quarta-feira, 3 de março de 2021

Porque divulgamos o áudio de uma reunião “secreta”

 

Mais de cinco anos após a tragédia em Mariana, muitos atingidos ainda não receberam nenhuma indenização pelos danos causados. Como se não bastasse, as vítimas ainda são ameaçadas e intimidadas pelos responsáveis pela reparação, como ficou comprovado em um áudio revelado pela Agência Pública na semana passada. 

Na newsletter de hoje, a repórter Alice Maciel explica por que é necessário seguir investigando o que as mineradoras escondem por trás de propagandas milionárias e reuniões secretas. 

Como você vê a reparação aos atingidos de desastres como os de Mariana e Brumadinho? Envie sua reflexão para as Cartas dos Aliados!

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Um abraço,

Giulia Afiune
Editora de Audiências
Por que divulgamos o áudio de uma reunião “secreta”
por Alice Maciel

Na última quinta-feira, depois que foi ao ar a reportagem revelando um áudio chocante em que a advogada da Fundação Renova ameaça atingidos da barragem de Mariana que haviam protestado contra a entidade, recebi uma mensagem de whatsapp anônima: “Como assim você divulga o áudio da gravação de uma reunião que não poderia ser gravada?". 

Conforme apurei, a advogada da Fundação Renova, Viviane Aguiar, solicitou antes da reunião que ela não fosse gravada em áudio ou vídeo. Não é pra menos, já que no encontro online – que ocorreu no dia 21 de janeiro – ela ameaçou e intimidou os membros da comissão de atingidos do município de Naque (MG), que haviam organizado uma manifestação. 

Em 17 de janeiro, quatro dias antes da reunião, cerca de 50 pessoas atingidas haviam interditado os trilhos da linha de trem da Vale para protestar contra problemas no Sistema Indenizatório Simplificado (Novel), implementado pela Fundação Renova. A entidade é mantida pela Samarco e suas acionistas, Vale e BHP Billiton, para executar ações de reparação aos danos causados pelo rompimento da barragem de Mariana, em 2015.

A advogada, que coordena o setor jurídico da Renova, repetiu algumas vezes durante a reunião que estava transmitindo o recado do juiz Mário de Paula, responsável por julgar os processos envolvendo o desastre, e que, se as manifestações continuassem, ele iria suspender de vez o pagamento das indenizações. O magistrado é o responsável por homologar os pedidos de indenização. “Não sou eu que estou falando, é o juiz dono do processo", afirmou Viviane. 
 
A reportagem tentou falar diversas vezes com o juiz Mário de Paula, que não se manifestou. Nem mesmo depois da publicação da reportagem ele deu alguma justificativa às vítimas humilhadas durante a reunião do dia 21 pela advogada que usou o seu nome. “Estamos tentando marcar uma agenda com ele para entender melhor o que aconteceu”, me contou um membro da comissão de Naque.  

“A doutora Viviane usou o tempo todo o nome do juiz para pressionar a gente. Ela não deixou a gente falar, não deixou a gente explicar. O tempo todo ela apontou o dedo na nossa cara: ‘vocês são culpados, a culpa é de vocês’. Isso jamais poderia acontecer, uma advogada falar pelo juiz”, resumiu uma das pessoas presentes na reunião, antes mesmo que eu ouvisse a gravação.    

Os atingidos não reconhecem a Fundação Renova como o órgão que deveria resolver as consequências do desastre, já que eles a enxergam como um braço das mineradoras responsáveis pela tragédia que matou 19 pessoas, arrasou comunidades, provocou um estrago imenso na bacia do rio Doce e em seu entorno e levou a lama de rejeitos de minério até o oceano Atlântico. 

Em 2018, a Pública mostrou as relações entre a Fundação Renova, que se define como “autônoma e independente”, e as empresas rés. 

“O que existe basicamente é que os atingidos estão desamparados. Então a gente tem uma situação onde o criminoso controla o processo de reparação. Ele diz quem é a vítima e quantas vítimas têm que receber. Diante dessa situação, criou-se na bacia um desespero ao longo dos cinco anos”, ressaltou o procurador André Sperling, durante coletiva de imprensa no dia 29 de outubro do ano passado, sobre os cinco anos da tragédia de Mariana.  

Na semana passada, chegou como um alento aos atingidos a notícia de que o Ministério Público mineiro (MPMG) pediu à justiça a extinção da fundação. Os promotores alegaram desvio de finalidade e ineficiência, depois de rejeitar quatro vezes consecutivas as contas da entidade. Nos autos, eles apontam que a fundação gastou R$17,4 milhões em publicidade “para veicular matérias de conteúdo propagandístico nas emissoras de rádio e televisão”. 

“(...) a publicidade feita pela Renova não seria dirigida aos atingidos pela tragédia, mas sim aos investidores de suas mantenedoras e ao público em geral, com o claro propósito de promover a imagem das empresas causadoras do dano, e não de gerar informação (...)”, destacou o MPMG. 

Aproveito o gancho, portanto, para responder à pessoa que me enviou a mensagem questionando o motivo de eu ter divulgado uma gravação não autorizada. É nosso papel investigar e denunciar as mentiras propagadas por poderosos, assim como os abusos cometidos por eles. Se não fosse o jornalismo, quem amplificaria a voz dos atingidos que têm que brigar com uma narrativa comprada por milhões?

Termino essa reflexão com uma das muitas mensagens que recebi e que me motivam a seguir investigando a Fundação Renova e as mineradoras que causaram a maior tragédia ambiental do país: “Obrigada por denunciar o que está acontecendo aqui. Isso é só uma ponta, tem muito mais a ser investigado”, me escreveu uma pescadora de Linhares, membro da comissão de atingidos do município capixaba.
Alice Maciel é repórter da Pública. 

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