Está
claro que um sistema político que fica refém de Cunha precisa ser reinventado
com maior participação social. O ciclo iniciado em 2002 negligenciou isso.
Saul Leblon
Um golpe não começa na véspera; tampouco tem desdobramentos plenamente
identificáveis na manhã seguinte.
Uma derrota progressista pode ser devastadora para o destino de uma
nação, a sorte do seu povo e a qualidade do seu desenvolvimento.
Mas a resistência que engendra pode inaugurar um novo marco de
consciência política.
Pode redefinir a correlação de forças, as formas de luta e de
organização e colocá-las num patamar mais avançado, mas não menos abrangente.
Apesar dos votos dedicados à
família, a Deus e até a um torturador –Bolsonaro ofereceu sua escolha a
Brilhante Ustra e ao golpe de 64 - a transparência da história pulsou forte no
Brasil na noite de 17 de abril de 2016.
Guardadas sóbrias exceções, os que condenaram Dilma filiam-se a agendas
e valores imiscíveis com o mapa histórico que desponta da Revolução Francesa e
fez dos direitos sociais universais o guia generoso e libertário da humanidade.
A violência conservadora, como ocorre em todos os golpes contra
governos progressistas, apunhalou a democracia para atingir o interesse
popular.
Mais adiante tentará aleijar a soberania nacional descartando-a como
anacronismo populista.
A ética, a responsabilidade fiscal, serviram de guarnição das
aparências.
O golpe nasceu de um ménage à
trois entre a escória liderada por Cunha, o ódio inoculado pela mídia na
classe média e o plano de arrocho e entreguismo do PSDB.
O cinismo foi o grande vencedor da jornada triste que banhou o país de
lufadas adicionais de incerteza e turbulência.
Votos decisivos ao impeachment ‘por irresponsabilidade fiscal da
Presidenta da República’ vieram das bancadas –inclua-se a do PSDB - que
patrocinaram as pautas bombas, estas sim suficientes para quebrar a nação.
E não é necessário desfiar o prontuário completo do operador Eduardo
Cunha, para adicionar ao cinismo a hipocrisia.
Hipócritas de punhos de renda –jornalistas, políticos, intelectuais,
ministros do STF - assistiram a todo esse processo emprestando pertinência
formal ao estupro coletivo da democracia na arena das bestas-feras.
Por mérito, a cusparada histórica do deputado Jean Wyllys num fascista
que o insultara - e que homenagearia um torturador e o golpe de 64 no seu voto
pela derrubada da Presidenta Dilma-, deveria ser estendida aos demais
protagonistas do espetáculo degradante.
Entre eles, certamente a mídia.
Coube a ela amalgamar o movimento regressivo de longas raízes
históricas que se prepara agora –afastado o obstáculo inicial- para assaltar a Constituição Cidadã naquilo
que ela fez de melhor: legitimar os
direitos sociais reprimidos pela ditadura 24 anos antes da sua promulgação, em
novembro de 1988.
Faz parte do jogo de espelhos que Temer jure fidelidade ao Bolsa
Família, a exemplo do que já prometera ao mandato de Dilma, pouco meses atrás.
O fato é que os acontecimentos em marcha vieram reafirmar a rigidez da
fronteira onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado com o projeto de
construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta e
principal referência da luta pelo desenvolvimento no mundo ocidental.
‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo está disposto a
conceder’, martelou diuturnamente o jogral midiático, em todo o ciclo iniciado
em 2002.
O alvo da reação alérgica do mercado são os direitos sociais abrigados
na Carta de 1988, a qual o PT criticou na origem, pelas limitações (a questão
agrária, uma das mais graves), mas da qual se fez o mais fiel guardião quando
chegou ao poder.
O mercado entendeu que a crise econômica global –diante da qual o
governo esgotou o fôlego dos contrapesos fiscais em cinco anos de resistência-
abriu a oportunidade para um acerto de contas com o ‘populismo constituinte de
1988’.
O senso de oportunidade uniu a escória política, a mídia, o dinheiro
grosso local e internacional e os sem voto num pacto feito de sistemas de
compensações complementares.
Esse que agora se desenha abusadamente aos olhos da sociedade, abençoado
pelo jornalismo da indignação seletiva.
Cunha terá sua anistia, em troca de devolver o poder pleno ao mercado
-via corrupção política da qual se acusa o PT.
O PSDB volta ao poder sem precisar se submeter à urna.
O STF, depois de se acoelhar de forma indecente na preservação do livre
movimento de Cunha, poderá falar grosso com Moro, e assim encerrar a Lava Jato.
A Chevron e a Shell terão o pré-sal prometido por Serra e pelo PSDB; a
Globo renovará sua concessão facilmente a partir de 2018...
Vai por aí a engrenagem posta em funcionamento, a partir do domingo 17.
O ciclo em que o golpismo tratará a democracia social como um estorvo
do mercado está longe de se encerrar com a conclusão do processo do
impeachment.
A lambança, por mais que gere uma euforia imediata nos mercados
especulativos, não resolverá as grandes pendências nacionais, emolduradas por
um pano de fundo desafiador.
O mundo vive a mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise
capitalista desde 1929.
Tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho no período anterior à
explosão as subprimes, em 2008 –regulações, direitos, soberania etc., mostra
agora a sua falta.
Desprovida de alavancas contracíclicas, a economia global não decola e,
nesse momento, arrasta nações em desenvolvimento para o ralo corrosivo da
estagnação.
Sobram paradoxos.
O da superprodução de capital fictício, em metástase especulativa, o
mais evidente deles.
Mas também a sua consequência estrutural: a anemia do investimento e do
emprego urbi et orbi.
Ficções de livre comércio rondam esse cemitério de nações.
Vendidas como panaceia pelos carrascos dos direitos sociais, os
chamados ATCs prometem uma prosperidade que o sistema não pode entregar em
condições de contração global, quando o comércio forma um jogo de soma zero,
apenas transferindo desempenho de um lado para outro.
Igual circularidade se observa na esfera do emprego e naquela do ajuste
fiscal, com o deslocamento de passivos do setor privado para o Estado.
Golpistas falam pelos cotovelos da 'irresponsabilidade fiscal petista'.
Ignoram que a pressão adicional de gastos em uma conjuntura de queda vertical
da receita, elevou de 78% para 105% a relação dívida pública/PIB nas economias
mais ricas desde 2008.
Em contrapartida, a participação dos salários no PIB global recuou:
hoje é 10% inferior à média dos anos 80.
É essa a lição de casa das ditas pedaladas, que os excelentíssimos
senhores deputados fingem não enxergar.
Da mesma forma que os sábios dos mercados omitem a relação causal que
estreitou sobremaneira a margem de manobra de políticas associadas a projetos
de desenvolvimento com repartição de renda na América Latina.
O Brasil avulta como o caso mais exposto justamente porque foi o que
mais longe chegou nesse processo.
Como atesta o Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre
2001 e 2013, passando de 13,6% para 4,9% da população.
A queda nos preços das commodities - decorrente da estagnação gerada
pela desordem neoliberal-interrompeu
esse processo, antes que o país tivesse tempo de corrigir as distorções aí
engendradas (sobrevalorização cambial e desindustrialização, as mais graves
delas).
Aberto o flanco, a coalizão conservadora lançou-se ao golpe de Estado,
com determinação virulenta que estamos assistindo. Não sem antester imposto,
através da mídia, o seu diagnóstico e a
sua pauta -respectivamente, gastança e arrocho- como referência dominante do
debate sobre a crise capitalista do nosso tempo.
Não é surpresa que as ideias dominantes de uma época sejam as ideias
das classes dominantes.
Desde 1846, quando Marx e Engels assentaram seu vigamento filosófico
nas páginas de ‘A ideologia alemã’, o peso material das ideias ganhou o devido
destaque na luta de classes.
No Brasil,graças ao monopólio midiático, esse poder de agendamento
tornou-se asfixiante.
Um conservadorismo derrotado em 'quatro vezes consecutivas pelo voto
popular desde 2002,transformou-o na ferramenta decisiva de desconstrução de um
adversário que não se guarneceu de forma equivalente para esse enfrentamento.
O episódio das ditas pedaladas evidencioudificuldade de se defender do
algoz, sem romper o círculo de giz que
ele traçara no chão.
Por que o governo hesitou tanto, por exemplo,em convocar imediatamente
uma rede nacional e explicar o que as
ditas 'pedaladas' representavam de fato?
Ou seja, que a Caixa quitou programas sociais em dia, sendo ressarcida
em seguida - sem alterar o orçamento, portanto.
Por que o governo não escancarou imediatamente o golpismo intrínseco à
‘escandalização’ da operação contábil corriqueira, com fins sociais irrepreensíveis?
E por que temeu confrontá-la com a derrama dos juros (8% do PIB) sobre o cofre
do Estado – escândalo que nenhum advogado do ajuste fiscal argui?
Em 757 dias úteis, até o final de 2014, o saldo do Bolsa Família na CEF
só ficou negativo em 72 dias. O pagamento de juros aos rentistas da dívida
pública, no entanto, drenou o equivalente a mais de 15% do PIB nesses quase
dois anos, deslocando recurso fiscal escasso para os cofres abarrotadosda
pátria financeira.
Os que golpearam Dilma ‘em nome
do povo’ no domingo 17, avocariam esse mandato se o povo verdadeiro tivesse
sido alertado sobre as disputas fiscais efetivas no caixa da República?
‘Governo é metade realizações, metade ideia. Por muito que fizer, um
governo que não trava a luta das ideias, sempre figurará aos olhos da sociedade
com quem fez muito pouco’, lembrou em recente viagem ao Brasil, o vice
presidente da Bolívia, Álvaro García
Linera.
A negligência com a luta das
ideias foi a tônica nos últimos 12 anos de avanços notáveis no plano social,
embarcados, todavia, em um economicismo que delegou às gondolas dos
supermercados a tarefa de traduzir tais conquistas em mudança na correlação de
forças.
A democracia, portanto, não se tonificou de novos protagonistas, nem de
novos canais de participação. Manteve-se refém de um Congresso capaz de
produzir e legitimar um déspota como Eduardo Cunha - a quem coube, afinal,
fazer o ajuste de contas entre as duas realidades.
O economista Márcio Pochmann enxergou pioneiramente os riscos implícitos
na assimetria entre avanços econômicos e sociais desprovidos do respectivo
cimento organizativo e ideológico.
‘Cerca de 22 milhões de trabalhadores ascenderam socialmente, desde
2003,’ lembrava ele já em 2013, ‘mas não
houve mudança na taxa de sindicalização no país: de cada dez destes
trabalhadores, só dois se filiaram a algum sindicato. O mesmo aconteceu com os
estudantes beneficiados pelos programas do governo federal e com os
beneficiários do Minha Casa, Minha Vida’, espetou na sua lista dos antecedentes
da tormenta, que por fim eclodiria já na campanha de 2014, ainda assim
subestimada.
Marilena Chauí - já se observou neste espaço - que sempre atuou na
contracorrente da rendição ideológica dos últimos anos, ensina que ‘a ideologia
é o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas
as classes sociais’.
‘Esse fenômeno’, diz a filósofa, ‘de manutenção (adoção) das ideias
dominantes, mesmo quando se está lutando contra a classe dominante,é o aspecto
fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da
classe dominante’.
Por isso ele dizia que, se num determinado momento os trabalhadores de
um país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, por exemplo, a
primeira coisa a fazer é redefinir toda a ideia de nação (...) e elaborar uma
ideia do nacional que seja idêntica à de popular.
‘Precisam, portanto, contrapor, à ideia dominante de nação, outra ideia,
popular, que negue a primeira’, sintetiza Chauí.
O ciclo golpeado no domingo 17 esteve longe de proceder a essa mutação.
Está claro que um sistema político que fica refém de Cunha e de sua
matilha precisa ser revitalizado com maior participação social.
Se quiser implodir a resiliência golpista, as forças progressistas
terão que se atirar de forma unida nessa tarefa, dotando a luta pelo
desenvolvimento de um projeto social e democrático que a conduza.
Se o fizer, a derrota do domingo poderá ser revertida muito mais cedo
do que supõe a histeria de um golpismo eufórico, mas incapaz de oferecer aos
desafios brasileiros mais do que a aposta dobrada em um
neoliberalismomundialmente fracassado.
www.cartamaior.com.br
18/04/2016
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