domingo, 11 de abril de 2021

A privatização da vacina está na mesa

 

A privatização da vacina está na mesa

 

Não há Brasil mais atrasado do que aquele reunido em torno da mesa de Washington Cinel, o ex-oficial da Polícia Militar que fundou uma empresa de segurança, a Gocil, e se tornou muito rico - hoje ele é dono de fábricas de alimentos a fazendas de gado de raça, além da casa, na região mais valorizada de São Paulo, onde recebeu o presidente Jair Bolsonaro para um jantar, na quarta-feira passada. 

Afeito ao lobby que desempenha profissionalmente na condição de presidente da Lide Segurança, Cinel não teve problemas em repetir o que fez nas campanhas do governador Doria, de quem era muito próximo, e reunir empresários, supostamente para responder à pressão sobre o presidente Bolsonaro, criticado pela condução da crise sanitária em uma carta assinada por economistas e CEOs de grandes grupos - Itaú, Klabin, Gerdau, Natura, Ambev, Gávea, Marfrig e Amaggi - no final de março. 

Como observou a colunista Maria Cristina Fernandes, do Valor, o estratagema funcionou (com uma ajudinha da imprensa), deixando indignados empresários que não participam do núcleo duro do bolsonarismo. Alguns nomes fortes do empresariado chegaram a declinar o convite, como Abílio Diniz, Frederico Trajano e Johnny Saad, da TV Bandeirantes. Nem mesmo a tentativa de Bolsonaro de fortalecer Paulo Guedes atraiu a elite financeira, segundo a colunista do Valor, desenganada com o poder real do ministro da Economia. 

Mas, se foram poucos os nomes reluzentes que compareceram, representados pelos banqueiros do Safra e do BTG, o CEO do Bradesco, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e figuras do agronegócio como Rubens Ometto, da Cosan, sobraram endinheirados que aplaudiram com sinceridade mais um discurso obscurantista do presidente. Seus nomes podem não ser conhecidos nacionalmente, mas as fortunas são de peso. 

É o caso do médico Cândido Pinheiro Koren de Lima, que figura na recém-publicada lista da Forbes com uma fortuna de 1,8 bilhão de dólares, empatado no ranking com o filho, Jorge Pinheiro. O dinheiro da família vem da Hapvida, a empresa de saúde privada fundada por Cândido que é a maior do Nordeste, e só trouxe alegrias no último ano. A receita líquida cresceu 62,7% chegando a R$2,1 bilhões durante a pandemia de coronavírus. Tudo isso com absoluta lealdade ao presidente Bolsonaro. No ano passado, a Hapvida foi acusada de demitir um médico e ameaçar outros profissionais por não prescrever hidroxicloroquina aos pacientes de Covid-19. O protocolo que estipula o uso da droga continuou vigente pelo menos até o final do ano passado na rede de 33 hospitais e 90 clínicas da empresa, como apurou o site Marco Zero. 

Outro comensal que aplaudiu Bolsonaro foi Carlos Sanchez, dono da farmacêutica EMS, grande fabricante de medicamentos genéricos que obteve 5,6 bilhões de receita líquida em 2019 e cresceu 21% em 2020, mais do que o dobro da média do setor. Sanchez também produz hidroxicloroquina e forneceu medicamentos para um dos primeiros estudos sobre a eficácia (que não se comprovou) do medicamento, liderado pelo Hospital Albert Einstein. 

O presidente do Conselho do Hospital Albert Einstein, Claudio Lottenberg, que também foi CEO da Amil, uma das maiores operadoras de saúde privada no país, aliás, era outro que estava no jantar. Em um post publicado no mesmo dia no Linkedin, defendeu a vacinação privada. “Acredito que mais pessoas terão acesso à vacina contra a Covid se o setor privado entrar como aliado nesse processo”, disse.

Também na lista de bilionários da Forbes, Isaac Peres, dono da Multiplan, proprietária de shoppings de luxo como o Barra Shopping, no Rio, e o Shopping Morumbi, em São Paulo, era um dos mais entusiasmados. No ano passado, Peres chegou a chamar governadores de “tiranos” por decretarem o isolamento social que prejudicava seus negócios. Nada diferente do que repetiu mais uma vez Bolsonaro no jantar. Agora, Peres defende a vacinação privada e chegou a  oferecer os shoppings centers como locais de vacinação. 

Fecham a lista dos bilionários da Forbes presentes ao evento, o empresário Rubens Menin - que além de dono de uma construtora e de um banco é sócio majoritário da CNN (os donos de outras empresas de comunicação também estavam presentes como Jovem Pan, SBT e Alpha Comunicação); e Flávio Rocha, da Riachuelo, empresa que acumula ilegalidades trabalhistas incluindo o uso de mão-de-obra em condições análogas à escravidão.

Não será surpresa se a privatização da vacina e as fake news sobre isolamento social, propagadas pelos presentes, vierem a agravar a tragédia do país em que os mortos se contam a centenas de milhares e a vacinação patina, enquanto mais da metade da população simplesmente não tem a garantia de ter comida na mesa todos os dias. Também não interessa o número de brasileiros doentes e mortos em decorrência da prescrição de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. Esses são os descartáveis para Bolsonaro e sua trupe. O que importa é que o número dos bilionários brasileiros na Forbes subiu de 45 para 65, multiplicando lucros e cabos eleitorais com muita bala na agulha. O espírito “público” desses empresários coincide perfeitamente com o do presidente.

Marina Amaral, co-diretora da Agência Pública 

 

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Pauta Pública.
 Desde o primeiro dia, o governo Bolsonaro se tornou uma espécie de fábrica de crises e escândalos. Em meio a ataques de membros do governo e apoiadores, a vida dos jornalistas que cobrem o poder nunca foi tão agitada. O entrevistado deste episódio do Pauta Pública é o jornalista Guilherme Amado, que traz importantes reflexões além de algumas histórias curiosas dos bastidores do seu trabalho ao cobrir o centro do poder em Brasília. Ouça aqui. 

O que você perdeu na semana

Lei fura fila. A Câmara aprovou nesta terça-feira o Projeto de Lei 948, que flexibiliza a compra de vacinas pelo setor privado, permitindo que empresas adquiram imunizantes para seus funcionários e familiares e possam vaciná-los fora do âmbito do Programa Nacional de Imunizações. O texto-base também dá o aval para que o setor privado adquira vacinas que não tenham sido aprovadas pela Anvisa, o que não é permitido ao Estado.

Risco de desabastecimento. Segundo dados do Conasems, conselho de secretários municipais de Saúde, obtidos pela Folha, 1.068 municípios relataram preocupação com o estoque de cilindros de oxigênio e até mesmo risco de desabastecimento, caso os números da Covid-19 continuem aumentando. Esse número pode ser ainda maior, já que apenas menos da metade dos municípios brasileiros enviaram dados. 

Retrocesso de 17 anos. A fome afetou 19 milhões de brasileiros na pandemia em 2020, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. O levantamento também aponta que 55,2% dos domicílios passaram por algum grau de insegurança alimentar nos últimos meses do ano. A pesquisa mostra o aumento da fome no Brasil aos níveis observados em 2004, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

Últimas do site
 
80 tiros. Dois anos se passaram desde que Evaldo Rosa foi fuzilado pelo Exército, que disparou 80 tiros contra o carro em que estava com sua família, no Rio de Janeiro. O julgamento do processo, que deveria ocorrer nesta semana, foi adiado pelo agravamento da pandemia e não tem previsão de uma nova data. “Será que eu vou ter Justiça se as coisas estão caindo no esquecimento?”, pergunta Luciana Nogueira, viúva do músico, em entrevista à Pública.

Conflito por terra. A pandemia não impediu novas violências em Anapu (PA), uma das regiões com mais conflitos fundiários no país e onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada em 2005. Enquanto aguardam decisão da justiça paraense, agricultores que tentam fazer assentamentos sustentáveis em áreas públicas destinadas à reforma agrária enfrentam a fúria de grileiros. Três casas foram queimadas nos últimos meses e ninguém foi investigado.

Bolsonaro blefa e se enrola. Segundo oficiais ouvidos pela Pública, após a demissão dos três comandantes das Forças Armadas, Bolsonaro perdeu apoio entre os militares, se viu forçado a negociar cada vez mais com o Centrão e se colocou ao alcance de um provável processo de impeachment. “Se a crise nacional já havia levado o país para a beira do abismo, Bolsonaro deu um passo à frente”, avalia o brigadeiro Sergio Xavier Ferolla, ministro aposentado do Superior Tribunal Militar.

Pare para ouvir

A moça da lata. Beijinho, pudim de leite, papo de anjo: como a Nestlé reescreveu tradicionais receitas de doces brasileiros. O podcast Prato Cheio, do site O Joio e o Trigo, entrevistou a pessoa responsável por essa operação e conta as estratégias da corporação suíça para conquistar os corações (e estômagos) no Brasil.
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