sexta-feira, 16 de abril de 2021

A Pública

 


ven. 16 avr. à 07:27
De heróis e de bruxas


Essa semana a opinião pública ficou tão estarrecida como nossa redação tem estado ao longo dos 5 meses que passamos investigando os fortes indícios de um esquema criminoso de exploração sexual de meninas montado por Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia. De acordo com dezenas de relatos, fotos, documentos e processos judiciais reunidos por uma equipe de 7 repórteres, Samuel mantinha duas assistentes particulares que aliciavam meninas entre 9 e 17 anos para que o “rei do varejo” abusasse delas em suas propriedades, e até mesmo na sede das Casas Bahia em São Caetano do Sul (SP), onde ele mantinha uma salinha para esse fim do lado do seu escritório. Em troca, as meninas exploradas recebiam eletrodomésticos, tênis e outras bugigangas vendidas pelas Casas Bahia. “Parece que ele vivia para isso. Ele recebia meninas várias vezes por semana, o mês inteiro”, diz um ex-segurança.

Um esquema desse vulto, que durou pelo menos duas décadas, só foi possível porque foi acobertado por centenas de pessoas, entre funcionários, juízes, advogados que compravam o silêncio das jovens e familiares das vítimas. Depois da publicação, recebemos muitas mensagens de gente dizendo que sabia do esquema ou conhecia meninas que participavam dele. O silêncio da sociedade foi cúmplice deste abuso serial, industrial, ao tratar o caso como uma estrepolia, “coisa do Samuel”, um empresário tão bem-sucedido, um verdadeiro herói a quem se deve perdoar certas excentricidades. 

Mas esse pacto de silêncio tem consequências que vão muito além das vítimas do Samuel, algumas traumatizadas até hoje, como constataram nossos repórteres; vão além, ainda, do fato de que claramente Saul, filho de Samuel, prolongou a perversão do pai ao manter seu próprio harém e festas com dezenas de mulheres – essas aparentemente maiores de idade e pagas. A coisa é tão grotesca que ao mimetizar o comportamento do pai, segundo relatos, Saul se vestia de rei e pedia pra ser chamado de "Zinho", como se fosse mesmo o reizinho, filho do grande monarca da sacanagem. Hoje, ele é processado por dezenas delas, que afirmam terem sofrido abuso psicológico. 

O silêncio cúmplice afeta a todas nós, mulheres, porque reafirma que eles valem mais do que nós.

Mas a tolerância com homens poderosos que cometem esse tipo de crime não reforça apenas o machismo geral, estrutural, da sociedade. O reverso da mesma lógica permite que haja até hoje certos círculos nos quais a misoginia impera e é claramente permitida. Como na política.

Assim, é revelador que na mesma semana em que o Brasil descobre que um de seus empresários mais celebrados era suspeito de crimes sexuais contra crianças e todo mundo deixava pra lá, o TCU tenha inocentado Dilma Rousseff, a primeira mulher a ser eleita (e reeleita) presidente da República, pelo caso da refinaria de Passadena, alardeado infinitas vezes como “prova” de que ela teria algo a ver com esquemas de corrupção – o que referendou a verdadeira caça às bruxas que foi seu processo de impeachment.

Amplamente apoiado, aliás, como a Pública demonstrou, pelas federações de empresários, onde se reúnem os maiores heróis do capitalismo brasileiro. Que queimaram Dilma mas jamais abandonariam Samuel. 

Ainda nesta semana, a cineasta Anna Muylaert, ao lançar o documentário “Alvorada”, que fez junto com Lô Politi, resumiu ao Universa de maneira certeira que o impeachment de Dilma teve “um alto teor sexista, machista, misógino”.

São os dois lados da mesmíssima moeda.

 
Natalia Viana, co-diretora da Agência Pública 

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Pauta Pública. No 14º episódio do podcast Pauta Pública, os editores Andrea Dip e Thiago Domenici conversam com o jornalista Guilherme Amado. O colunista da Época conta como é cobrir o poder em meio a ataques de membros do governo, de apoiadores e do próprio presidente. Se ainda não ouviu, ouça agora o episódio 14 do podcast Pauta Pública.

O que você perdeu na semana


Ataque machista a jornalistas. Após insultar a jornalista Patrícia Campos Mello, o ex-funcionário da empresa de disparo em massa Yacows, Hans River do Rio Nascimento, foi condenado pela Justiça a indenizá-la em R$50 mil por danos morais. Hans River mentiu ao prestar depoimento à CPMI das Fake News e acusou a repórter de ter se insinuado sexualmente em troca de informações.

Teste clandestino com hidroxicloroquina. Uma mulher de 33 anos morreu em Manaus após ser submetida a um teste clandestino com nebulização de hidroxicloroquina, a Folha revelou. A médica responsável pelo procedimento registrou-o em um vídeo, que viralizou e foi compartilhado pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni (DEM). 

Ianomâmi denunciam desvio de vacinas. A associação ianomâmi Hukutara, em Roraima, denunciou ao Ministério da Saúde e ao MPF um suposto desvio de vacinas contra a covid-19, em troca de ouro, para garimpeiros que operam ilegalmente dentro da terra indígena. Na carta dirigida ao secretário especial de Saúde Indígena, a Hutukara disse que "é inadmissível que, em meio à insistente piora nos índices de saúde das comunidades indígenas da Terra Indígena Ianomâmi em plena pandemia da covid-19, o órgão responsável pelo atendimento da saúde indígena tenha seus recursos desviados para atendimento de não indígenas que trabalham no garimpo ilegal".

Últimas do site
 
As acusações de crimes sexuais contra Samuel Klein. Considerado um empresário bem sucedido, o fundador das Casas Bahia é acusado de manter um esquema de exploração sexual de meninas de 9 a 17 anos entre o início de 1989 e 2010. Os depoimentos sugerem que Samuel aproveitava a situação vulnerável de famílias empobrecidas e se colocava como “benfeitor”, criando uma lógica que, ao misturar abusos e recompensas financeiras, prendia as vítimas ao esquema criminoso.

Denuncie. Você ou alguém que conhece viveu uma situação de violência, abuso ou exploração sexual envolvendo Samuel, outro membro da família Klein, ou um grande empresário? Nós queremos te ouvir. Clique aqui e conte sua história. 

As fazendas de Gilmar Mendes. Processado pelo Ministério Público devido a um suposto uso irregular de agrotóxicos em suas fazendas, localizadas dentro de uma Área de Preservação Ambiental no Mato Grosso, o ministro Gilmar Mendes teria utilizado suas relações para questionar a fiscalização ambiental de suas terras.
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Influenciadores digitais de armas. Perfis que se identificam com a agenda armamentista vêm ganhando espaço no Instagram com a facilitação do acesso a armas de fogo promovida pelo governo Bolsonaro. Nesta reportagem, o Núcleo analisou mais de 26 mil posts públicos no Instagram que incluem hashtags relacionadas à divulgação de armas de fogo e práticas de tiro. Os dados mostram um aumento no número de publicações, especialmente a partir da posse de Bolsonaro, no começo de 2019.
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