segunda-feira, 19 de abril de 2021

Não existe mais limite entre as histórias que contamos e as que vivemos

 

Boa tarde, Glauco, tudo bem?

Profissionais de saúde descreveram cenas aterrorizantes à reportagem da Pública na semana passada. Em hospitais de todo o país, faltam remédios para intubação, UTIs estão lotadas e os profissionais de saúde muitas vezes se veem obrigados a fazer escolhas difíceis para salvar o maior número de pessoas possível.   

Na newsletter de hoje, o repórter e editor Bruno Fonseca faz uma reflexão sincera sobre como a pandemia implodiu os limites entre nosso trabalho como jornalistas e nossas vidas pessoais. "Ao mesmo tempo que buscamos histórias da pandemia, vivemos nossas próprias: telefonemas aflitos – mas cheios de carinho – ao fim do dia, abraços virtuais, encontros raros, despedidas difíceis", escreve. 

Que limites a pandemia implodiu na sua vida? E como você está lidando com isso? Responda esse email com seu comentário para as Cartas dos Aliados.


Um abraço,

Giulia Afiune
Editora de Audiências
Não existe mais limite entre as histórias que contamos e as que vivemos 
por Bruno Fonseca

A notícia chegou no penúltimo final de semana deste longo e difícil mês de março. Apesar de ser um sábado à noite, mensagens de conhecidos soaram o alerta: medicamentos para intubação de pacientes estavam no limite em alguns hospitais de Belo Horizonte. Médicos e médicas com quem tenho contato discutiam, com evidente desespero, o que era possível fazer. Economizar? Transferir pacientes? Substituir medicações de referência por outras? Quanto tempo ainda teriam disponível? Quanto oxigênio? Quantos leitos? Quanta força?

À medida em que lia essas mensagens, apertava a angústia de imaginar a possibilidade de alguma pessoa amada estar entre os pacientes que enfrentam esse cenário de caos. É lá, em Belo Horizonte — aquela cidade que tanto gosto, mas não visito há um ano — que está boa parte da minha família. A pandemia, afinal, implodiu o que ainda poderia haver de limites entre jornalista e cidadão, entre quem narra histórias e quem as vive e sofre com elas.

Faz um ano que me entristeço e me angustio escrevendo e lendo reportagens sobre esse cenário devastador que nunca imaginei viver. Nós, jornalistas da Pública, ao mesmo tempo que buscamos histórias da pandemia, vivemos nossas próprias: telefonemas aflitos – mas cheios de carinho – ao fim do dia, abraços virtuais, encontros raros, despedidas difíceis. Alguns de nós perdemos pessoas nesse trajeto, outros, acompanharam recuperações promissoras cheias de esperança. Em comum, nós — imagino que você também — temos vivido um dia de cada vez, tentando firmar o pé a cada passo, para atravessar essa época tão dura.

Ouvir o relato de uma médica de BH que viu uma paciente de menos de 30 anos falecer ao seu lado, enquanto outro paciente pedia “pelo amor de Deus, que não o deixasse morrer”, foi mais um desses momentos que embaralha o jornalista e o cidadão. Imagino não ter sido muito diferente para as minhas colegas Mariama Correia e Bianca Muniz, que escreveram a reportagem comigo. Mariama ouviu de uma enfermeira em Recife que “um dia tem remédio, no outro acaba”. E Bianca apurou denúncias que medicamentos já teriam faltado para intubar pacientes em São Paulo.

Trazer essa realidade dura para você não é fácil. Imagino que para você ler, também não. Mas apesar do sofrimento, há retornos que nos fazem acreditar que contar histórias, ainda que tristes, tem sentido. Essa mesma médica com a qual conversei para a reportagem, após a publicação, agradeceu pelo texto e disse esperar que ele toque e conscientize ao menos uma pessoa para que se cuide e evite aumentar as filas já lotadas das UTIs. E falou sobre como é importante esse tipo de denúncia para pressionar autoridades a se mexerem para comprar medicamentos e fazerem seu dever.

É pra isso, afinal, que seguimos repórteres-cidadãos em meio a esse caos. O jornalismo tem se mostrado uma ferramenta muito importante para pressionar pelo compromisso dos governantes, pela consciência dos cidadãos, para estabelecer uma realidade comum que nos impulsione a tomar alguma ação que nos ajude a sair desses tempos sombrios. E também para registrar e compartilhar histórias, ainda que muito tristes, dessa experiência humana avassaladora, e também corajosa, de viver e seguir vivendo numa pandemia.

Cuide-se, cuide de quem é importante para você. Desejo muita saúde.
Bruno Fonseca é editor e repórter multimídia da Pública. 

Rolou na Pública
 

Suspeição do juiz da tragédia em Mariana. O Ministério Público Federal entrou ontem com pedido de suspeição do juiz da 12ª Vara da Justiça Federal em Belo Horizonte, Mário de Paula Franco Júnior, responsável por julgar os processos envolvendo a tragédia de Mariana. A reportagem da Pública que revelou ameaças e intimidação da advogada da Fundação Renova durante reunião com os atingidos, publicada em fevereiro, é citada na argumentação. Nela, mostramos que a advogada se colocou como porta-voz do juiz e disse que os processos de indenização iriam parar caso manifestações realizadas pelos atingidos continuassem.

Influencidadores e "atendimento precoce". Documentos obtidos pela Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que a Secretaria de Comunicação e o Ministério da Saúde gastaram mais de R$ 1,3 milhão em ações de marketing com influenciadores sobre a pandemia. Campanhas falam sobre "atendimento precoce", mas não citam isolamento social. A reportagem, publicada hoje, saiu também no UOL

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