sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Agência Pública A exumação da “Lava Jato do Tocantins”

 



Nos últimos anos, nos acostumamos a ver notícias sobre operações da Polícia Federal (PF) em veículos de imprensa. Para além de noticiar quantas pessoas foram presas e o que foi apreendido, também é papel do jornalista investigar os métodos usados e suas consequências, defende o colunista Rubens Valente na newsletter dos Aliados de hoje. 

Rubens detalha como fizemos isso na série de reportagens sobre a “Lava Jato do Tocantins”. As reportagens contam a história da Operação Érisdesencadeada em 2021 pela Polícia Federal, que alterou todo o cenário eleitoral de 2022 no estado, ao derrubar o então governador Mauro Carlesse (ex-PSL, hoje no Agir), enterrar sua candidatura à reeleição e trazer ao poder o grupo político do seu vice-governador, que assumiu o cargo do governador e terminou reeleito na campanha deste ano.

Qual sua opinião sobre a cobertura de operações policiais pela imprensa? Envie seu comentário para as Cartas dos Aliados! 

Abraços, 

Giulia Afiune
Editora de Audiências da Pública
A exumação da “Lava Jato do Tocantins”
por Rubens Valente
 

A deflagração de uma operação policial – em especial as da Polícia Federal (PF), que se tornaram mais comuns a partir de 2003 – sempre gera impactos políticos, sociais e midiáticos. Ainda mais se o réu ou investigado ocupa um alto cargo público. Contudo, do mesmo jeito inesperado pelo qual entram no noticiário, essas operações logo desaparecem e muitas vezes caem no esquecimento. De tempos em tempos, uma ou outra notícia atualiza o andamento do processo, informando quem está preso, quem está solto, qual a pena, e nada muito mais que isso.

Certamente há argumentos válidos para explicar por que isso acontece – por exemplo, o grande número de operações do gênero, a exaustão do tema, a escassez de recursos financeiros e de mão-de-obra na imprensa e a dificuldade de os jornalistas terem acesso a documentos e depoimentos que são cobertos pelo segredo de Justiça.

De qualquer forma, o que importa para o jornalismo, e acima de tudo para o leitor, é a necessidade de acompanhar o desenrolar e o desenlace dessas operações, indagar sobre seus métodos e problematizar suas consequências. A deflagração, como sabemos, é apenas o primeiro passo de uma investigação, cujas conclusões ainda serão chanceladas ou recusadas pelo Judiciário. É preciso também procurar desvendar o ânimo e a intenção dos agentes públicos por trás dessas operações.

Uma dessas investigações de grande apelo midiático abalou a cena política no Tocantins em outubro de 2021. O governador do estado, Mauro Carlesse – então no PSL, hoje no Agir e politicamente distanciado do presidente Jair Bolsonaro – foi afastado do cargo por decisão do ministro relator do processo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), Mauro Campbell. A decisão também atingiu diversos delegados da Polícia Civil do Tocantins.

O primeiro fato que chama a atenção no caso é que, até hoje, após o afastamento que encurtou o mandato do governador, o STJ nunca julgou o mérito das acusações levantadas pela Polícia Federal. Em março deste ano, para escapar de um impeachment, Carlesse renunciou ao cargo. Nas eleições deste ano, ele não concorreu. Os tocantinenses elegeram o vice de Carlesse, hoje seu desafeto. Carlesse nunca foi ouvido em depoimento pelo STJ antes do seu afastamento.

Em resumo, uma decisão liminar e provisória de um ministro do STJ a partir de um inquérito da PF alterou todo o cenário eleitoral no estado. A Operação Éris teve a participação decisiva da subprocuradora-geral da República na Procuradoria Geral da República (PGR) em Brasília, Lindôra Araújo, braço direito do procurador-geral Augusto Aras. Em 2022, com a saída de Carlesse da cena eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro apoiou um outro candidato, Ronaldo Dimas, do PL, que acabou derrotado no primeiro turno.

A acusação principal da PF e de Lindôra é que Carlesse teria interferido em investigações realizadas pela Polícia Civil contra seu próprio governo. Mas o ex-governador alega que simplesmente tentou colocar normas a fim de impedir a espetacularização do trabalho dos delegados. Certo dia, os policiais chegaram a cercar o palácio do governo em Palmas (produzindo imagens que rodaram o país) a fim de cumprir um simples mandado de busca e apreensão. Carlesse afirma que o Tocantins vive “um Estado policialesco” e que foi vítima de “um golpe” com a participação de delegados da sua própria Polícia Civil.

A partir das primeiras informações preocupantes que recebeu, a Agência Pública trabalhou para compreender os métodos da Operação Éris e as provas que ela juntou e que levaram ao afastamento do governador e dos delegados. Em um trabalho de campo de 13 dias em Palmas, eu e o colega Ciro Barros ouvimos uma dúzia de pessoas e lemos milhares de páginas de inquéritos e processos criminais e administrativos.


O resultado foi uma série de reportagens publicada na semana passada, que trouxe como uma das principais novidades a gravação de um depoimento concedido por uma das testemunhas do caso, um delegado da Polícia Civil, Thiago Resplandes, a um dos delegados da PF que atuou na Operação Éris, Duílio Mocelin Cardoso.

O delegado Mocelin havia trabalhado na Operação Lava Jato em Curitiba (PR) em 2016, no auge das investigações, e depois exercido um cargo de confiança no Ministério da Justiça no governo Bolsonaro durante a gestão de Sérgio Moro (2019-2020).

Ao cobrir tais operações, os jornalistas devem prestar muita atenção na forma como são tomados os depoimentos de testemunhas e investigados. Eles podem ter sido obtidos sob pressão das autoridades, tanto da PF quanto do Ministério Público Federal (MPF) e do Judiciário, o que contamina o conteúdo do que foi dito. Sob pressão, testemunhas e acusados podem se confundir, exagerar e mentir. Mas é bastante raro, raríssimo, que se consiga documentar tais pressões. No caso de Tocantins, a investigação da Pública conseguiu trazer à luz tal evidência.

Desconfiado, o delegado Resplandes resolveu gravar o próprio depoimento, desde antes do seu início formal. O áudio descortina as intensas pressões da PF para que ele “colaborasse” com as investigações. A promessa é que ele seria poupado da condição de “investigado”, o que, aliás, acabou não acontecendo. O método da PF foi condenado por três advogados com larga experiência ouvidos pela Pública. Para eles, a conduta do delegado da PF deve ser investigada, inclusive à luz da Lei de Abuso de Autoridade.

Não é nada simples, para um jornalista, conseguir resumir e apresentar ao leitor todas as nuances de uma operação policial que durou meses. Sobretudo questionar seus métodos e consequências e apresentar suas deficiências e debilidades. É uma espécie de exumação, que o jornalismo não deve nunca deixar de lado e que, no caso do Tocantins, a Pública tem certeza de que começou a fazer.
Rubens Valente é colunista da Agência Pública

Rolou na Pública
 

Operação no Tocantins. A série de reportagens sobre a Operação Éris, tema desta newsletter, foi republicada na Folha de S. Paulo, tanto online quanto na edição impressa de sábado, dia 15 de outubro. A série também foi repercutida em jornais do estado, como AF Notícias e Jornal do Tocantins

Ganhamos o Prêmio Herzog! O episódio "O que os olhos não veem", do podcast "Até que se prove o contrário", ganhou o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na categoria produção jornalística em áudio. O podcast parte de histórias de pessoas que foram presas injustamente para revelar problemas estruturais da justiça brasileira. Ouça agora em nosso site ou no seu tocador preferido! 

Livro reconhecido. Também no Prêmio Vladimir Herzog, o livro Dano Colateral, da nossa editora executiva Natalia Viana, ganhou menção honrosa na categoria livro-reportagem. Você pode comprar o livro hoje com 30% de desconto – um agradecimento pelo seu apoio como Aliado. Basta ir no site da Companhia das Letras e inserir o cupom: DANOCOLATERAL30. O cupom é intransferível e vale para uso com um CPF. 

Damares não protegeu crianças do Marajó. Em entrevista para a Pública em parceria com o Universa, a irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, presidente do Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís Azcona, comenta as novas declarações de Damares sobre supostos abusos sexuais na Ilha do Marajó, no Pará. A entrevista foi republicada na Carta Capital, no Sul21 e no Brasil de Fato.

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