Roland Gori: 'Diante do terror, o desafio é manter a esperança e pensar no futuro'
O psicanalista francês insiste na necessidade de tratar a doença, a guerra neoliberal de todos contra todos, e não apenas este o terrorismo.
O psicanalista francês enfatiza a necessidade de manter a tranquilidade diante da tentativa de desestabilização gerada pela "fábrica do terror" que atravessa nossa vida cotidiana com novos "teofascismos". Para além das medidas de proteção e vigilância, ele insiste na necessidade de tratar a doença, a guerra neoliberal de todos contra todos, e não apenas este seu sintoma mais horrível.
Após o atentado de Nice, em 14 de julho, ataques nos transportes e num festival de música na Alemanha, foi a vez da igreja de Saint-Étienne-du-Rouvray, perto de Rouen. O que dizer sobre as duas últimas semanas de horror?
ROLAND GORI: Meu primeiro sentimento é de tristeza e atordoamento. Mas não de surpresa. Estou triste porque a ideia de pessoas mortas em um momento de recolhimento, de esperança e de promessa é horrível e assustadora. Atordoado porque é um choque. As palavras e tudo o que pudermos dizer estará muito aquém da emoção que sentimos. Mas não estou surpreso, como já disse e escrevi. Esta forma de jihadismo, que é basicamente uma guerra extrema ao Ocidente em geral, e em particular à Europa, considerada como o ponto fraco, é parte de uma estratégia teorizada por Abu Musab Al Suri. No final de 2004, ele lançou um apelo por uma suposta revolução mundial islamista, convocando todas as populações muçulmanas contra as outras populações. É um chamado à guerra civil em escala mundial. E é uma nova estratégia que utiliza cidadãos locais para atacar e derrubar os governos liberais na Europa ou mais tirânicos, em outras regiões, e mesmo de outras orientações muçulmanas, como xiitas ou da Irmandade Muçulmana, por exemplo. Esta estratégia é posta em prática há mais de dez anos, com muitos casos de sucesso na fábrica do terror.
Em que consiste esta fábrica de terror?
Este é o desafio de todos os governos do mundo hoje. É a fábrica do terror que surge do ordinário, do cotidiano, que o promotor Molins chama de "terrorismo de proximidade". Eu chamaria de “uberização” das técnicas de destruição, de aniquilamento e de terror. Qualquer um pode transformar qualquer objeto em uma arma de guerra. O terror pode surgir de qualquer lugar do mundo e em qualquer momento da existência. Na Promenade des Anglais durante os fogos de artifício, nos terraços de cafés, em shows, igrejas etc. Qualquer lugar, em sua banalidade, pode se tornar cena de tragédia. É uma forma de desestabilizar os cidadãos e os governantes. Sinagogas, igrejas, mesquitas, escolas, hospitais serão equipados com aparatos de segurança... No fim, tudo estará securizado, vigiado. E ao mesmo tempo, nada estará completamente seguro já que o terror pode surgir em qualquer lugar da vida cotidiana. É isso o terror! O terror não é o medo objetivo que mobiliza uma reação previsível. Quando se dirige, é preciso ter uma disposição psíquica de vigilância e preparo para enfrentar algum tipo de perigo, que pode ser grande ou pequeno. Mas o que desestabiliza é a emergência de uma ameaça a qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer lugar, por qualquer pessoa e com qualquer método. É preciso perceber que é um desafio político geral, mas especialmente à democracia. Um desafio a uma sociedade da mercadoria e do espetáculo.
Estes ataques nos empurram para uma agenda que já não podemos controlar?
Vemos bem como a mídia e os políticos são levados por uma estratégia da emoção e da reação imediata. Pode-se perguntar até que ponto nós não caímos na armadilha preparada pelo Estado Islâmico. Será que o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e o Ministro do Interior devem todos se dirigir às cenas das tragédias? Não tenho uma resposta pronta, mas temos de pensar e refletir sobre as respostas políticas em uma situação de crise absolutamente trágica. Esse Big Brother do terror horror é a forma como alguns indivíduos obtêm o reconhecimento social que não obtêm em nenhum outro campo. Estamos confrontados a uma lógica de informação calcada na lógica do mercado: a audiência. Será preciso se debruçar e refletir sobre isso, e saber se a melhor posição será dar publicidade ao assassino.
Os grupos terroristas invocam a religião nestes assassinatos em massa. Como compreender essa instrumentalização?
Em meu livro L’Individu ingouvernable [O indivíduo ingovernável (1)], chamei de "teofascistas" esses grupos terroristas que querem fazer uma revolução conservadora internacional através de uma minoria ativa e sangrenta impossível de ser parada. Eles não têm nenhuma moral e nenhuma sensibilidade. Pelo contrário, fazem apologia da crueldade e de sua espetacularização. Já vimos isso antes. Foi chamado de fascismo. Quando falo de "teofascismos", não me refiro a formas específicas de doutrinação, mas a esses movimentos revolucionários conservadores que aparecem no "claro-escuro" de uma crise de civilização, no caso a da democracia liberal. Diante de uma civilização materialista que incorpora os valores do comércio, das finanças, da técnica, da razão prática, todos os esquecidos do mundo buscam alternativas, e especialmente quando as alternativa progressistas como o comunismo, o socialismo, o humanismo têm muita dificuldade em ser aceitas pelo povo. Não existe um perfil padrão. Não são apenas populações oprimidas que se entregam ao Estado Islâmico, nem apenas os jovens da periferia. Há também os jovens convertidos oriundos da classe média! Por outro lado, podemos definir as condições para o surgimento de tais movimentos, que para mim lembram estranhamente os movimentos nacionalistas, antissemitas, populistas, do fim do século XIX e os partidos formados no período entre guerras. Mas comparação não é algo exato. É uma analogia. Em todos os três casos de crimes fascistas ou nazistas, de pogroms antissemitas ou de crimes dessas seitas sanguinárias, há algo em comum: a crise dos valores e práticas liberais. Não acredito que a motivação seja a religião. A roupagem e a retórica religiosa dão sentido e direção para assassinatos em massa que são determinados por muito mais coisas do que a questão religiosa ou ideológica. Da mesma forma que o nacionalismo não é necessariamente amor pela nação e pela pátria, o jihadismo hoje não é necessariamente amor pelo Islã.
A questão hoje, tanto para aqueles que creem quanto os que não creem, é tentar encontrar, juntos, uma resposta progressista e humanista para este terror... Mas como?
Fomos tão longe no desencantamento do mundo e na dessacralização do universo, das coisas e dos seres vivos ao nosso redor, que enfrentam agora a nudez de uma razão puramente instrumental. O terrorismo, alás, também cai nesta racionalidade instrumental, uma vez que ele está disposto a queimar tudo a sua volta para alimentar o combustível do terror. Eles pertencem à mesma civilização, especialmente no que diz respeito a certa lucidez feroz na concepção do mundo atual. Esta perda de sentido da existência, de direção e de valores. Esta perda de moral e de inteligência crítica do mundo é o que alimenta tanto a guerra de todos contra todos no mercado da competitividade e da flexibilidade, o que destrói as proteções e promove o surgimento de uma revolução conservadora, que pertence ao mesmo nicho cultural que a ascensão da extrema-direita, dos racismos, dos nacionalismos etc. Perdemos a razão de ter esperança. Ora, é preciso devolver à juventude motivos para esperança, que devem se basear em promessa e confiança. Deste ponto de vista, a política falhou. Em minha opinião, é necessário reinventar a democracia através do humanismo, isto é, através da promoção de valores que coloquem as pessoas no centro das políticas. Montesquieu afirmou que a característica das ditaduras e tiranias era governar através do terror. O perigo hoje é que as democracias aumentam as medidas de segurança e chegam a perder sua alma de liberdade e confiança. Depois do Pacto de Estabilidade, tivemos o Pacto de segurança. Agora proponho o Pacto de humanidade. A visão neoliberal do ser humano, a lógica da austeridade, a financeirização generalizada das atividades humanas têm criado esses monstros como o Estado Islâmico, a Frente Nacional, a extrema direita e o racismo na Europa. Temos de dar um basta ao neoliberalismo, devemos decretar a sua morte. Ele aumenta as desigualdades sociais e as divisões.
Que respostas podemos dar diante deste desafio?
Não há uma resposta única. É preciso, obviamente, dar segurança à população diante de ameaças cada vez mais sangrentas. O familiar torna-se cada vez mais ameaçador. Esta perda de estabilidade interna pode levar à pior das catástrofes e a reações terríveis e racistas ou a estratégias autoritárias. Ao mesmo tempo, não se pode subestimar a necessidade de proteção e de segurança das populações. Mas estas medidas de vigilância são insuficientes. Elas tratam o sintoma, mas não a doença. Repito: é no claro-escuro da crise do neoliberalismo que nascem esses monstros. Devemos lembrar que nosso ambiente social, cultural, simbólico, material também pode trazer segurança. Consideremos um exemplo. Acho terrível que o estado de emergência tenha sido estendido no mesmo momento em que passou quase sem reações a lei El Khomri com o 49-3 (2). Com esta lei, criamos uma divisão, um dissenso na opinião pública, criamos um fosso entre o governo e a opinião pública. É uma medida de insegurança. A segurança é, também, proteção social, saúde, educação, cultura, justiça etc. Quando ouço a oposição defender o reforço das medidas de segurança enquanto diminuem os efetivos do serviço público, acho obsceno. Isto faz parte justamente da sociedade do espetáculo, que desacredita completamente o discurso político. Desta perspectiva, é preciso que a política recupere o valor da palavra. Isso envolve tomar decisões e não apenas submeter sua decisão a indicadores quantitativos de desempenho econômico e financeiro ou de pesquisas de opinião. Reabilitar a palavra é ter a capacidade de dizer a verdade, não simplesmente fazer declarações de responsabilidade limitada aos canais de televisão. Mas dar razões para esperança, para pensar no futuro. Viver sem futuro, dizia Camus, é viver como cães confinados entre quatro paredes. É preciso restabelecer "a linguagem da humanidade”. Para citar novamente e parafrasear o escritor que falava desta "eterna confiança que faz um homem lembrar que ele pode tirar de outro homem relações de humanidade" a partir do momento em que alguém fala a "linguagem da humanidade". A cultura tem grande importância, a arte e tudo o que pode ser considerado como religião leiga, no sentido de ligar as pessoas. Quando não estão ligadas, estão em um deserto. Estão solitárias, desesperadas, prontas a se atirar nos braços de qualquer um para encontrar uma identificação. Estar juntos significa que não corremos risco. Pode-se sempre encontrar um maluco que atire em você, um chamado fanático religioso pode se explodir, mas a presença do outro tranquiliza-nos sobre a maneira de estar no mundo. Deste ponto de vista, é preciso repensar totalmente as maneiras de governar. Na Europa, precisamos fazer o que Stefan Zweig chamava de "desintoxicação" e repensar a Europa, não a partir de um dispositivo para fazer negócios, mas como um lugar de história, de cultura compartilhada e assim construir uma "fraternidade europeia", como dizia Victor Hugo em 1848. Apenas uma fraternidade europeia poderá enfrentar o desafio da modernidade.
Muitos falam de "choque de civilizações" e gostariam de embarcar em uma guerra religiosa.
Gostaria de lembrar uma frase extraordinária em que Zweig cita Sebastien Castellion, protestante que se opôs a Calvino após o assassinato de Miguel Servet. Faço esta referência para lembrar que não há só o Estado Islâmico. Podemos ter grupos audaciosos que reivindicam uma doutrina ou um dogma para impor o terror em uma cidade ou um país, hoje, no mundo inteiro. Zweig retoma Castellion: "Matar um homem não é defender uma doutrina: matar um homem é, antes de tudo, um homicídio”. O que vemos hoje não são guerras de religião ou de civilização. Estamos diante de algo da ordem do assassinato e estes assassinatos têm relação estreita com as paixões niilistas de uma era que esqueceu justamente os grandes valores do humanismo, valores estes que não são específicos do Ocidente, mas sim compartilhados por muitas culturas e civilizações.
Tradução de Clarisse Meireles
O psicanalista Roland Gori é criador do movimento cidadão Appel des appels, que recusa a avaliação dos serviços públicos através de indicadores de performance econômica
(1) Editora Les Liens qui Libèrent (2015)
(2) N.da T: a reforma das leis trabalhistas na França foi aprovada pelo Executivo por decreto diante da hesitação da Assembleia de deputados francesa, um método excepcional de aprovação de leis polêmicas e\ou consideradas urgentes – e considerado por muitos como pouco democrático.
Créditos da foto: Elysee
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