29/04/2016 00:00 - Copyleft
José Carlos Peliano*A loucura do coração
'Nise - o coração da loucura' é um filme que deve fazer parte do ensino e pesquisa das universidades brasileiras tanto na área artística quanto médica.
Um sinal do coração basta para que se abra um paraíso ou um inferno. Um limbo talvez se a batida paradisíaca ou infernal, irrompendo-se de repente e ao mesmo tempo, for do mesmo tom e intensidade, quando uma se contrapõe à outra. Esta é a sintonia-espera-distonia, a loucura, de cada coração no decurso de sua sinfonia quotidiana.
Nise: o coração da loucura, filme dirigido por Roberto Berliner, leva o coração a descompassar nos três estados evocados. As sequências de cenas transportam sentimentos de um lado a outro da tríade. Um rio de três margens ao se abrir um vértice de terra no meio do leito principal.
Enquanto o coração navega por esse rio, às vezes sombrio, outras ensolarado, muitas vezes caleidoscópico, quase nunca apaziguado, a tela se faz coração e pulsa pelos personagens que se encontram e desencontram entre si através de seus conflitos internos. Densamente povoados.
De fato, o filme se intromete no interior dos espectadores, em cada coração, e cada espectador ao revés vê seus sentimentos reverberados na tela. Uma conjugação de sentimentos visuais e sanguíneos na sequência de um roteiro limpo, exato, doce e seco, tateando como convém na busca da expressão da loucura.
Nise era bem assim. Limpa, exata, doce e seca, mas da textura do outono aprazível, não a do inverno cortante. Não era de poses melodramáticas, superficiais, contidas ou abundantes. Dizia muito em pouco. Seus olhos eram o mapa de seu coração, além de seus gestos largos ao se estenderem no trato do outro para compreender e enlaça-lo.
Uma folha seca saída do galho de uma frondosa árvore. Desce lenta, suave, tranquila, ave sem asas. Até se deitar mansamente no solo. Na verdade, o solo a espera desde seu desprendimento para acolhe-la de corpo inteiro. Admirado. Ninguém passou por Nise sem ser aguilhoado no doce ou no seco.
A face doce e a face seca disputavam lugar em Nise. O filme consegue mostrar esse enigma, rico enigma, humana composição, que a fez de uma pequena e frágil mulher ser imensa, inigualável, grandiosa, ainda que simples, amiga, companheira, ouvinte.
Glória Pires incorporou Nise no que ela tinha de mais substancial: a intuição da certeza nas coisas que acreditava e fazia acontecer. Uma glória de atriz, também simples, direta, econômica de gestos, mas transbordante de expressões. Uma interpretação marcante.
A batalha de Nise com o corpo psiquiátrico do Hospital do Engenho de Dentro foi um dos grandes marcos de sua vida. Uma flor agreste em meio a uma manada de búfalos. A humanidade viva, cristalina, em ebulição, contra a desumanidade dos choques elétricos, as lobotomias, o descarte da vida.
Berliner consegue transpor à tela a viral e descabida prepotência da classe médica diante de qualquer novidade clínica, fora dos padrões imperiosos estabelecidos, mesmo que singela, pura, criativa. Que se torna exuberante ao fim ao trazer dos recônditos da alma humana, ou de onde sabe-se lá de onde, a linguagem esquecida, atordoada, imersa, da dignidade humana, do amor nas pontas dos pinceis e dos dedos dançarinos.
Os atores que interpretaram os pacientes, ou clientes, ou internos, conseguiram transmitir as subjetividades de cada um. Realidades díspares, fragmentadas, sofridas, com o liame comum da vivência sem relógio, intervalo, sequência. Mas de um turbilhão no cruzamento conflituoso de ontem, agora e quando?
Todos acompanham o espírito da estória. A rebeldia, a tenacidade e a força de Nise perpassa por todos os atores. Uma bandeira de luta, persistência e emponderamento vai tomando corpo ao longo do filme, levando junto os espectadores. Uma união ao final.
Algumas salas de projeção presenciaram palmas quando terminou o filme. Outras muitos comentários e expressões ao longo da projeção. Na que eu estive, em São Paulo, uma plateia inquieta. Muitos ficaram para ver por fim os créditos do filme na tela. Até escurece-la por completo.
No mínimo, um filme que remexe com as pessoas, seus sentimentos, nossas fragilidades e fortalezas humanas. No máximo, um soco no estômago por nos mostrar o papel fulminante que Doutora Nise da Silveira desempenhou em sua vida em prol da vida dos internos. Teve o mérito de ter seu trabalho reverenciado por Carl Gustav Jung.
Considerados pela visão psiquiátrica convencional irrecuperáveis, escória da sociedade, tornam-se os internos verdadeiros artistas da pintura, reconhecidos, nada mais, nada menos, pela abalizada opinião do grande crítico de arte e literatura da época, Mário Pedrosa.
A vida médica de Nise, trazida ao conhecimento do grande público brasileiro pelo filme de Berliner, ressuscita com brilhantismo a atuação profissional de uma profissional responsável e de fibra. E do mesmo modo de humanismo e compaixão.
Além de servir o filme de libelo contra tendências conservadoras que ressurgem na sociedade médica brasileira, pretendendo trazer de volta os instrumentos de incapacitação total de internos sob o manto falso e hipócrita de avanços técnicos e científicos no tratamento de esquizofrênicos crônicos.
Nise lutou sozinha contra o sistema estabelecido na psiquiatria dos meados do século passado. Como a folha seca do outono. Dura quando preciso entre os pares, mas afetuosa quando sempre no convívio com os internos. O afeto que se encerra em nosso peito juvenil, levou Nise a compor o hino nacional dos brasileiros do Hospital de Engenho de Dentro. Hino de liberação, descobrimento, vida e comunhão.
Coube a Berliner e sua equipe tão bem resgatar a vida dessa brasileira inesquecível. Eu, como amigo dela, socialistamorena.com.br/nise-o-gato-e-… %u22C, senti-me presenteado com o filme. O rigor do roteiro e a sobriedade da direção não deixaram de me emocionar ao recordar todo o tempo que com ela convivi.
Um filme que deve fazer parte do ensino, pesquisa e didática das universidades brasileiras tanto na área artística quanto médica. No conhecimento científico brasileiro cabe um lugar exponencial o trabalho de Nise. Cujo maior mérito foi o de resgatar o princípio segundo o qual para se tornar igual ao seu semelhante, sem querer ser mais, nem menos, cada um deve respeitar as diferenças e com elas conviver.
*colaborador da Carta Maior
Nise: o coração da loucura, filme dirigido por Roberto Berliner, leva o coração a descompassar nos três estados evocados. As sequências de cenas transportam sentimentos de um lado a outro da tríade. Um rio de três margens ao se abrir um vértice de terra no meio do leito principal.
Enquanto o coração navega por esse rio, às vezes sombrio, outras ensolarado, muitas vezes caleidoscópico, quase nunca apaziguado, a tela se faz coração e pulsa pelos personagens que se encontram e desencontram entre si através de seus conflitos internos. Densamente povoados.
De fato, o filme se intromete no interior dos espectadores, em cada coração, e cada espectador ao revés vê seus sentimentos reverberados na tela. Uma conjugação de sentimentos visuais e sanguíneos na sequência de um roteiro limpo, exato, doce e seco, tateando como convém na busca da expressão da loucura.
Nise era bem assim. Limpa, exata, doce e seca, mas da textura do outono aprazível, não a do inverno cortante. Não era de poses melodramáticas, superficiais, contidas ou abundantes. Dizia muito em pouco. Seus olhos eram o mapa de seu coração, além de seus gestos largos ao se estenderem no trato do outro para compreender e enlaça-lo.
Uma folha seca saída do galho de uma frondosa árvore. Desce lenta, suave, tranquila, ave sem asas. Até se deitar mansamente no solo. Na verdade, o solo a espera desde seu desprendimento para acolhe-la de corpo inteiro. Admirado. Ninguém passou por Nise sem ser aguilhoado no doce ou no seco.
A face doce e a face seca disputavam lugar em Nise. O filme consegue mostrar esse enigma, rico enigma, humana composição, que a fez de uma pequena e frágil mulher ser imensa, inigualável, grandiosa, ainda que simples, amiga, companheira, ouvinte.
Glória Pires incorporou Nise no que ela tinha de mais substancial: a intuição da certeza nas coisas que acreditava e fazia acontecer. Uma glória de atriz, também simples, direta, econômica de gestos, mas transbordante de expressões. Uma interpretação marcante.
A batalha de Nise com o corpo psiquiátrico do Hospital do Engenho de Dentro foi um dos grandes marcos de sua vida. Uma flor agreste em meio a uma manada de búfalos. A humanidade viva, cristalina, em ebulição, contra a desumanidade dos choques elétricos, as lobotomias, o descarte da vida.
Berliner consegue transpor à tela a viral e descabida prepotência da classe médica diante de qualquer novidade clínica, fora dos padrões imperiosos estabelecidos, mesmo que singela, pura, criativa. Que se torna exuberante ao fim ao trazer dos recônditos da alma humana, ou de onde sabe-se lá de onde, a linguagem esquecida, atordoada, imersa, da dignidade humana, do amor nas pontas dos pinceis e dos dedos dançarinos.
Os atores que interpretaram os pacientes, ou clientes, ou internos, conseguiram transmitir as subjetividades de cada um. Realidades díspares, fragmentadas, sofridas, com o liame comum da vivência sem relógio, intervalo, sequência. Mas de um turbilhão no cruzamento conflituoso de ontem, agora e quando?
Todos acompanham o espírito da estória. A rebeldia, a tenacidade e a força de Nise perpassa por todos os atores. Uma bandeira de luta, persistência e emponderamento vai tomando corpo ao longo do filme, levando junto os espectadores. Uma união ao final.
Algumas salas de projeção presenciaram palmas quando terminou o filme. Outras muitos comentários e expressões ao longo da projeção. Na que eu estive, em São Paulo, uma plateia inquieta. Muitos ficaram para ver por fim os créditos do filme na tela. Até escurece-la por completo.
No mínimo, um filme que remexe com as pessoas, seus sentimentos, nossas fragilidades e fortalezas humanas. No máximo, um soco no estômago por nos mostrar o papel fulminante que Doutora Nise da Silveira desempenhou em sua vida em prol da vida dos internos. Teve o mérito de ter seu trabalho reverenciado por Carl Gustav Jung.
Considerados pela visão psiquiátrica convencional irrecuperáveis, escória da sociedade, tornam-se os internos verdadeiros artistas da pintura, reconhecidos, nada mais, nada menos, pela abalizada opinião do grande crítico de arte e literatura da época, Mário Pedrosa.
A vida médica de Nise, trazida ao conhecimento do grande público brasileiro pelo filme de Berliner, ressuscita com brilhantismo a atuação profissional de uma profissional responsável e de fibra. E do mesmo modo de humanismo e compaixão.
Além de servir o filme de libelo contra tendências conservadoras que ressurgem na sociedade médica brasileira, pretendendo trazer de volta os instrumentos de incapacitação total de internos sob o manto falso e hipócrita de avanços técnicos e científicos no tratamento de esquizofrênicos crônicos.
Nise lutou sozinha contra o sistema estabelecido na psiquiatria dos meados do século passado. Como a folha seca do outono. Dura quando preciso entre os pares, mas afetuosa quando sempre no convívio com os internos. O afeto que se encerra em nosso peito juvenil, levou Nise a compor o hino nacional dos brasileiros do Hospital de Engenho de Dentro. Hino de liberação, descobrimento, vida e comunhão.
Coube a Berliner e sua equipe tão bem resgatar a vida dessa brasileira inesquecível. Eu, como amigo dela, socialistamorena.com.br/nise-o-gato-e-… %u22C, senti-me presenteado com o filme. O rigor do roteiro e a sobriedade da direção não deixaram de me emocionar ao recordar todo o tempo que com ela convivi.
Um filme que deve fazer parte do ensino, pesquisa e didática das universidades brasileiras tanto na área artística quanto médica. No conhecimento científico brasileiro cabe um lugar exponencial o trabalho de Nise. Cujo maior mérito foi o de resgatar o princípio segundo o qual para se tornar igual ao seu semelhante, sem querer ser mais, nem menos, cada um deve respeitar as diferenças e com elas conviver.
*colaborador da Carta Maior
Créditos da foto: reprodução
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