O cruel assassinato de Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips, temido desde o desaparecimento deles no Vale do Javari e confirmado na quarta passada, é uma consequência direta do projeto dos militares brasileiros – particularmente os do Exército – para a Amazônia brasileira.
Vamos recapitular: tão logo depuseram o governo legítimo de João Goulart e se aboletaram no recém-inaugurado Palácio do Planalto, em 1964, os ditadores fardados puseram em marcha seu projeto paranóico e destruidor para a Amazônia.
Em 1966, o governo de Castello Branco criou a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam. Falando no lançamento dela, o ministro do Planejamento, Roberto Campos – o Paulo Guedes de Castello –, profetizava a "verdadeira" vocação amazônica: a mineração.
Em 1970, com o lançamento da Transamazônica – o atoleiro mais caro já construído pela humanidade, construído sobre muito sangue indígena –, os fardados exultavam: a rodovia levaria "gente" para a região, a Amazônia seria colonizada, se desenvolveria e seria finalmente "brasileira". "Ocupar para não entregar": esse era o lema dos militares para a região.
Uma propaganda de 1972 deixa bem claro que tipo de colonização, de desenvolvimento, os fardados vislumbravam: “Toque sua boiada para o maior pasto do mundo”, dizia o anúncio. “Na Amazônia a terra é barata e sua fazenda pode ter todo o pasto que os bois precisam. Sem frio ou estiagem queimando o capim, o gado fica bonito de janeiro a dezembro”.
Não é preciso ser brilhante para perceber de cara alguns dos problemas do planejamento liberal-militar. Para começar, já havia gente na Amazônia: os indígenas que vivem na região desde muito antes da chegada dos europeus à América e da invenção do Exército brasileiro. Eles eram vistos como um empecilho a ser superado. Tampouco se pensou na viabilidade econômica do projeto mirabolante. Naturalmente, a aventura deu errado para a maioria dos colonos, e estima-se que 85% dos primeiros colonizadores desistiram após algum tempo.
O estrago, contudo, já estava feito. A política é apontada como a origem de muitos dos conflitos fundiários que até hoje perduram na região. A lógica de ter na floresta todo o pasto com que um pecuarista poderia sonhar segue a ser o motor da devastação da floresta pelo agronegócio brasileiro, que corrói a floresta a partir do oeste do Brasil. Para piorar, em 1979, início do ocaso da ditadura militar, um novo ingrediente seria acrescido à mistura: o garimpo, com a descoberta de jazidas de ouro na Serra dos Carajás, no Pará. Serra Pelada, como se tornaria conhecida a mina, atraiu milhares de aventureiros à região.
Quarenta anos depois, em 2019, o início do governo Bolsonaro marcou a retomada do projeto da ditadura para a Amazônia. A bem da verdade, até que demorou: ela já era reclamada publicamente desde 2005 pelo general Augusto Heleno, à época comandante militar da Amazônia, que se opôs frontalmente à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, lar de 20 mil indígenas Macuxis, Uapixanas, Ingaricós, Taurepangues e Patamonas.
A terra indígena na fronteira com a Venezuela causa urticária severa nos militares que seguem a acreditar no "ocupar para não entregar". Na cabeça paranóica dessa gente, é um convite à "invasão" da Amazônia por "inimigos da pátria", uma definição que abarca do vizinho chavista a ONGs ambientalistas estrangeiras, missionários católicos progressistas e a ideia da "internacionalização da região", particularmente temida desde o início das pressões globais pela preservação da floresta nos anos 1980.
Para estes militares, há uma “grande estratégia indireta” de anulação do estado brasileiro na Amazônia. Eles temem, por exemplo, que países estrangeiros apoiem a fundação de novas nações indígenas – os Yanomami brasileiros, por exemplo, se juntariam aos venezuelanos na criação da nação Yanomami.
É o tipo de ideário que voltou a dominar as políticas para a região com a ascensão de Bolsonaro, Heleno etc. Em setembro de 2019, publicamos esta reportagem sobre os militares e a Amazônia, que segue tristemente atual. Meses antes, em julho, questionado por Dom Phillips sobre a preocupação global com a floresta, o presidente disse o seguinte: "Primeiro você tem que entender que a Amazônia é do Brasil, não é de vocês".
"Do Brasil", para Bolsonaro, quer dizer "de gente como eu": agropecuaristas, garimpeiros, pescadores, caçadores. Mas não indígenas, ambientalistas, jornalistas que denunciam a devastação ambiental e o genocídio de etnias. Essa lógica paranóica enxerga nos indigenistas e antropólogos da Funai inimigos, e não servidores públicos empenhados em defender o direito dos brasileiros originários. Na semana passada, publicamos reportagem sobre um estudo que radiografou a destruição da política indígena brasileira.
É parte do mesmo projeto político que encheu o Ibama e o ICMBio de policiais militares aposentados, exonerou o delegado da Polícia Federal que ousou investigar a boiada de Ricardo Salles e recebeu com honras, no Palácio do Planalto, o major do Exército Sebastião Curió, interventor militar em Serra Pelada – e, antes disso, comandante do massacre da guerrilha do Araguaia, também na Amazônia. Ao desmontar o estado brasileiro, Bolsonaro manda um recado claro a ladrões de madeira, garimpeiros, pescadores e caçadores ilegais – e também narcotraficantes que usam a região do Vale do Javari para escoar cocaína produzida no Peru e na Colômbia: está tudo liberado.
Quando Bruno e Dom foram dados como desaparecidos, se questionou a demora e a falta de coordenação das autoridades – particularmente as do Exército – em agir na busca deles. Na visão de quem definiu e segue a trabalhar na lógica do "ocupar para não entregar", gente como eles era um problema. Buscá-los estava longe de ser prioridade. Já a morte deles foi uma mera consequência da política que privilegia o garimpo, a grilagem de terras, a devastação ambiental e o genocídio indígena.
No Brasil todo – mas na Amazônia em especial –, o horror da ditadura voltou com tudo. |
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