O regime de força já respira
entre nós
Engenheiros
sociais já falam em cortar 15% do Bolsa Família e milícias da FIESP executam o
policiamento ideológico da Avenida Paulista
Saul Leblon
A barbárie já respira entre nós. Da leitura atenta dos jornais, em
ordem e com atenção inversa à pretendida pela edição, sente-se o sopro do
regime de força a pulsar seu passo de ganso no metabolismo nacional.
O assoalho da democracia range, enquanto a narrativa dominante tenta
naturalizar judicialmente o que é, na verdade, uma ruptura do chão
institucional.
É possível ouvir a voz dos personagens icônicos da conspiração em
marcha batida.
Já se vive em uma sociedade em que a suprema corte da justiça age como
um anexo dos que, sem voto, se avocam a prerrogativa de ‘corrigir o voto
popular’, na expressão feliz do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica.
Tome-se personagens do calibre de um Gilmar Mendes, ou de Celso de
Mello –dois retificadores empenhados em desasnar as urnas.
Ou aspirantes ao mesmo posto, mas de estatura inferior, a exemplo de um
Dias Tofolli, ouRosa Weber e Cármen Lúcia (‘não tenho prova cabal contra Dirceu
– mas vou condená-lo porque a literatura jurídica assim o permite’).
O conjunto afasta qualquer ilusão em uma instância isenta –a última
instância a qual o impasse previsível do desenvolvimento em uma sociedade de
desiguais poderia ser mediado em pé de igualdade e em busca de um equilíbrio
reordenador.
Os membros do STF cuidam diuturnamente de desautorizar a fé da
sociedade nessa última instância também conhecida como justiça.
Diante do golpe em curso, o STF brasileiro se apresenta à sociedade não
como um garantidor da lei e da Constituição.
A cena que as togas protagonizam neste filme é a de um salão de chá de
boçais que declamam afetação, enquanto um estupro coletivo acontece na sala ao
lado.
O golpe tem como uma de suas âncoras fundamentais o combate seletivo à
corrupção.
No PT, como se sabe, ela é sistêmica; no resto do sistema ela é
pontual.
Das comportas da Lava Jato emana esse diktat.
Do qual se vale a crispação midiática para irradiar uma indignação
seletiva, sancionada, afinal, pelo coquetel de cumplicidade, cinismo e ajoelhamento
das togas da Suprema Corte.
‘Se fazem isso com uma Presidenta da República, o que será do cidadão comum?’,
arguiu Dilma Rousseff diante da manipulação intrínseca ao golpe do qual é
vítima e para o qual as togas se oferecem como o lubrificante obsequioso.
É esse o bafo frio que arrepia a
consciência democrática da nação e só lhe deixa como janela de ar fresco a rua.
Assiste-se a uma radicalização aberta dos interesses dominantes, na
qual a isenção parece, enfim, não representar mais um valor passível sequer de
ser simulado.
Sugestivo dessa depuração conservadora foi o conselho do ombudsman da
Folha, Vera Magalhães, na nota de despedida do cargo, neste domingo.
Ao criticar a manchete do jornal no day-after da votação na Câmara
(‘Impeachment’, em garrafais idênticas às utilizadas na cassação de Collor,
quando o que foi aprovado dia 18/04 foi a autorização para a abertura do
processo de impeachment), a jornalista sugeriu um pouco mais de ‘comedimento’
ao jornal.
‘Mantenham a aparência, ao menos a aparência, please’, parece ter sido
o seu recado.
Ao que tudo indica, tardio e obsoleto.
Essa era a batalha do dia anterior dos
ombudsman do jornalismo conservador - não há mais espaço para
simulações.
Sobriedade, comedimento, nunca foi o forte do sistema de comunicação
monopolizado do país.
Não será agora que a temperança ecumênica mediará a abordagem das
grandes questões nacionais pelo jogral dos interesses que ele vocaliza.
A rota de colisão entre o noticiário político local centrado na
destruição do governo e do PT, e a denúncia do golpe, predominante da mídia
internacional, dá a dimensão do que se pode e do que não se deve esperar dessa
pata dianteira do galope conservador.
Graças à blindagem jurídico-midiática, a natureza ostensivamente
antipopular, antinacional e espoliativa do golpe pode (por ora) manter-se
mitigada aos olhos da maioria da população.
Cunha e Bolsonaro são tratados como desvios pontuais, quando na verdade
detém representatividade superior àquilo que a palavra excrecência costuma
designar.
A ação violenta que eles personificam já atravessou a soleira da ameaça
para a rua.
A desenvoltura das milícias fascistas, contratadas e pagas por uma
entidade empresarial, a maior do país, a FIESP, foi fartamente documentada na
avenida Paulista, neste final de semana em que a via foi tomada por protestos
contra o golpe.
De novo, não estamos diante de um ponto fora da curva.
O que se desenrola aos olhos de quem quiser enxergar é um ensaio da
violência intrinsecamente indispensável à sustentação da curva de expropriação
de direitos arquitetada pelo compasso do ajuste golpista.
Em dúvida, consulte-se a curva.
O documento ‘Ponte para o Futuro 2 – a Travessia Social’, que o golpe
coloca na praça nestes dias,nasceu da necessidade esquizofrênica de se distrair
a atenção popular, oferecendo-lhe uma cenoura pré-abate, ao mesmo tempo em que
endereça pérolas aos ouvidos da plutocracia e da classe média fascistizada.
Quais pérolas?
Todas aquelas provenientes da concha do Banco Mundial que preconiza a
substituição dos direitos sociais universais por um ‘focalismo’ associado ao
Estado mínimo, ao qual caberá‘fazer mais com menos’.
O Banco Mundial é a mais importante usina de difusão, treinamento e
reeducação neoliberal em ação no planeta.
Crédito não é a especialidade dessa instituição.
O empréstimo oferecido pelo banco funciona apenas como isca para
enredar países, governos, técnicos e burocracias públicas – bem como algumas
ONGs – na obra jesuítica de satanizar o Estado, catequizar e remodelar os
aparatos públicos, converter corações e mentes das elites e tecnocracias
nativas, adestrando-os nas excelências do mercado como remédio para todos os
males.
No Brasil, o Banco Mundial implantou uma bem urdida hegemonia no modo
de pensar de várias esferas do setor público.
Dentro do IPEA , por exemplo –parcialmente remodelado no ciclo de
governos do PT, com Pochmann e agora, com Jessé Souza- formou-se uma tropa de choque de aplicados
discípulos que funcionam como correia de transmissão do pensamento do Banco
Mundial.
Um exemplo arrematado dessa cepa é Ricardo Paes de Barros, apontado
como o ‘fomulador’ do golpe na área da política social.
E o que diz o especialista nas artes do focalismo na entrevista
publicada nesta 2ª feira no Estadão?
Exemplos:
1. ‘é claro que o Bolsa Família está inchado’;
2. ‘com 15% de dinheiro a menos consigo ter o mesmo 100% de redução da
pobreza’;
3. ‘se numa casa de 5 pessoas, o sujeito declara R$10 a menos de renda
própria, o governo vai gastar R$ 50 a mais por mês com essa família’
‘inventou-se essa ideia de que creche é um direito de todos’
‘(quando você arrumar a política) obviamente tem gente que vai sofrer’
O desempregado primeiro terá que conseguir um emprego, para depois ter
direito ao Pronatec...’
Vai por aí a gororoba destinada a tropicalizar os ditames do focalismo,
empanturrando governo e colunistas com inesgotáveis papers que atestam a virtuosa conjunção entre Estado mínimo e
economia máxima com os pobres, em substituição aos direitos do Estado de
Bem-Estar Social.
É justamente esse o sentido da acenada ‘Travessia Social’ de Temer.
Conforme relata o insuspeito jornal Valor, em editorial nesta 2ª feira:
entre as medidas que discutidas pelos assessores mais próximos do
vice-presidente estão a ‘desvinculação das verbas orçamentárias, desindexação
dos gastos sociais da variação do salário mínimo, a reforma tributária, a
flexibilização do mercado de trabalho e a reforma da Previdência Social’.
Um mutirão restaurador da agenda
neoliberal.
O relato do jornalista Paulo Gama, da Folha, publicado neste domingo
sobre o 15º Fórum Empresarial realizado em Foz do Iguaçu, é ilustrativo do
ambiente que impulsiona essa escalada.
O jornal não deu o destaque, a manchete ou o espaço que o assunto justificaria. Mesmo assim, propiciou um
relance ilustrativo do clima de euforia de botim que predomina na divisão de
sesmarias entre os apoiadores e articuladores do golpe.
Nesse circuito puro sangue, palavras como ‘trabalhador’, ‘pobre,’
‘salário’ e ‘direitos sociais’ entram apenas na lista dos problemas, nunca na
relação dos convidados do tucano João Dória Jr, candidato a prefeito de São
Paulo e promotor do encontro de Iguaçu.
Trechos da reportagem da Folha:
‘...apito na mão depois de um longo "priiii" para pedir
silêncio, João Doria Jr, candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo, dava as
boas-vindas a 300 dos maiores nomes do setor produtivo do país e políticos de
oposição-quase-virando-governo que se reuniram, no feriado de Tiradentes, para
quatro dias de seminários e "networking" em Foz do Iguaçu...’
‘. (os articuladores do golpe presentes eram) ... Romero Jucá
(PMDB-RR), o elo de Michel Temer com o setor empresarial, José Agripino (RN),
presidente do DEM, e os tucanos Cássio Cunha Lima (PB) e Antônio Anastasia
(MG), o relator do processo de deposição de Dilma Rousseff no Senado’.
‘Além de Jucá, o resort recebeu Rodrigo Rocha Loures, assessor do
peemedebista na Vice-Presidência, e Gaudêncio Torquato, consultor e
estrategista de longa data do presidenciável’.
‘...os convidados andam com crachá de identificação pendurado "à
altura do plexo". O de Rocha Loures já o indicava como assessor da
Presidência, não mais da Vice...’
‘Jucá passou os dois dias em que esteve no encontro recebendo demandas.
De deputados que queriam ser ouvidos para a formulação da política econômica do
possível governo, já dado como certo, a empresários e consultores que queriam
fornecer estudos e avaliações –além de saber que rumo tomaria o início da
gestão’.
‘Nas palestras abertas, o governo Dilma era tratado por políticos e
empresários como "nefasto" e "avesso ao lucro".
Esse é o ponto do desmonte em que nos encontramos.
Empenhados centuriões se esfalfam para despejar na fornalha do “ajuste”
e da “retomada da consistência macroeconômico” o estorvo que sujou o mercado e
a boa teoria nos últimos 13 anos.
Inclua-se nessa montanha desordenada de entulho: 60 milhões de novos
consumidores ingressados no mercado, a cobrar cidadania plena;um salário mínimo
70% maior em poder de compra;um sistema de habitação popular ressuscitado; bancos
públicos a se impor à banca privada; uma Petrobras e um BNDES fechando as
lacunas da ausência de instrumentos estatais destruídos no ciclo tucano etc.
A faxina requerida é tão virulenta que necessita árduo trabalho de
escovão e detergente ideológico para dissolver a resistência alojada em
estruturas de consumo, serviços e participação política instituídas para
atender a 1/3 da sociedade e não a sua totalidade.
O fato é que o golpe se depara aí com uma montanha de tamanho e
resistência muito superior ao poder destrutivo do politicídio imposto ao PT
pelo juiz Moro e seus assessores de vazamento na mídia.
O ciclo iniciado em 2003 tirou múltiplas dezenas de milhões de
brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos na pirâmide de renda.
Os novos protagonistas formam hoje a maioria da sociedade.
Lula criou um novo personagem histórico – ainda que não um protagonista
da própria história (seu erro capital).
A presença desse personagem em fraldas, de qualquer forma, dificulta
sobremaneira rodar o software conservador no botim festivo da plutocracia e do
conservadorismo.
Devolver a pasta de dente ao tubo requer uma assepsia repressiva
dificilmente realizável em ambiente de liberdades democráticas.
A espinha de peixe na garganta do golpe não deixa de cutucar também a
omissão histórica da agenda progressista.
Hoje ela enfrenta suas provas cruciais, sem dispor de base organizada,
nem de instrumentos indispensáveis para isso - entre os quais, um sistema de
comunicação plural e ecumênico.
Se há tempo para providenciá-los no longo e traumático ciclo de
enfrentamento deflagrado a partir da reeleição de Dilma, em outubro de 2014, só
a história dirá.
O terreno é mais adverso que nunca e os blindados da crise e do
conservadorismo avançam para um enfrentamento de vida ou morte.
Sim, há autocrítica a fazer e equívocos a corrigir. Todos aqueles em
debate e mais alguns que não interessa à emissão conservadora contemplar.
Mas só há duas formas de descascar o abacaxi.
Uma, implica a construção democrática de linhas de passagem negociadas
para um novo estirão de crescimento ordenado pela justiça social.
A outra preconiza simplificar a tarefa, terceirizando o timão à
“racionalidade” dos livres mercados.
É o arrocho.
A escolha conservadora dispensa o penoso trabalho de coordenação da
economia pelo Estado, ademais de elidir a intrincada mediação política dos
conflitos inerentes às escolhas do desenvolvimento.
Sua receita pressupõe replicar aqui a panaceia neoliberal que
depauperou o mundo do trabalho nos EUA e desmontou o Estado do Bem-Estar Social
na Europa.
Com as consequências sabidas.
Embora o ‘jornalismo isento’ afirme que a crise da Petrobrás é fruto do
aparelhamento ‘lulopetista, a verdade é que se vive desde 2008 a mais longa,
incerta e frágil recuperação de uma crise do sistema capitalista desde
1929.
Com uma agravante aqui: em uma
sociedade na qual não existe a gordura do Estado de Bem-Estar Social-apesar de
Paes de Barros considerar que o Bolsa Família está ‘inchado’- será preciso
cortar no osso.
O osso dos mais pobres.
Reconduzindo-os para uma invalidez de direitos apenas esboçados.
São os albores dessa batalha cruenta que explicam a presença armada de
porrete dos bate-paus da FIESP em autonomeada fiscalização ideológica da rua
mais importante na principal cidade do país.
A mãe de todas as batalhas gira em torno dessa questão. A questão do
método de repactuação do desenvolvimento brasileiro.
Golpe e porrete? Ou mais democracia e a construção negociada do passo
seguinte do desenvolvimento?
Quem opta pela segunda alternativa não pode faltar neste domingo, no
Anhangabaú, em São Paulo, no 1º de Maio em defesa de Dilma, da legalidade e dos
direitos sociais.
O regime de força já respira entre nós.
A democracia ainda não expirou, mas carece de nervos e musculatura que
só a largueza das ruas poderá propiciar-lhe.
www.cartamaior.com.br26/04/2016
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