SERÁ QUE DESEJAMOS O IMPOSSÍVEL?
Renato Janine Ribeiro
O artigo abaixo foi escrito para o Valor Econômico, antes da crise que provocou a renúncia do Ministro Cid Gomes:
Um princípio básico da ciência é que, quando uma hipótese não explica
os fenômenos, devemos procurar outra que dê melhor conta deles. Este
princípio me ocorreu há poucos dias. Afinal, quase todos os analistas,
eu inclusive, temos criticado a presidente da República por seu estilo
de pouca negociação. Até ficamos espantados: como sobe à presidência
alguém que ignora princípios tão elementares? Mas aí parei. Nunca é bom
apostar na ignorância ou inépcia daquele a quem criticamos. Pode ser que
Dilma Rousseff erre sim ao não negociar, ao não fazer politica. Só
que...
Se isso não for óbvio? Se nosso ponto de partida estiver errado?
Durante milênios, os homens acreditaram que os astros, inclusive o sol,
giram em torno da Terra. Só que, desse jeito, alguns astros têm um
movimento estranho, irregular, e até mesmo retrogradam. Já com a
astronomia moderna, heliocêntrica, os movimentos dos planetas -
inclusive a Terra - em torno do Sol descrevem órbitas mais regulares.
Essa, a lição cientifica: se os resultados soam absurdos, devemos
questionar a hipótese de que partimos. No caso, em vez de pensar que
Dilma ignora o mais elementar da razão e da politica, indagar o que ela
efetivamente pretende.
Dá para governar bem e ser honesto no Brasil?
No seu primeiro ano de governo, Dilma demitiu todos os auxiliares
acusados de corrupção. Foi aplaudida. Mas logo começaram a questioná-la:
por que não fazia alianças? Porque não gostava dos políticos? ou, sei
lá, da própria politica? Só que, num País em que tantos políticos
importantes são suspeitos de corrupção, negociar com eles o que
significa? Podemos ter decência no exercício do poder e, ao mesmo tempo,
transito livre pelo mundo dos políticos?
Essa é a realidade
atual, que precisa mudar, mas isso não será fácil. E se Dilma for
representativa de nosso desejo difuso de uma política competente e sem
corrupção? Ela se irrita, sim, com quem está à sua volta, o que
politicamente é inábil, mas isso porque cobra eficiência. E isolou a
família da politica. Nem ela nem os familiares despertam suspeitas de
favorecimento pessoal. Pode até governar mal, só que detestando a
corrupção e a ineficiência. Mas basta detestá-las para superá-las?
A hipótese passa a ser: e se o "momentum" Dilma for exatamente a
tragédia mais representativa daquilo que desejamos? Se o problema não
estiver nela, mas em nós? Em nós, analistas da política e cidadãos, que
pretendemos o melhor de dois mundos: eficiência e honestidade.
Pode haver governabilidade, no Brasil de hoje, sem corrupção? Podemos
ter governabilidade sem negociações e alianças, que vão ao limite de
nossa irresponsabilidade?
Para não ficarmos num só partido,
lembremos a rebelião do PCC em São Paulo em 2006, quando a quadrilha
paralisou a cidade por alguns dias. A situação só foi resolvida quando o
governo estadual - que é do PSDB - negociou com o PCC e cedeu.
Meticulosamente, deletamos este passado (embora ainda presente) de nossa
memória.
E ouvi de Dráuzio Varella que desde o massacre do
Carandiru em 1992, ocorrido no governo do PMDB, a polícia não entra nos
presídios do Estado. São geridos pelo crime. Isso é inadmissível. Mas
assim baixa a violência nas cadeias e mesmo o crime fora delas.
Essa mistura de bem e mal, de resultados positivos e meios obscuros para
consegui-los, merece atenção. Porque lavamos as mãos. Denunciamos a
corrupção e queremos que as leis passem no Congresso. Mesmo na ditadura,
isto é, num regime em que o Congresso pouco decidia, 0 assessor
presidencial Heitor de Aquino dizia, quando ia negociar a aprovação de
decretos-leis pelos parlamentares, que ia abrir o "barril de peixe
podre". Imagina-se o odor. Fingimos que ele não existe, ou que nasceu
ontem.
Uma vez, estive na antessala de uma pessoa com certo
poder. Faltava água no seu prédio. Ouvi a secretária telefonar a alguém:
"Não quero saber como, mas você terá que resolver o problema em duas
horas". Pensei que era uma forma de exigir eficiência e presteza. Mas
depois entendi que esse bordão serve para colocar o encarregado à margem
da lei. Vire-se. Se violar a lei, viole. Mas eu lavo as mãos. "Não
quero nem saber!"
E se Dilma tiver a mesma convicção que o povo
brasileiro? Se também quiser o fim da corrupção e, ao mesmo tempo, um
governo eficiente? Se sua aversão aos políticos for porque não erre na
sua honestidade, nem competência? Neste caso, não a estaremos
condenando, exatamente porque tem os mesmos propósitos da maioria da
sociedade?
Esta é uma hipótese. Não justifica a presidente, no
sentido de aprová-la e apoiá-la. Ela deveria dialogar, se não com a
categoria política, certamente com a sociedade. Mas a hipótese talvez
explique os fenômenos, isto é, a ação - e inação - de Dilma, melhor do
que a suposição de que ela é inepta politicamente. E cabe perguntar se a
psicanálise não ajuda a entender o ódio crescente a ela. Ódio ao outro e
projeção de ódio a si mesmo (simplifico, claro). Talvez ela cause tanta
rejeição porque nos mostra, as escancaras, um dilema que queremos
esconder de nós. Queremos a honestidade sem pagar o prego por ela.
Pensamos que a honestidade dos políticos, quando vier, vai nos cumular
de bênçãos. O dinheiro que é roubado da sociedade virá a nós como as
fontes de leite e mel da Terra Prometida. Esquecemos que chegar a isso
dá trabalho, e que também terão que acabar muitas condutas nossas,
"informais" dizemos às vezes, imorais ou ilegais. Mas, sobretudo,
esquecemos que reformar a politica não é só dos políticos. Demanda
esforço de quem os elege, e esse esforço não se resume em raiva, menos
ainda, insultos.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Politica na Universidade de São Paulo.
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