Havia também a Eliza Capai, que chegara pouco antes e dava a tudo um ar de familiaridade.
Naquela tarde de sábado, 9 de julho, Julian Assange celebraria seus 40 anos em prisão domiciliar, em uma festa que deveria ser memorável; o pessoal do WikiLeaks convidou deus e o mundo – incluindo o ex-presidente Lula, Angelina Jolie e Brad Pitt – para um evento cujo objetivo, segundo ordens de Julian, deveria ser medir a popularidade do WikiLeaks. “Isso não é uma festa, é uma oportunidade de Relações Públicas”, explicou rapidamente Sarah Harrison pouco antes dos convidados chegarem pela entrada montada na lateral da mansão. O caminho dava para uma grande tenda branca, armada especialmente para a ocasião, onde se viam duas mesas longas onde seria servido o buffet. Ao lado, um salão havia sido montado para o evento, uma espécie de gazebo enorme, também de lona branca, com mesas redondas, cobertas com toalhas igualmente brancas e cinco cadeiras cada. Eu me lembro de ter olhado para a Eliza, no meu vestido longo, florido, e comentar, desapontada: “puxa, achei que era uma festa”. A equipe do WikiLeaks tinha até mesmo pedido para cada um de nós puxar papo com alguns convidados específicos para entender como eles viam o trabalho da organização.
“Esses caras são malucos”, me disse a Eliza. “Surreal. Cada hora ele [Julian] quer uma coisa, e todo mundo fica correndo atrás como um louco. Estou aqui há um tempão e eles ainda não decidiram que vídeo querem fazer para o filme do Cablerun. Filmam tudo. É muito material, vai ser impossível fazer algo com isso!”, ela me disse. “E o pior é que o Julian nem tira nem o prato dele da mesa! Sempre tem alguém pra tirar, e depois lavar. Eu comecei a falar, a chamar a atenção...”. A essa altura, Eliza já tinha dado uma primeira lição de feminismo ao Australiano, justamente dizendo a ele que, se ele queria mesmo ser um revolucionário, tinha que lavar o próprio prato. Ele entendeu, e lavou o prato naquela noite. Depois, esqueceu. “eu vi isso como uma pequena vitória”, disse ela.
Eu a abracei. “Isso aqui é demais!”, ela falou, depois do desabafo.
Nessa viagem eu consegui entender um pouco mais o Julian, depois de ouvir tantas vezes a mesma pergunta, em dezenas de entrevistas: “quem é Julian Assange”? Naqueles dias de julho de 2011 eu consegui vislumbrar algumas respostas, mas elas só ficaram mais claras quando eu vi os laudos médicos reconhecidos pela juíza britânica em janeiro deste ano, atestando que Julian tem a síndrome de Asperger, um transtorno neurobiológico do espectro autista muito comum entre desenvolvedores de softwares e cientistas do campo da matemática. Inteligência acima da média, obsessões e compulsões, rituais e comportamentos repetitivos e falta de compreensão de códigos sociais são algumas das características dos Asperger. Fica mais fácil entender com um exemplo bobo: Sheldon Cooper, da série Big Bing Theory, é repetidamente apontado como um exemplo de uma pessoa com a síndrome de Asperger, embora os criadores digam que não se inspiraram na síndrome.
Os seus portadores têm obsessão em controlar os mínimos detalhes à sua volta, e enfrentam enorme sofrimento quando algo lhes foge ao controle. Embora eu só viesse a entender isso oito anos depois, uma cena ficou guardada para sempre na minha memória sobre Julian, que para mim resume esse lado de sua personalidade. Uma manhã nós decidimos ir a uma praia no norte da Inglaterra para um banho de mar. Estávamos naquele verão horroroso dos britânicos, um céu cinza e todos com casacos pesados, mas foi um dia memorável. Julian e alguns dos mais valentes – havia um casal de suíços conosco e um cenografista russo, que compunham a “equipe dos Stans” (como eram chamados Casaquistão, Turcomenistão, Quirguistão, Afeganistão) dentro do projeto do Cablerun, o nosso road movie – entraram na água, enquanto eu fui explorar o píer e uma feirinha de comidas ali ao lado, onde havia também um parque de diversões. Quando eles voltaram, achamos que seria divertido ir a alguns brinquedos. Sarah Harrison e os suíços foram a uma roda gigante, eu fui brincar com os filhos do Kristinn em carrinhos bate-bate, alguém comprou um algodão doce. E, para finalizar, decidimos todos ir a uma montanha russa, com alguns pequeninos sobes e desces, incapazes de provocar qualquer sobressalto. Quando dissemos para Julian, ele ficou ainda mais pálido. Ficou realmente apavorado. Odiava montanhas-russas, não ia de jeito nenhum, etc. (lembrem-se, amigos, que Julian é um homenzarrão com 1,87 metros e já tinha 40 anos). Mesmo assim, insistimos que ele viesse conosco, arrastamos ele até o carrinho, mas eu nunca o vi tão assustado. Depois da viagem, levou muitos minutos até ele se recompor. Eu percebi que tínhamos feito uma coisa errada, que aquilo fora uma violência – talvez por isso a cena tenha ficado marcada na lembrança. Agora tudo faz mais sentido: aquele tipo de situação é exatamente o que deixa um portador de Asperger inseguro, assustado.
Ainda naqueles dias, Eliza me contou de outra cena que jamais esqueci, mesmo tendo ouvido em segunda mão.
Quando comecei a escrever essa newsletter, ela me avisou que essa fora a sua lembrança mais forte dos dias que passou na mansão. Uma noite, já era tarde da noite e estavam apenas os dois trabalhando na sala, e Julian a chamou para mostrar algo no seu laptop. “Fui lá e ele me mostrou quantas páginas apareciam no Google quando se colocava ‘Julian Assange Rapist’” (Julian Assange estuprador). Depois, Julian disse a ela como era difícil lidar com aquilo, sem nem ter tido o direito de defesa. Em seguida, ele deitou-se debaixo da mesa, em posição fetal, para surpresa da minha amiga. “Igual uma criança desamparada”, me disse Eliza. “Eu fui meio brincando de mãe, carinhosa, e falei que ele tinha que ir para a cama. E ajudei a levantá-lo dali”. Eliza diz que “aquela cena dele vendo as milhares de páginas e depois deitando indefeso me marcaram muito” e mudaram a imagem de poderoso que Julian tentava passar. Talvez o maior medo dele sempre tenha sido esse: que descobrissem seus pontos fracos.
Voltando ao dia da festa, a verdade é que aquele papo de RP não tinha como dar certo. Grande parte dos convidados mais próximos a Julian chegaram no começo da tarde, em uma van alugada para levá-los desde Londres, como o jornalista Gavin MacFadyen e sua esposa, Susan Benn, uma alegre senhora americana de uns 70 anos. Quando eles chegaram, a emoção foi enorme, todos se abraçaram (lembram como era bom abraçar as pessoas de quem a gente tinha saudade?) e eu e Eliza rapidamente bebemos o suficiente para esquecermos com quem a gente devia conversar e passamos boa parte da festa conversando com uma milionária, dona de uma famosa rede de sex shops, que nos revelou que vibradores podem viciar as mulheres e por isso ela confeccionava alguns tipos bem específicos para ampliar, em vez de reduzir, o prazer feminino a cada uso. Foi a informação mais importante que obtivemos naquela tarde, antes de entoarmos “Garota de Ipanema” ao lado de Sarah ao microfone, uma patética mas amorosa homenagem a Julian em meio a discursos intermináveis de agradecimento à sua coragem. Julian estava sério, tendo conversas importantes em uma mesa e recebendo os convidados, mas não resistiu. Uma banda encabeçada por um amigo seu que estava em Oxford fazendo mestrado – ele já figurou aqui na newsletter – tocava jazz para todo mundo. E até Julian caiu na dança, junto com todos nós, embora seja público e notório que o australiano não é um pé de valsa.
Para a minha surpresa, Kristinn até que dançava bem a dois, mas assim, apenas o tanto que se pode esperar de um senhor nórdico, e eu já estava pouco me lixando, e fazia feliz o seu par chamando os dois filhos para bailarem com a gente.
Na tarde seguinte, todos viajamos para Londres porque na segunda-feira, dia 11, começaria o julgamento do recurso impetrado pela defesa de Assange. Naquela época, a Suécia queria que ele fosse extraditado apenas para ser interrogado, uma vez que não era réu. Um acordo bilateral permitia esse tipo de extradição, mas havia milhares de questionamentos a serem feitos – entre eles o fato de que Julian havia se oferecido para prestar depoimento na Inglaterra e que acreditava que os EUA estavam por trás do caso, o que acabou se provando verdade.
Naqueles dias, para a equipe do WikiLeaks, o essencial era romper a barreira de informação midiática, a essa altura já bastante ácida em relação às aventuras do australiano na Suécia. O Guardian havia publicado, alguns dias antes, um testemunho que foi vazado para o jornal de uma das mulheres, com todos os detalhes das noites que passara com Assange. Ele reagiu virulentamente através de uma nota, condenando a publicação e dizendo que sua privacidade fora violada. Mas Assange sabia que a disputa ia muito além dos quesitos jurídicos e técnicos. Apenas a opinião pública poderia forçar a decisão para pender para seu lado. Foi nessa época que a advogada Stella Morris entrou de vez na equipe. Stella, baixinha, de cabelos encaracolados e o rosto duro, grande e oval, comandava uma página na internet onde todas as informações sobre o caso, nos mínimos detalhes, eram dispostas ao público de maneira relativamente organizada. Fluente em espanhol e em sueco, ex-aluna da prestigiosa Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres e da Universidade de Oxford, de uma inteligência notável, ela foi essencial para a batalha contra a extradição. Naquela época ela se chamava Sara, mas mudou de nome para manter um baixo perfil, algo que ela manteve até recentemente, quando se tornou conhecida mundialmente como companheira de Assange. Tinham ainda uma coisa em comum: na infância, Stella viajara o mundo acompanhando a mãe, diretora de teatro; Julian acompanhara sua mãe e o padrasto, que tinham uma trupe de teatro ambulante, a várias cidades da Austrália. Mas eu não imaginava que ali estava nascendo mais um grande amor.
No dia que anterior, Julian se detinha nos menores detalhes do julgamento: como seria a sua entrada no Tribunal, quem deveria estar ao seu lado, que roupas ele usaria, de que carro sairia. Decidiu usar óculos em público pela primeira vez, assim como uma flor vermelha de papoula – o símbolo para o dia de apoio aos veteranos de guerra, tradição ainda popular dentre os britânicos. “Você vai ficar ridículo”, disse Sarah.
Poucas horas depois, partimos de dois em dois, ou três em três, em trens rumo ao Frontline Club, onde haviam alugado três apartamentos na estreita rua marcada pelos arcos de pedra – mesma viela de onde, oito meses antes, havíamos saído na calada da noite para coordenar o maior vazamento da história do jornalismo, sem ter a menor ideia do que isso ia causar.
Corte de Old Bailey - Ilustração: Helton Mattei/Agência Pública
Foram três dias e meio de julgamento, num ritmo arrastado e lento, com excesso de discussões técnicas cujo principal eixo estava na raiz da adoção, pelo parlamento britânico, da convenção sobre extradição da União Europeia. Alguns mal conseguiam manter os olhos abertos, mas outros, como a advogada Renata Avila, tuitavam freneticamente desde a corte. Além do momento de chegada e da saída de Julian Assange – sim, ele chegou com seus óculos empertigados, seu paletó cinza e acompanhado de Kristinn, de um lado, e a advogada Jennifer Robinson do outro – quando foi cercado por fotógrafos e jornalistas com seus gravadores querendo desesperadamente alguma “aspas”, os dias eram mornos do lado de fora da imponente corte de Old Bailey, a mais tradicional de todo o Reino, a algumas quadras da estação de Charing Cross, no coração da Londres antiga. O prédio imponente, com uma enorme abóbada onde se ergue, imponente, o símbolo da Justiça, com seus olhos vendados, recebia os visitantes com um enorme salão que podia lembrar o de uma igreja; exceto pelo fato de que todos os visitantes tinham que passar por um detector de metais. Lá dentro o enorme salão tinha uma profusão de escadas que levavam a andares, que levavam a outros andares e que, alguns, levavam a torres tão estreitas como as de um castelo medieval. O salão térreo tinha quartos dedicados a lembrar a história das cortes inglesas, com vitrines mostrando as roupas que em outras épocas fundamentavam o poder dos juízes ingleses, que julgavam gente de outras terras, terras de outras gentes, que determinavam as regras do dia a dia de um império que se estendeu pelo mundo sem jamais ver o sol se pôr. Eram apenas um pouco mais exóticas que as roupas que ainda hoje, naquelas pequenas salas dos andares primeiro e segundo, usavam os juízes a determinar o futuro de causas complexas como a de Julian Assange. Nas vitrines havia togas coloridas, perucas brancas e prateadas, martelos que simbolizavam o sim ou o não do juiz. Lá dentro, os julgamentos eram silenciosos. Apenas uma testemunha falava de cada vez, e as salas, não muito grandes (deviam ter uns 5 x 5 metros), eram ladeadas por uma arquibancada de madeira castanha, meticulosamente lustrosa, onde cabia apenas um número pequeno de jornalistas (cerca de 10), e um igual número de acompanhantes da acusação e da defesa. No caso do julgamento e Julian, algumas pessoas ficavam do lado de fora, no corredor, esgueirando pela fresta qual era o clima do momento. Era, no geral, tenso e sério, os três juízes usavam suas togas negras e suas encaracoladas perucas brancas, demonstrando cerimoniosa seriedade; mas a sua fantasia provavelmente era ainda mais risível que os óculos e o poppy seed de Julian Assange. Eu consegui dar uma olhadinha e me enfiar ali no enorme prédio, curiosa como um gato, em um dos poucos intervalos que eu tive da minha principal ocupação naqueles três dias: traduzir releases e notas para o site do WikiLeaks, por um lado, e ficar de olho nos filhos do Kris, por outro.
Nosso QG era um escritório comercial do outro lado da rua, onde podíamos ver o Tribunal e os jornalistas aglomerados lá embaixo, e onde a menina descobriu, para meu deleite, que podíamos pular para um amplo parapeito e ficar à beira da mais movimentada avenida de Londres, olhando os pedestres lá em cima (a brincadeira não durou muito porque rapidamente o dono do escritório veio me dar uma enorme bronca e eu tive que tirar as crianças dali pra não sermos expulsos).
Durante os três dias de julgamento, o grupo de apoiadores fiéis de Julian recebiam-no na calçada com suas faixas, e não arredavam o pé até o fim da sessão, às 17 horas, entoando em seus violões músicas tais como “Blowing in the Wind”. Também ficavam por ali alguns caminhões com equipamentos de TVs, fotógrafos de jornais do mundo todo, e a regular balbúrdia dos transeuntes que iam de um lado para o outro no centro de Londres.
Do outro lado da rua, um predinho de escritórios abrigava a nossa mini-redação, uma salinha de não mais de 3x3 metros no quarto andar, com uma mesa, algumas cadeiras, uma impressora e laptops. Dali, a equipe conseguiu enviar alguns press releases e alguns vídeos. No segundo dia, os filhos de Kristinn logo descobriram a janela que dava para o estreito vão no terraço do prédio, que tinha vista para o magistral prédio da Corte de Old Bailey, permitia que ela se tornasse um excelente alvo para aviõezinhos de papel. E assim foi a mais rebelde ação de guerrilha levada a cabo pelos “wikikids” – como passaram a ser chamados – durante boa parte do julgamento.
No último dia de procedimentos, quarta-feira à tarde, Julian saiu da corte entusiasmado com a condução meticulosa da juíza, e dizia ter total confiança em uma decisão contrária à sua extradição. “Só existe uma decisão certa nesse caso. Só há uma conclusão à qual os juízes podem chegar”, dizia Julian. Animado, enquanto os outros corriam para encaixotar a bagunça de papéis e folhas e laptops que haviam sobrado para liberarmos o escritório, Julian decidiu ele também juntar-se aos pequenos e atirar ele também aviõezinhos de papel sobre o prédio da Corte Suprema. Sem os óculos, sem o empertigamento do paletó, ele dava risada com as crianças sob as lentes espertas de Laura Poitras, que filmara grande parte dos bastidores do julgamento – dois anos antes de tornar-se famosa por receber e divulgar parte do documentos obtidos pelo ex-analista de inteligência terceirizado da NSA Edward Snowden. Infelizmente seu filme “Risk”, que foi publicado em 2016, é uma decepção em todos os sentidos. Ele reúne dezenas de imagens em que Assange se mostra uma personalidade incongruente, estranha, estapafúrdia, para demonstrar não sei o que. E perde totalmente o fio da meada da importância que teve para o mundo o papel do WikiLeaks e o gênio de Assange.
Naquela noite, Julian decidiu levar toda a trupe até um restaurante turco próximo ao Frontline Club, numa comemoração que guardava um ar – alguém lembrou – de jantar do “poderoso chefão”. Estávamos todos felizes; éramos um grupo de umas 30 pessoas, que incluíam todos os que estavam envolvidos no Cablegate, Kristinn e a família, Joseh Farell e Sarah Harrison, Stella Morris, Gavin e Susan, os advogados, o jornalista John Pilger, Sarah Saunders, e até o pai de Assange, John Plimpton. Fumamos narguilé, bebemos vinho e comemos uma infinidade de pequenos pratos turcos: carne de ovelha, arroz, pães variados, espetinhos. Ficamos até tarde da noite aproveitando a folga nas estritas condições de prisão de Julian – naquela noite ele não precisava estar em Ellingham Hall, para onde todos retornaram no dia seguinte como um cortejo.
Estava também entre nós, uma figura que me chamou atenção, na época e nos anos seguintes, justamente porque soube explorar uma das fragilidades de Julian, sua inabilidade social. Todos achávamos aquele rapazinho islandês, que se dizia fã e hacker, absolutamente desagradável e esquisito.
Siggi Thordarson conheceu Julian quando ele estava na Islândia, e
apesar dos protestos irritados de Kristinn, que jamais confiara nele, se tornaria informante do FBI dentro da organização, realizando a proeza de entregar 4 terabites de informações dos computadores de Elingham Hall nas mãos da polícia americana. Naqueles dias, funcionava como uma espécie de “faz tudo” de Julian, e sempre abria as conversas com algum comentário absolutamente sexista, como “quando você estiver livre, imagina cada gostosa”, algo que soava fora de lugar e falso demais para serem verdadeiras.
Ainda passamos alguns dias na mansão em Norfolk antes de eu voltar para o Brasil. John Plimpton, pai de Assange, que voara desde a Austrália para o julgamento, era tratado com reverência pela equipe de Assange, mas com certa distância pelo próprio filho (ele se separou da mãe antes do nascimento). Era claro que eles não tinham muita intimidade, mas que Assange puxara muita coisa do pai. Plimpton era um homem alto, bonito, de uma fala intensa e pausada, exatamente como o filho. Era mais moreno que Assange, mais hippongo, e nada afeito às tecnologias, mas compartilhava com o filho um ar de descolamento da realidade que fazia com que quase flutuasse nos ambientes. Importava-lhe muito pouco os detalhes mundanos da vida, e tinha óbvio desprezo pelas conversas banais sobre a vida, a semana e os dias, o dever das crianças e o tempo; raramente se conseguia encetar uma conversa do tipo com ele sem que ele obviamente se perdesse em seus pensamentos. Gostava de falar de filosofia, de ioga, de filosofia oriental e das eras, das energias e das revoluções. “Existe a maldição dos frutos”, disse certa noite, durante uma conversa na mesa da cozinha. O tema era o crescimento de uma organização ou grupo e por que grandes organizações se tornavam ineficientes na era atual, tema favorito de Julian. “Crescer, produzir, tem este problema. Você gera frutos, e você quer os frutos. Mas os frutos trazem consigo a sua maldição. Eles pesam sobre os galhos, eles ao mesmo tempo que são a evolução natural das árvores, puxam-na para baixo e evitam que ela cresça mais rápido. Você teria que matar os frutos para seguir crescendo...” Assange o olhava fixamente, em silêncio, refletindo, sem perceber a rudeza das palavras do pai, que eu percebi claramente, tanto que jamais esqueci daquela noite em que um pai dizia ao filho que ele abandonou sobre “a maldição dos frutos”.
Lembrei-me da mesma cena ao ver no filme Risk o momento em que Lady Gaga visita Assange e tenta gravar algumas imagens mostrando que ele é uma pessoa normal. Julian está claramente exasperado. “Eu não sou uma pessoa normal. Eu sou obcecado com a nossa batalha política”. Lady Gaga tenta apelar para sentimentos mais mundanos: “você ama a sua mãe”?
“Amo”, responde Julian, rapidamente. “E o seu pai?”
“Meu pai é algo muito mais abstrato”.
Nos últimos dias em Ellingham Hall, tivemos uma reunião com uma produtora francesa que se interessou pelo filme sobre a entrega dos documentos. Foi quando eu percebi que o trabalho feito pela equipe dos “Stans” entusiasmava muito mais o australiano. Julian pediu orgulhoso para Johannes Wahlström, o diretor sueco, mostrar alguns trechos do seu filme. A exibição durou quase duas horas. No “road movie” ele e sua namorada Katia queriam explorar a decadência da mídia ocidental e oriental. O filme era confrontativo, e para um melhor efeito o casal se apresentava aos diretores de alguns dos principais jornais nas pouco democráticas ex-repúblicas soviéticas como jornalistas fazendo um documentário sobre a mídia em cada país. Apenas com a câmera ligada eles revelavam estarem trabalhando com o WikiLeaks e terem os documentos secretos, registrando a surpresa, e, em alguns casos, o desespero dos jornalistas que inadvertidamente sairiam no filme.
Aquilo me irritou tanto que naquela noite tive uma enorme discussão com Julian na mesa da cozinha. Tudo foi filmado. “Estamos fazendo isso para empoderar esses jornalistas e essas mídias, não para acabar com elas”, eu disse, primeiro calma, e depois bem exaltada. “Não é justo marcar uma entrevista com alguém e de repente oferecer documentos secretos, como se isso fosse uma coisa normal. Não tem resposta certa nessa hora e o vídeo é super prepotente”. “Por quê?”, irritava-se Julian. “Você não acha que eles deveriam publicar os documentos?” “Deveriam, os documentos são incríveis, mas você não pode julgar a situação do jornalista que trabalha num lugar desses...” “Como assim não posso julgar?” “Sim, não pode. Vocês estão dizendo que são moralmente superiores aos outros!” “Mas é claro que somos moralmente superiores”, gritou Julian, antes de me provocar: “O seu sonho sempre foi trabalhar na grande imprensa, é por isso que você não quer criticar a mídia”. A acusação foi o estopim. Eu me levantei e soquei a mesa: “Você cala a boca antes de falar uma coisa dessas. Eu sou jornalista há dez anos, nunca tive uma porra de um carro, nunca tive uma porra de uma salário decente, porque eu faço o que acredito e não porque quero ganhar dinheiro ou ser famosa. Qualquer um que conhece meu trabalho sabe disso, quem é você para falar uma merda dessas?”. Eliza ficou do meu lado, e a discussão morreu pouco depois. Assim que o cameraman russo desligou a câmera, Julian deu um largo sorriso e voltou ao seu estado absolutamente normal: “Isso, garotas, vocês foram ótimas”.
Mas que filho da puta, pensei. Era tudo uma encenação.
Nos meus últimos dias em Ellingham Hall – seriam de fato os últimos – eu tive outras conversas bem mais instigantes com o líder do WikiLeaks. Ele estava considerando como a organização poderia crescer e se tornar realmente mundial, solidificando o conceito que ele havia criado. Eu sugeri que se criassem redes de jornalistas locais, com acessos a dropboxes seguros, que pudessem melhorar a imprensa em cada país através de uma atuação destemida e profissional. Julian gostou da ideia, mas advertiu para mim que não gostava da ideia de institucionalizar demasiadamente a organização. “O Greenpeace, por exemplo, quando começou era revolucionário. Agora, é uma organização enorme”.
“Mas eles conseguem dinheiro em vários lugares”, respondi. “O problema é que eles não estão mais na vanguarda”, disse, elaborando um pouco mais sua visão. “É o seguinte: ao começar a fazer os vazamentos, nós estamos mudando o centro do que é permitido, do que é possível fazer. Estamos radicalizando todo o sistema”, dizia ele mostrando com o punho cerrado a mudança de eixo de todo um sistema circular, imaginário. “Puxamos para o lado e assim algumas coisas se tornam normais. Mas o desafio é não se tornar simplesmente o centro desse novo sistema, é continuar sempre na vanguarda, empurrando e radicalizando o que é 'normal'”.
Era claro que o plano de Assange não envolvia uma estabilidade ou planejamento de longo prazo. “Não estamos nisso por dinheiro e nosso modelo de negócios é sobreviver”, resumiria Kristinn em uma conferência de jornalismo anos depois. Mas naquela tarde, Julian estava melancólico com as suas inevitáveis escolhas. “Agora tem um monte de gente que depende de mim”, refletiu. “Ninguém depende de você”, retruquei. “Apenas o WikiLeaks. As outras pessoas podem se virar”. Ele suspirou, “Tomara”. Quis terminar o papo com uma brincadeira com meu amigo mala: “Você está crescendo, já é um adulto. Já tem 40 anos”.
Julian pareceu ofendido. “Imagina! Eu, adulto??”.
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