segunda-feira, 21 de março de 2022

Bolsonaro não age contra a fome no Brasil porque não quer, por José Graziano

 DE BRAÇOS CRUZADOS

Opinião | Bolsonaro não age contra a fome no Brasil porque não quer, por José Graziano

Compra de produtos da agricultura familiar e formação de estoques públicos estão entre as propostas do ex-chefe da FAO

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
 
Fome continua a aumentar no Brasil por falta de ação do governo federal
Fome continua a aumentar no Brasil por falta de ação do governo federal - Valmir Fernandes/MST-PR

O artigo “Alta dos alimentos deve 'espremer" mais os brasileiros” publicado na Folha de S.Paulo no último dia 19, de autoria de Fernando Canzian, desvela a impotência do atual governo federal frente à atual tendência de alta dos preços dos alimentos. "Temos como baixar os preços? Não”, afirma o diretor do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) ao ser entrevistado, que descarta ampliar estoques e justifica que “o melhor remédio para preço alto é preço alto. É isso que incentiva a produção." As estimativas de safra apresentadas no mesmo artigo por Canzian desmentem essa afirmativa de que a alta de preços tenha alavancado de imediato a produção de grãos no país.

Se os preços altos não beneficiam os produtores agrícolas e prejudicam os consumidores, a quem interessa então essa alta? A resposta só pode estar no elo que falta, os intermediários, que cumprem o papel de estocar esses produtos para disponibilizá-los quando for do seu interesse; ou seja, quando conseguirem um preço maior. A isso se chama especulação, no sentido econômico preciso do termo. Não se trata de culpar os intermediários pois eles desempenham um papel vital no armazenamento e distribuição de alimentos para que estejam disponíveis para nos consumidores. Ocorre que quando os preços estão subindo - e existe a expectativa de que subam mais ainda no curto prazo, os intermediários especulam com os produtos que tem armazenados, aguardando o melhor momento para vendê-los.


“Marcha dos ossos” realizada por mulheres no Centro de Curitiba, em 2021, em protesto contra a fome. / Juliana Barbosa / MST-PR

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É preciso entender que, embora o senso comum repita que os preços de mercado resultem do encontro da curva de oferta com a de demanda, não é bem isso que ocorre nos preços agrícolas no curto prazo. Afinal, nós não comemos hoje apenas o que foi produzido ontem, como é o caso de muitos dos produtos industriais. No caso dos preços agrícolas são os estoques e o consumo projetado que determinam os preços do nosso dia a dia. E estoques baixos - ainda mais quando estão todos nas mãos do setor privado - são condição suficiente para impulsionar uma especulação dos preços no seu sentido econômico mais exato, ou seja, aguardar o melhor momento para vender. Ainda mais em um quadro cheio de incertezas em relação ao que pode passar nos próximos meses.

Não se pode culpar os intermediários por especularem: isso é parte do seu negócio. A culpa é do governo que não fez estoques públicos e deixou tudo nas mãos do setor privado. É como se tivesse entregado o galinheiro para as raposas tomarem conta… A alta de preços devido à especulação nesse momento da guerra da Ucrânia é o resultado dessa política ultra liberal que praticamos: o governo do Brasil é hoje um dos poucos que acredita que fazemos parte de um grande supermercado global, onde podemos comprar qualquer coisa, quando quisermos. Mas claro, desde que estejamos dispostos a pagar pelos altos preços vigentes no momento! Esse é literalmente o preço que pagamos pelo governo não ter estoques públicos de emergência para enfrentar situações como essa de guerra, mas que poderia ser também resultante de uma seca ou uma enchente, ou seja, qualquer coisa inesperada que provoque uma expectativa de queda na oferta futura das agrícolas.

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Importante ressaltar que a atual subida de preços não decorre de uma crise de desabastecimento. Ou seja, não há falta de produtos nas prateleiras dos supermercados, que estão cheias; o que está cada vez mais vazio são os carrinhos... Até porque o Brasil não depende de produtos importados da Ucrânia: nem mesmo do trigo, que importamos a maior parte da Argentina. Só haveria risco de desabastecimento se os países produtores colocassem restrições nas suas exportações, como já estão fazendo o Egito e Indonésia. Mas como disse o secretário do MAPA ao jornalista Canzian, a Argentina estaria “considerando” fazer isso com o trigo que exporta. (Talvez essa “ameaça” nem seja real, mas ajuda a manter as expectativas de preços do trigo argentino em alta. Aliás a Argentina anunciou a criação de um Fundo de Estabilização dos preços internos do trigo "tipo Robin Wood”, com recursos provenientes de um aumento das taxas de exportação de soja que vai ser pago praticamente por 8 grandes tradings. Poderia funcionar aqui também…)


No 8M mulheres ocuparam às ruas "por um Brasil sem machismo, sem racismo, sem fome e sem Bolsonaro" / Nathália Florêncio

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Essa atitude defensiva de restringir as suas próprias exportações foi tomada por inúmeros países na crise de 2007/08 e agravou ainda mais a alta dos preços, gerando até situações em que um país não conseguia “comprar” trigo nos mercados internacionais. Foi o caso de alguns países árabes (como o próprio Egito, por exemplo) que enfrentaram na época sérios distúrbios internos, pela alta dos preços e depois falta de pão, nos protestos ocorridos no que ficou conhecido como “Primavera árabe”.

A situação atual é diferente, dada a existência de um um Sistema de Informações sobre Mercados Agrícolas - AMIS (Agricultural Market Information System), com foco inicial em quatro commodities alimentares: trigo, milho, arroz e soja, instituído no final de 2011. Atualmente o AMIS é gerido por um Secretariado sediado na FAO, englobando nove organismos internacionais (FAO, IFAD, OECD, UNCTAD, WFP, World Bank, WTO, IFPRI e UNHLTF) e visa dar transparência para as informações dos mercados (em especial aos estoques), bem como articular uma coordenação mínima das intenções políticas dos principais países produtores. Informações precisas e fidedignas ajudam a conter a especulação.

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É certo que agora, em plena guerra, não é a hora de formar estoques pois isso contribuiria para elevar os preços ainda mais. Mas isso não significa que o governo tenha que ficar de braços cruzados esperando que os preços se ajustem com o passar do tempo (próxima safra?), que pode ser longo demais para quem ja está com fome. De imediato daria para retomar, por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura, pois o aumento de preços das commodities não ocorre nos produtos que tem apenas mercados locais. Assim por exemplo, poderíamos orientar a substituição de parte do consumo de trigo e arroz por mandioca, batatas e tubérculos em geral, onde estiverem disponíveis.

Mas a médio prazo - quando começar a colheita da próxima safra, por exemplo - o governo deveria retomar a formação dos estoques de emergência que significa comprar e reter 2 a 3 meses dos produtos básicos (como recomenda a FAO) sob o seu controle na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), por exemplo. Só o fato do governo anunciar agora que pretende fazer isso mais à frente, ajudaria a frear as expectativas de alta dos preços pois num processo especulativo como o que vivemos no momento, só há certeza de uma coisa: tudo o que sobe muito rapidamente, vai cair mais à frente! E saber essa hora é o segredo de todo negócio especulativo: por isso ajuda muito ter amigos no governo, em especial aqueles que tem o "MAPA" da mina!


Incentivo à agricultura familiar poderia amenizar alta dos preços dos alimentos / MTD/ Divulgação

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O jornalista Fernando Canzian acerta inteiramente ao dizer que as “pessoas mais pobres de países como o Brasil devem continuar sendo "espremidos" pela tendência de alta dos preços”. Mas os dados que utiliza da pesquisa da rede PENSSAN subestimam a magnitude dos que passam fome hoje no Brasil pois se refere aos 19 milhões (um Chile inteiro!) estimados em dezembro de 2020, final do primeiro ano da pandemia quando ainda tínhamos os últimos pagamentos do auxilio emergencial. Infelizmente a fome continuou a aumentar em 2021 por falta de ação do governo federal que se preocupou mais em mudar o nome do Bolsa Família por razões eleitoreiras que estender o auxilio emergencial aos mais pobres.

A própria Folha de S.Paulo divulgou um Datafolha nas vésperas do Natal de 2021 que mostrou que, ao final do segundo ano da pandemia, 15% da população brasileira tinham deixado de comer pelo menos um dia da semana durante o período da pesquisa, o que representava cerca de 32 milhões de pessoas. E mais: 26% da população - ou seja, 55 milhões de pessoas - tinham deixado de comer o que precisavam pois não tinham dinheiro para comprar mais alimentos. É praticamente o equivalente a toda a população do Chile mais a da Bolívia juntas, passando fome dentro do Brasil!

*José Graziano da Silva é diretor-geral do Instituto Fome Zero (IFZ) e ex-ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo

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