segunda-feira, 19 de abril de 2021

A Pública

 



As notícias de episódios de violência contra indígenas e seus territórios infelizmente se tornaram comuns, principalmente no governo Bolsonaro. Aqui na Pública acompanhamos esse tema de perto, e relatamos mais um caso de agressão contra os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, ocorrido há duas semanas, em plena pandemia. 

Hoje, a repórter Anna Beatriz Anjos explica o que a proteção dos territórios indígenas tem a ver com as mudanças climáticas, e por que a proteção dos direitos dessas populações é benéfica para a toda a sociedade.   

O que você pensa sobre a situação dos direitos indígenas? E sobre as mudanças climáticas? Responda este email com seu comentário e participe das Cartas dos Aliados.


Um abraço,

Giulia Afiune
Editora de Audiências
Por que a demarcação de territórios indígenas é importante pra sua vida
por Anna Beatriz Anjos
 
Lembro da primeira vez em que visitei uma retomada Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. A ocupação Tekoha Ñu Verá, situada nas bordas da Reserva Indígena de Dourados, era uma tentativa dos indígenas de recuperar parte da área que reivindicam como seu território tradicional, da onde foram expulsos há décadas para dar lugar aos colonos que chegavam para povoar o estado. 

Quando estive no acampamento, em setembro de 2019, 
fazia poucos dias que os funcionários da fazenda tinham destruído os barracos de lona que as famílias haviam erguido para se abrigar e, com eles, boa parte de seus pertences. Ainda assim, os indígenas não pensavam em ir embora. "A terra aqui é nossa e nós não vamos sair", me disse um rapaz de pouca idade. 

Me recordo de ter ficado impressionada com aquela convicção que não era só dele, mas de cada um ali. Apenas com a roupa do corpo, sem comida ou teto, enfrentando constantes ameaças que quase sempre se concretizavam, diante de um adversário muito mais poderoso, e sem grandes perspectivas de vitória, eles estavam dispostos a ir até o fim pelo seu tekoha, o "lugar onde se é”, na língua tradicional Guarani. Naquele mesmo dia, debaixo de um sol escaldante, já estavam iniciando a reconstrução do acampamento. 

O ataque a Ñu Verá não foi o primeiro e nem o último capítulo do extenso histórico de violência contra as retomadas Guarani e Kaiowá espalhadas pelo Mato Grosso do Sul. No último 16 de março, dois moradores do Tekoha Guaiviry, em Aral Moreira, na fronteira com o Paraguai, foram agredidos com socos, pontapés e coronhadas por homens que, segundo organizações indígenas, trabalham na Fazenda Querência, vizinha à ocupação. Uma das vítimas desmaiou e, com lesões em várias partes do corpo, ambas precisaram ser atendidas no hospital da cidade. O Ministério Público Federal acompanha o caso, mas não divulga as linhas de investigação adotadas até o momento.

Como mostra a nossa reportagem sobre o assunto, o episódio, para variar, não é fato isolado: o dono da propriedade, Idelfino Maganha, foi denunciado pelo Ministério Público Federal junto a outras 19 pessoas pelo assassinato, em novembro de 2011, do cacique Nísio Gomes, então líder do Tekoha Guaiviry, cujo corpo até hoje não foi encontrado. O fazendeiro chegou inclusive a ser preso pelo crime, mas está em liberdade. Além da propriedade vizinha a Guaiviry, Maganha e a esposa são donos de uma das três fazendas que os Guarani e Kaiowá ocupam atualmente.

Eu e a repórter Rute Pina apuramos que a Funai iniciou a demarcação de Guaiviry em 2008, quando instituiu um grupo de trabalho para estudar a área de ocupação tradicional dos indígenas. O antropólogo Vinícius José Santos, integrante do grupo, nos contou que o relatório de identificação do território foi entregue ao órgão há quase uma década, em 2012, mas até hoje o processo não foi concluído. Questionada, a Funai até agora não explicou as razões da demora. A única certeza é de que, nesse meio tempo, o conflito entre os indígenas e os fazendeiros que os cercam vem se acirrando e produzindo episódios sangrentos como o do mês passado.

Nas gavetas da Funai jazem mais de 230 processos como o de Guaiviry. Sobretudo na última década, o Estado brasileiro vem sistematicamente desrespeitando a Constituição e falhando em reconhecer formalmente as terras indígenas. Sob Bolsonaro, nem se fale: em mais de dois anos, seu governo não apenas cumpriu a promessa eleitoral de não concluir nenhuma demarcação, como travou 70% dos procedimentos abertos

Sabemos bem que nesse aspecto – e em tantos outros –, o presidente escolhe a mão contrária ao que a lei manda e a ciência recomenda. No fim de março, a ONU engrossou o coro dos que acusam o negacionismo. Baseado em mais de 300 artigos acadêmicos, um relatório do órgão concluiu que os povos indígenas são os mais eficientes guardiões das florestas da América do Sul e Caribe, quando têm seus territórios oficialmente reconhecidos e protegidos. Entre as várias constatações do estudo, está a de que, entre 2000 e 2012, o desmatamento em florestas situadas dentro de terras indígenas demarcadas no Brasil foi 2,5 vezes menor do que fora dessas áreas.

"A violação de direitos indígenas já garantidos pela própria Constituição e pelo marco jurídico internacional afeta tudo o que se refere às mudanças climáticas", me disse em entrevista a médica indígena Myrna Cunningham, presidente do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac), que ajudou a elaborar o relatório. Ela explicou que demarcar os territórios indígenas é investir em uma forma eficiente de proteger as florestas e mitigar as mudanças climáticas, o que é benéfico para toda a sociedade. Embora preocupada com o negacionismo do nosso governo, Cunningham acredita que o estudo favorece a pressão de outros países sobre o Brasil na área ambiental e que há um contexto global favorável "para se discutir a situação dos povos indígenas em todo o mundo."

Que as palavras de Cunningham se provem certas. Caso contrário, o sangue indígena continuará a escorrer por aqui e a humanidade vai "torrar" em um planeta superaquecido e devastado, como já bem definiu Ailton Krenak.
Anna Beatriz Anjos é repórter da Pública. 

Rolou na Pública
 

Reportagem da Pública bombou. Na semana passada, revelamos que o governo Bolsonaro contratou influenciadores para propagandear o "atendimento precoce" em suas redes. A reportagem foi republicada por 72 sites, como IGYahoo! e MSN. Ela também foi repercutida por dezenas de outros veículos, como TV CulturaO GloboExtraDiário de Pernambuco e O Povo.

E teve efeitos na justiça. Após a publicação, a bancada do Psol na Câmara protocolou uma denúncia contra o Ministério da Saúde no Ministério Público Federal por "abuso do poder e desvio de finalidade manifestado pela atuação do governo federal”. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas também pediu para o governo federal esclarecer a fonte dos recursos usados para pagar a campanha com influenciadores. Nesta segunda, a Justiça Federal em São Paulo deu prazo de 72 horas para que a Advocacia Geral da União responda a uma ação civil pública que pede a devolução dos recursos usados nas ações de marketing reveladas pela nossa reportagem.

Impacto na vacinação. Por conta da publicação da reportagem "Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras", nossos repórteres foram convidados para participar de uma reunião do Conselho Nacional de Saúde sobre o Plano Nacional de Vacinação. Os dados da reportagem foram apresentados ao Conselho, que no dia 30 de março publicou uma recomendação cobrando a adoção de ações antirracistas no acesso à saúde. O documento é destinado ao Ministério da Saúde, secretarias e conselhos de saúde dos estados e municípios.

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