revolução de 1959.

Talvez a realização mais chocante tenha vindo quando recebemos, ao entrar no país, os formulários que teríamos que preencher para entregar às autoridades da alfândega na saída. Em vez dos nossos dados pessoais, o que o governo das Bahamas pedia era que déssemos notas para a nossa estadia: Você aproveitou as Bahamas? O serviço foi bom? As ruas estavam limpas o suficiente? O seu hotel deixou a desejar? 

As Bahamas são um serviço, não um país.  

Como quintal dos Estados Unidos, a ilha estava em alerta máximo quando chegamos, já que o governo americano temia alguma retaliação após a morte de Osama Bin Laden. Um alerta fora emitido para os estadunidenses não viajarem a nenhum lugar. 

No aeroporto de Nassau, a capital, eu fui parada, pela primeira vez, e os oficiais de imigração me deram uma canseira porque eu não tinha minha passagem de volta comigo (o WikiLeaks ia comprar, mas obviamente eu não disse isso), me enchendo de perguntas. Falei que éramos turistas, amigos, estávamos ali para conhecer seu belo país, etc, e eles só me liberaram quando viram que eu tinha um visto americano e havia estado recentemente no país. No hotel, não pudemos subir para o quarto porque havia uma ameaça de bomba naquele mesmo dia. Ficamos à beira da piscina, conversando com nossos anfitriões locais, o editor de notícias  Brent Dean e a editora-chefe Érica, do Nassau Guardian, um jornal de mais de 150 anos. Eles eram fechados, formais até, bem pouco parecidos com os jornalistas que encontramos até ali – um tanto executivos, um tanto americanizados, eu diria. 

Então Brent nos levou a conhecer a beira do mar, pertinho do hotel, onde desembarcam centenas de cruzeiros todo ano, e contou que quando era criança ele adorava ir até o desembarque para brincar com os turistas. “Depois de 11 de setembro eles ampliaram a segurança e os bahamenses não podem chegar perto dos enormes navios”, diz. E assim nós os vemos desembarcar, os norte-americanos, com suas roupas de banho e chapéus de sol, vestidos para a praia e sempre carregando suas câmeras; eles podem descer por algumas horas e passear por lojas absolutamente idênticas às que encontram em Miami ou em qualquer shopping do seu próprio país: Dolce & Gabbana, Hard Rock Café, Gucci, Rolex... Mais tarde, eu, Eliza e Lino nos divertimos em um bar gringuíssimo – Mr. Frog’s – compartilhando drinques extravagantes, de marcante mau gosto, com uma multidão de jovens e velhos que afogava suas mágoas – existissem ou não – ao som de pop americano e virando shots com cores quase fluorescentes.  

Os jornalistas do Nassau Guardian se mostraram pouco animados com a nossa presença ou a conversa com Julian Assange, e para minha surpresa tinham pouco de interessante a contar sobre o seu próprio país. Mas os rostos se iluminam, como não poderia deixar de ser, quando eles conseguem acessar a base de dados de documentos, exclamando “Oh my God! Oh my God!”. Mas isso é tudo. Depois de nadarmos na piscina elegante do hotel, passearmos pelos shoppings e pelos cassinos e pelas ruas abarrotadas de turistas, e passarmos um dia inteiro em um hotel resort que tem um complexo de piscinas com escorregadores, corredeiras, e um enorme aquário no qual uma bela atriz vestida de sereia (!!) consegue nadar por minutos a fio sem respirar, e um enorme tubarão-martelo arranca uma exclamação de “esse peixe é Deus!” do Lino, nós só fomos encontrar a alma da nossa viagem em um lixão. 

Foi no nosso segundo dia no país. Naquela tarde, fomos filmar um empreendimento chinês que prometia ser o maior resort da ilha. Enquanto olhávamos para os trabalhadores da construção, Brent explicava um pouco sobre os avanços chineses no turismo local – o conflito entre as duas superpotências seria um dos enredos mais interessantes revelados pelos os documentos diplomáticos do WikiLeaks. 

Dali, fomos para um lixão onde as pessoas trabalhavam como catadoras. E encontramos ela, Rosalene. Roselene, haitiana, é uma dessas pessoas que você conhece durante uma reportagem e que nunca mais sai da sua cabeça. Ela nos contou que estava procurando roupas no lixão porque tudo o que tinha havia queimado em um incêndio que varreu do mapa a favela onde morava. Foi só nesse momento que nosso anfitrião se lembrou de dizer que, além dos milhares de bahamenses e muitos mais turistas, Nassau tem 40 favelas, todas de madeira, e todas habitadas por haitianos, que chegam em embarcações precárias como as que os cubanos usavam para chegar a Miami nos anos 80. As favelas são todas de madeira porque o governo não deixa que se construa nelas, e fica muito claro que a principal política é a deportação – cerca de 7 mil haitianos são enviados de volta ao país por ano. 

Rosalene nos mostrou o que carregava na bolsa, garrafas de vidro que venderá mais tarde. Dias depois, ela nos mostra a casa onde está morando e a favela onde vivia. Não há absolutamente nada lá. Antes, 800 pessoas moravam na favela afetada. Um enorme terreno cinza, desolado, terra arrasada. Eu e Eliza nos entreolhamos, compartilhando um pressentimento incômodo; difícil acreditar que aquele tipo de incêndio fosse totalmente acidental. 

Rosalene vivia então com uma prima, também imigrante, no único cômodo da casa, em outra favela. Na cama, dormiam a prima e os dois filhos pequenos, e Rosalene dormia no chão.  Rosalene não tinha nada. Ela perdeu tudo, até seus documentos, no incêndio. A única coisa que ela tinha era uma enorme pilha de garrafas de vidro que venderia para pagar a passagem de volta ao Haiti. Queria voltar, tinha que voltar porque havia deixado seus três filhos na ilha, e dizia que era melhor estar com eles, já que ali nas Bahamas não havia futuro nenhum. Ela tinha dinheiro para a passagem, dizia, mas precisava de um novo passaporte.

Então fizemos algo que eu sempre relutei em fazer nessas situações, porque envolve muitas questões éticas sobre as barreiras do jornalismo, ou seja, até onde você pode ou deve intervir. Mas Rosalene, de fala insistente e segura, de um olhar sério e obstinado, sozinha num país que não a quer, longe dos filhos; não tinha como não ajudar Rosalene.  

Levamos a haitiana até a embaixada e fizemos junto com ela todos os trâmites legais. Ela precisa de fotos, que a ajudamos a tirar, e depois tem que preencher alguns formulários, o que também fazemos com ela. O valor para ter um novo passaporte era proibitivo – 75 dólares – e pagamos na hora. No fim do dia, quando a deixamos novamente na casa da prima, ela parece muito animada. Nos despedimos com um longo abraço, e eu esperava que seria esse o fim. Mas, anos depois, a Eliza recebeu um email em um creole difícil de entender, e era Rosalene, que dizia que estava no Haiti com os filhos e nunca ia esquecer o que fizemos por ela. Estava feliz, essa tremenda mulher.  

Assim chegou, enfim, o último dia da nossa viagem. Na última reunião por Skype, nos despedimos da aventura e de Julian. Ele disse “well done, guys!” e desligamos o laptop. Foram 26 dias viajando por países tão diversos e tão ricos, e tão condenados à miséria como o nosso. Despedi-me do Caribe esgotada para assumir o posto de professora da Escola de Jornalismo Autêntico que era organizada todo ano pela organização Narconews no México  durava dez dias. Dessa vez, usei todo tempo que pude para ficar calada, absorvendo tudo aquilo. Por sorte choveu muito e eu passei noites e noites na varanda do meu chalé, olhando a chuva cair.    

Eu achava que a minha aventura com o WikiLeaks acabaria por aqui, tendo concluído com sucesso o projeto mais ousado da minha carreira até então. Não imaginava que um homem me arrastaria, de corpo e alma, pro núcleo duro do WikiLeaks. 


HAITI

Por Eduardo Lamas, 4 de outubro de 2011

Uma grossa lágrima
escorre de um só olho
e corta o sorriso esboçado
Ouve-se bem longe
uma escancarada gargalhada
Aquém desses miúdos olhos pretos
o olhar baço 
que percorre a multidão
sem vê-la

A desesperança
a desilusão
a esperança
a ilusão
de fraca luz enevoada
em meio aos escombros

Olhos secos tateiam
o céu invisível
na busca da brecha,
do rasgo, do escape,
da entrada ou saída
para o outro lado
da vida ou da morte.

O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo é uma parceria da Agência Pública e do Meio. A série está sendo publicada como uma newsletter pop-up, um novo formato de newsletter que se encerra após um determinado número de edições.

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