CPI DA COVID-19:
SEJA MINISTRO DO STF POR UM DIA
Aldemario Araujo Castro
Professor
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 16 de abril de 2021
No dia 8 de abril de 2021, em decisão monocrática no âmbito do Mandado de Segurança n. 37.760, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou: a) que o Senado adote as providências pertinentes para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) voltada para apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 e b) a liberação da questão para imediato julgamento colegiado no plenário do STF.
Vamos assumir a condição de ministro do STF por um dia. Mais especificamente, vamos vestir a toga do relator responsável pela primeira apreciação do processo em questão.
Tudo começou com o requerimento de instalação de uma CPI, como mencionado, subscrito por mais de trinta senadores da República. O pleito foi encaminhado ao presidente do Senado Federal. Esse, por sua vez, como revelou em várias entrevistas para a imprensa, entendeu inoportuna a instalação do comitê de investigação.
Dois senadores da República, diante da inércia do presidente do Senado Federal, ingressaram com mandado de segurança no STF buscando uma determinação judicial pela instalação da CPI.
Admita que você, caro(a) leitor(a), fosse o(a) ministro(a) do STF sorteado(a) para a apreciar a provocação realizada pelos dois senadores. Em suma, você precisaria decidir: a) pela determinação da abertura da CPI ou b) por negar a pretensão dos dois senadores (por razões processuais ou de mérito).
Superadas as questões processuais, você adentra na análise do mérito da questão. Primeiro, você consulta a Constituição e se depara com o seguinte dispositivo (art. 58, parágrafo terceiro):
“As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”.
Conclui, portanto, que são três os requisitos para a instalação da CPI: a) requerimento de um terço dos senadores; b) para a apuração de fato determinado e c) por prazo certo. Verifica, ainda, que as três exigências estão atendidas no caso em exame. O tal juízo de oportunidade (política) exercido pelo presidente do Senado não figura no texto constitucional.
Considerando as amplas repercussões políticas da decisão, você resolve analisar se o tribunal possui precedentes (julgados anteriores) acerca de determinação de abertura de CPIs. O resultado dessa pesquisa aponta para julgamentos pretéritos onde a Corte caminhou exatamente nesse sentido (MS 24.831 e 24.849, Relator Ministro Celso de Mello; ADI 3.619, Relator Ministro Eros Grau e MS 26.441, Relator Ministro Celso de Mello).
Assim, a decisão pela abertura da CPI revela-se uma imposição da ordem jurídica. Você teria algum receio de agradar ou desagradar autoridades ou segmentos políticos com a decisão a ser proferida? Vale lembrar que a independência de atuação funcional e as garantias da magistratura existem justamente para afastar esses receios de quem é pago pelo contribuinte para decidir.
Segue-se a ampla repercussão da decisão na imprensa e nos meios políticos e jurídicos. Entre outras, são ouvidas as seguintes “considerações”:
a) “[a decisão representa uma] … interferência do STF em outros poderes”;
b) “Tem processo de impeachment contra ministros do STF, não tem? Quero ver se o Barroso vai ter coragem moral de mandar instalar esse processo de impeachment também. Pelo que me parece, falta coragem moral para o Barroso e sobra ativismo judicial”;
c) "A CPI … [é] uma jogadinha casada [entre] Barroso [e] bancada de esquerda no Senado para desgastar o governo";
d) “Interferência? Lamentavelmente existe ainda por parte do Supremo - no meu governo teve muito. Agora teve uma [interferência] no Senado. [O STF] Não tem que estar se metendo em tudo. Já deram poderes aos governadores para fazerem a política de lockdown, confinamento”.
Valem algumas palavras acerca dessas afirmações.
Seria uma interferência do STF (do Judiciário) em outros Poderes da República (harmônicos e independentes, segundo o art. 2o da Constituição)? A resposta pode ser dada a partir de outra pergunta. Diante de uma violação à lei ou à Constituição realizada no âmbito do Executivo ou do Legislativo recorre-se a quem para restabelecer a ordem jurídica? Ao bispo? Ao Papa? À Organização das Nações Unidas (ONU)? Aos extraterrestres? Ora, é função constitucional e inafastável do Poder Judiciário a apreciação de lesões ou ameaças a direitos (art. 5o, inciso XXXV, da Constituição). Trata-se de lição básica nos bancos das faculdades de Direito e amplamente conhecida até mesmo entre os leigos em matéria jurídica.
Um magistrado pode decidir sobre qualquer assunto ou matéria, segundo seu interesse ou vontade (sobre impeachment de ministros do STF, por exemplo)? Evidente que não. Ele precisa necessariamente, salvo raras exceções, ser provocado por intermédio de um processo adequado. O art. 2o do Código de Processo Civil possui a seguinte e educativa redação: “O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei”. Ademais, a decisão do magistrado deve ser proferida no exercício de sua competência constitucional ou legal.
Ocorreu ativismo judicial? O debate acerca desse tema envolve considerável complexidade, notadamente numa quadra histórica em que os princípios constitucionais possuem força normativa. Admite-se que o ativismo (devido ou indevido) compreende alguma forma do exercício da judicatura adentrando esferas tradicionalmente reservadas ao legislador. Este caso passa longe, muito longe, de qualquer ativismo. Trata-se de mera determinação de aplicação de regra expressa no texto constitucional quando claramente não observada.
Falta “coragem moral” ao ministro Barroso? A própria decisão adotada é uma demonstração de desassombro. É certo, como dois mais dois são quatro, que a determinação atrairia toda sorte de reações virulentas, desprezíveis e até violentas. Podemos discordar de várias decisões e convicções do ministro Barroso, e é perfeitamente legítimo criticá-las de forma civilizada, mas não cabe o ataque vil a alguém profundamente respeitado nos meios acadêmicos e profissionais.
Deve ser sublinhado que o xingamento pessoal (violência no plano simbólico) como base da ação política, ou mesmo do convívio social de forma mais ampla, revela a presença de um espírito baixo, involuído e que sequer ingressou no campo minimamente civilizado das relações humanas.
Trata-se de uma jogadinha casada entre o magistrado e setores de esquerda? A resposta para essa indagação exige respostas para outros questionamentos. O relator não foi sorteado? O senador Jorge Kajuru integra a bancada de esquerda? Existe alguma prova (ou, pelo menos, indício) de conluio entre o relator e setores políticos com atuação no Senado?
Os governadores (e prefeitos) receberam poderes do STF para praticar políticas de confinamento diante da pandemia da covid-19? Cumpre observar que o STF apenas reconheceu ou declarou, o que decorre da Constituição e foi inúmeras vezes proclamado em verso e prosa pelo Judiciário e pelos juristas antes mesmo da pandemia da covid-19, que vivemos sob a égide de um federalismo cooperativo. Portanto, Estados, Municípios e o Distrito Federal continuam sendo titulares de deveres/competências de atuar regional ou localmente em relação a várias matérias, notadamente a proteção e defesa da saúde (art. 23, inciso II; art. 24, inciso XII e art. 198 da Constituição). O que faltou e falta, com profundas repercussões negativas, inclusive em vidas humanas, é a imprescindível coordenação nacional das ações, de responsabilidade da União.
Veja que, mesmo por um dia, sua vida como ministro(a) do STF é tudo, menos fácil e tranquila. Decidir, notadamente questões de ampla repercussão política e social, é uma das atividades mais penosas e delicadas do convívio humano em sociedade, notadamente uma especialmente plural e complexa como a brasileira.
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