quinta-feira, 29 de abril de 2021

Os livros viraram alvo na marcha do retrocesso

 

Ed. #95 | 28 de abril de 2021


Acabar com a isenção de impostos para livros e começar a taxá-los é um dos pontos que o governo federal incluiu na sua proposta de reforma tributária, em análise na Câmara dos Deputados. O argumento do Ministério da Economia é que famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não-didáticos, e que o subsídio aos livros favorece apenas famílias ricas.

Para comentar esse assunto, convidamos nosso editor de podcasts, Ricardo Terto, que também é escritor e tem três livros publicados. Na newsletter de hoje, Terto fala sobre a dificuldade no acesso aos livros na infância e comenta os diferentes caminhos e perspectivas que a literatura trouxe para sua vida. 

Queremos saber sua opinião! Escreva seu comentário sobre este e outros assuntos para as "Cartas dos Aliados" respondendo este email.


Um abraço, 
Giulia Afiune
Os livros viraram alvo na marcha do retrocesso
por Ricardo Terto
 
Em minha vida acumulei a experiência de leitor, livreiro e escritor. Comecei a ler bem cedo e de uma forma totalmente desorganizada, já que fui a primeira pessoa da família que de fato se interessou por isso. Meus pais eram analfabetos, meus irmãos gostavam mais de outras coisas, como a música. O fato de a literatura ter encontrado um espaço em mim desde a infância pode ser considerado algo improvável. Porém, minha mãe, que na época me pedia para ler a Bíblia para ela, sabia que livros eram coisas importantes de se ter por perto

Acessibilidade de modo geral é um assunto em que me demoro, inclusive meu último livro, Quem É Essa Gente Toda Aqui? (2021, Ed.Todavia), é uma série de reflexões sobre o tema. Há um conjunto de dinâmicas bem elitistas e excludentes no mercado literário e eu já vivi isso nos três eixos, seja na criação, no comércio ou no consumo. A proposta do governo federal de taxar livros em 12% argumentando que famílias pobres não consomem livros não-didáticos é só mais uma delas. 

O universo de leitores, que é rico, diverso e pujante, às vezes cria choques entre crítica e público, a ponto do Jabuti, um dos maiores prêmios literários do país, ter criado em 2020 uma nova categoria chamada "Romance de Entretenimento", talvez na tentativa de contemplar uma parte de leitores que não se reconhece nos títulos normalmente premiados.

É interessante que nas edições que fui da tradicional Festa Literária de Paraty, a FLIP, os espaços e conversas para estes leitores de entretenimento praticamente não existiam. Em tempo, acho a divisão uma besteira, mas é um bom exemplo das reflexões que o mercado deve fazer. 

A primeira vez que participei de uma oficina literária, por exemplo, só foi possível porque a ganhei de presente, já que o valor era, sem exagero, equivalente a mais ou menos oito meses do meu aluguel na época. Claro, isso representa um certo segmento somente. Enquanto isso, há muita gente no Brasil trabalhando para romper essas barreiras, principalmente em escolas públicas, onde já fui convidado a falar três vezes. Sempre haverá uma bolha literária que parece ter prazer em estar distante e fechada, mas ela cada vez importa menos. 

Ainda que o perfil predominante de quem comanda o mercado tenha classe, cor e gênero, ainda assim, minha mãe acreditava que era bom manter livros por perto, não sei se porque acreditava nos livros, mas certamente porque acreditava em mim. 

Veja, eu não quero romantizar o hábito da leitura. Não acho que ler te torna automaticamente alguém sensível. Inclusive, conheço gente que lê por ano o que eu devo ter lido na vida, mas são ignorantes diplomados, do tipo que diz que 'só rico lê no Brasil'. Eu defendo os livros porque eles são perspectivas. 

Se os livros que tínhamos em casa não tivessem sido abertos, eu não me tornaria alguém melhor ou pior, mas me tornaria alguém diferente, é certo. Esses livros eram achados aqui, emprestados ali, recuperados da poeira ou do lixo, muitos com páginas que faltavam, o que hoje acho até simbólico. Nenhuma perspectiva encontrada morre de solidão, sempre há algo que surge a partir dela. Mas é isso, elas precisam ser, antes de tudo, coisas importantes de se ter por perto

Muitas questões foram colocadas em xeque nos últimos anos a respeito da representatividade no mercado literário e lentamente as coisas estão mudando. Aqui estou eu com três livros publicados em cinco anos, por exemplo. Mas é claro que a atual marcha do retrocesso vai mirar na cultura e na arte como puder porque tornar um bem inacessível é uma forma de dizer para as pessoas onde é o lugar delas. Onde elas deveriam ficar, física e simbolicamente. É o que essa recente proposta de taxação de livros representa.

A defesa que faço não é simplesmente a defesa do objeto mercadológico livro, mas a defesa do acesso a perspectivas. A minha, que estou escrevendo agora, que nasceu de muitos abismos, que seja recuperada na estante da casa de uma criança como eu fui, que possa provocar uma história improvável como a que eu tive. 

Acontece que essa defesa deve ser constante e ir além de simplesmente nos colocarmos contra uma taxação absurda. Minha pergunta é se estamos dispostos a pegar esse embalo e levarmos essa discussão mais adiante. Como vamos preencher essas páginas que ainda estão faltando? 
Ricardo Terto é produtor de podcasts na Pública e autor dos livros "Marmitas Frias", "Os Dias Antes de Nenhum" e "Quem É Essa Gente Toda Aqui?"

Rolou na Pública
 

O silêncio dos grandes veículos. Em sua coluna do último domingo, a ombudsman da Folha de S. Paulo, Flávia Lima, questiona a falta de repercussão e de cobertura da grande imprensa e da própria Folha sobre as graves denúncias de exploração sexual contra Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia, reveladas pela Pública. Nosso editor Thiago Domenici conversou com Flávia e revelou que a Folha desistiu na última hora de republicar o material. Como você que lê esta seção da Newsletter dos Aliados bem sabe, não é raro ver reportagens da Pública serem republicadas e repercutidas por veículos de expressão nacional.

52 milhões de comprimidos ineficazes contra Covid. Na semana passada, publicamos um levantamento exclusivo que mostra o aumento das vendas de remédios do chamado "kit covid" durante a pandemia. A reportagem foi republicada pelo UOLEl PaísMSNSul 21 e repercutida pelo site Aventuras na História.    

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