Especialista estima que a taxação de patrimônios acima de um milhão de
reais poderia render um valor equivalente ao da extinta CPMF.
Renan Truffi
Único dos sete tributos federais previstos na Constituição sem regulamentação
até hoje, o imposto sobre grandes fortunas pode sair do papel em um momento no
qual o governo federal busca ampliar sua arrecadação. Vista como alternativa à
esquerda, após um ajuste fiscal iniciado pela retirada de direitos
trabalhistas, a proposta voltou à tona com o sucesso do livro do economista francês
Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, para quem não discutir impostos sobre
riqueza é loucura.
Mestre em Finanças Públicas e ex-secretário de Finanças na gestão da
prefeita Luíza Erundina, em São Paulo, Amir Khair é especialista no assunto. Em
entrevista a CartaCapital, Khair calcula que a taxação de patrimônios poderia
render aproximadamente 100 bilhões de reais por ano se aplicada, em uma
simulação hipotética, sobre valores superiores a um milhão de reais. “Quando
você tem uma sociedade com má distribuição de riqueza, você tem uma atividade
econômica mais frágil. O imposto sobre grandes fortunas teria uma arrecadação
semelhante àquela que tinha a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação
Financeira). Portanto bem acima até do ajuste fiscal pretendido pelo governo”,
afirma.
Eis a entrevista:
·
CC - O livro de Thomas Piketty trouxe, mais uma
vez, a discussão do imposto sobre grandes fortunas. Por que o senhor acha que
essa proposta ainda é vista como uma pauta de esquerda, sendo que está prevista
na Constituição?
DK - Pergunta interessante essa. Por que está na Constituição e é uma
pauta de esquerda? Talvez a Constituição represente uma regra de convívio
social na qual a população de menor renda tenha um pouco mais de acesso aos
bens de democracia. A democracia prevê um regime de maior equilíbrio social.
Prevê um regime do governo para o povo, de interesse do povo. Quando você
estabelece na Constituição um imposto sobre grandes fortunas, que no fundo,
independente do nome, é um imposto que visa alcançar riqueza, você está
contribuindo para uma melhor distribuição dela entre a população. Esse foi o
objetivo dos constituintes em 1988. O que não se esperava é que o próprio
Congresso que aprovou isso seja o Congresso a não aprovar a regulamentação
desse tributo. E a razão é muito simples. Por que o Congresso não aprova?
Porque os congressistas, quase sem exceção, seriam atingidos por essa
tributação. Quando eles são atingidos, eles não aprovam nenhuma mudança
tributária que os atinja. Essa é a razão central pelo fato de, ao longo de
todos esses anos, não ter sido regulamentado o imposto.
·
CC - O imposto sobre grandes fortunas é o único
dos sete tributos previstos na Constituição que ainda não foi implementado.
Então não é só a influência dos mais ricos, mas o fato do Congresso ser também
uma representação da camada mais rica da população?
AK - É uma visão curto-prazista, no sentido que você estaria defendendo
o interesse dos mais ricos, mas na essência você estaria prejudicando até a
essência dos mais ricos. Quando você tem uma sociedade com má distribuição de
riqueza, você tem uma atividade econômica mais frágil. Eu não tenho o consumo
usufruindo no potencial que ele tem. Quando você tem o consumo usufruindo o
potencial que ele tem, você tem mais produção, mais riqueza de uma forma geral,
e é claro que os mais ricos se apossam melhor dessa riqueza gerada. Quando você
tem má distribuição de riqueza ou de renda, você tem uma atividade econômica
mais restrita e consequentemente menos faturamento nas empresas, menos lucro.
·
CC - Nesse início de segundo mandato, o governo
Dilma optou por fazer um reajuste fiscal e reviu o acesso a alguns direitos dos
trabalhadores, como o seguro-desemprego. Mas agora cogita a possibilidade de
regulamentar o imposto sobre a riqueza. Na opinião do senhor, o imposto sobre
grandes fortunas poderia ter o mesmo peso, ou até um impacto melhor, para o
ajuste das contas do governo, sem que fosse necessário mexer nos direitos
trabalhistas?
AK - Se aplicado com uma alíquota média de 1% sobre aquilo que são os
bens das pessoas, teria uma arrecadação semelhante àquela que tinha a CPMF
(Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que foi extinta. E
tem, portanto, um poder arrecadador forte. Hoje eu estimo em cerca de 100
bilhões de reais/ano. Portanto bem acima até do ajuste fiscal pretendido pelo
governo.
·
CC - Portanto, seria uma alternativa a todas
essas medidas que o governo vem tomando desde o início do segundo mandato e que
desagradaram trabalhadores e movimentos sociais?
AK - Sim, eu acho que seria uma medida desenvolvimentista em essência
porque não atinge aquilo que é essencial aos trabalhadores, portanto aquilo que
se traduz efetivamente em consumo. Quando você corta direitos dos trabalhadores
você corta consumo automaticamente. Cortando consumo, você corta faturamento e
o lucro delas. Então você paralisa o País também ao fazer isso. Essas medidas
que o governo está adotando, independente do fato que você tem que ter rigor
fiscal, e rigor fiscal não se toma com essas medidas do governo, estão muito
aquém do rigor fiscal necessário ao País. Essas medidas travam o crescimento.
Ao travar o crescimento, cai a arrecadação pública. Ao cair a arrecadação
pública, o objetivo do governo de atingir sua meta não será atingido.
·
CC - Quais as consequências e como o senhor
avalia a postura do governo de fazer corte nesses benefícios trabalhistas?
AK - É uma atitude um pouco simplista, uma atitude que não resolve.
Como eu falei, quando você corta na base da pirâmide social você diminui
consumo e, portanto, diminui a própria arrecadação pública. Então uma coisa
anula a outra, ou até pior do que anula. Pode acontecer como aconteceu no
passado. Você tem um déficit muito maior das contas públicas e não resolve. O
governo teria uma alternativa muito mais eficaz, muito mais forte, muito mais
rápida, muito mais factível, caso reduzisse as despesas com juros. Os juros no
ano passado corresponderam a 6% do PIB [Produto Interno Bruto] e isso gerou um
rombo nas contas públicas. Quer dizer, o que deu um rombo nas contas públicas
foram os juros. E o Brasil é um dos campeões mundiais de juros.
O Brasil tem sempre sobre a questão fiscal um ônus de 6% do PIB, quando
no mundo todo gira em torno de 1%. Então quando você tem uma conta anormal por
consequência dos juros, a providência mais normal, óbvia, é você atacar essa
questão. Essa é a questão central e é fácil de atacar. Como você ataca?
Reduzindo a SELIC [taxa básica de juros]. A SELIC está muito acima do padrão
internacional, o padrão internacional das taxas básicas de juros é a inflação
do País. Nós estamos com seis pontos acima da inflação na SELIC. Quando você
reduzir isso para a inflação do País, essa conta de juros cai rapidamente e, ao
cair rapidamente, você faz um ajuste fiscal sério, para valer. Muito diferente
do que o governo está propondo.
·
CC - Segundo Piketty, o imposto sobre grandes
fortunas poderia ser atrelado à diminuição da carga tributária sobre o consumo.
Como o senhor enxerga essa proposta?
AK - Na realidade, você tem o seguinte: o Brasil tem uma distorção
tributária muito grande porque taxa em excesso o consumo e subtributa o
patrimônio e a renda. Consequentemente você faz com que os preços no Brasil de
diversos bens fiquem majorados em torno de 50%. Então uma pessoa vai comprar um
bem, ela está pagando o valor sem os impostos mais 50% de impostos ligados ao
consumo. Quando você tem uma tributação mais equilibrada, como nos países
desenvolvidos, essa tributação sobre o consumo não excede 30%. Então você tem
bens a preços melhores para o consumo da população. Quando você tem imposto
sobre grandes fortunas entrando no cômputo tributário, você permite aliviar uma
parte dessa tributação do consumo sem sacrificar a arrecadação pública. E,
quando você faz isso, você está tomando medidas pró-crescimento. E medidas
pró-crescimento repercutem do ponto de vista fiscal na melhoria da arrecadação
e, portanto, na parte mais saudável das finanças públicas.
·
CC - Na sua opinião, qual deve ser o valor
mínimo de patrimônio a ser taxado para que apenas os ricos sejam atingidos?
AK - Há várias propostas em discussão com relação à tributação. Eu acho
que você deve isentar uma parcela da população. Com patrimônios de cerca de um
milhão de reais você já tira dessa tributação 95% ou 98% da população
brasileira. Então essa tributação vai incidir em 2% ou 5% da população. E, ao
estabelecer essa tributação, você não precisa colocar alíquotas elevadas, essas
alíquotas podem ficar no nível de 1% no máximo e ter, ainda assim, esse
potencial de arrecadação que eu falei, com 100 bilhões de reais/ano.
·
CC - Além de regulamentar o imposto sobre
grandes fortunas, Piketty fala ainda na importância de taxar a herança. O
senhor concorda?
AK - A tributação da herança é além da questão da tributação das
grandes fortunas. É prevista na Constituição e é de fato usada no Brasil.
Representa em torno de 4% de tributação sobre o valor da herança. No mundo todo
essa tributação é acima de 30%. No Brasil é muito baixo e a razão é a mesma que
falei: isso [aumento da tributação] não passa nas assembleias legislativas e
não passa no Congresso. Essa alíquota de 4% é uma das mais baixas do mundo.
Então se você tivesse uma tributação sobre herança no nível internacional, por
volta de 30%, você estaria também aliviando impostos sobre consumo e
consequentemente melhorando atividade econômica e arrecadação pública.
·
CC - Quanto o aumento dessa alíquota sobre a
herança poderia gerar a mais de arrecadação? Há alguma estimativa?
AK - Não tem no momento isso. A tributação sobre herança é conhecida
como Imposto sobre Transmissão Causa Mortis, imposto que pertence
exclusivamente aos estados e, se você aumentasse, melhoraria arrecadação dos
estados. Os estados têm poder, independentemente do governo federal, de mudar
esse percentual de 4%, mas nenhum governador tem interesse em fazer isso porque
nenhum governador representa os interesses efetivos da popula
Nenhum comentário:
Postar um comentário