segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O dia em que o passo deu 52 anos para trás

12/09/2016 10:57 - Copyleft

O dia em que o passo deu 52 anos para trás

No tempo em que as regras não escritas são colocadas à prova, será o fim da estratégia de conciliação?


Rodrigo Lentz *
Edilson Rodrigues / Agência Senado
Naquela manhã acordei sem aquele humor amarelo ao redor das pálpebras. Nas beiradas do meio dia, o Senado da República, presidido pelo Poder Judiciário, batia o martelo político sobre a Chefe do Poder Executivo: Dilma Rousseff era cassada por crime de responsabilidade. Os três poderes do Estado separados pelo Barão de La Bredè ali, juntos, em cadeia nacional, depondo uma presidenta(e) eleita em 2014 com 54 milhões de votos. 
 
Não foi qualquer dia. Brasília, as redes sociais, as pessoas. Tudo parecia estranho, anestésico, atônito. Por mais que tudo fosse previsível, era tudo inacreditável. Nasci no cume das diretas já, no mês em que Tancredo foi eleito indiretamente. Lembro que com 5 anos de idade meu primeiro voto para presidente foi clandestino, ilegal, contumaz: furtei a caneta de minha mãe e escolhi meu presidente com meus dedos. Sem intermediários. 
 
Mas eis que novamente colocam um filtro, uma barreira, um representante da representação da minha vontade supostamente representada. Antes, assim que o impedimento se tornava real, a palavra golpe tomava o vocábulo dos bares, das escolas, dos tribunais, dos bolichos, dos salões de beleza, dos arados, das quadras de futebol, dos escritórios, das ruas e dos parlamentos. A absolvição do Senado da pena individual à presidenta cassada (a tal da inabilitação para qualquer cargo público) foi a pá de cal de quem confessa que não há crime, como reza a Constituição. Então por que cassar sem crime dizendo que há? Por que esse sentimento de trapaça está embrulhado pela legalidade? Respiremos. É preciso entender o que passa.   
 
A crise política que culminou na cassação da Presidenta em 2016, ao que tudo indica, é a maior crise vivida pelo sistema político desde 1964, quando um golpe de Estado também depôs um presidente eleito diretamente. Nos concentremos no ato e não naquilo que se sucedeu (ditadura). Há 52 anos, como assentou Silva Filho, o parlamento de representantes eleitos diretamente declarou vaga a presidência da República e, por 361 votos favoráveis, 72 abstenções, 37 ausências e 5 votos contrários, elegeu indiretamente Castello Branco como novo presidente (na prática, Câmara e Senado elegeram indiretamente Michel Temer). Esse ato recebeu o endosso jurídico do Poder Judiciário à época: o Presidente do STF, Moutinho da Costa, assegurou a todos que a deposição de João Goulart estava de acordo com a Constituição. 





 
Há uma diferença contundente na corda autoritária que insiste em unir 1964 a 2014. Digamos que o cabo de aço com algodão cru, dali para cá, foi revestido com veludo constitucional: não era revestida de Forças Armadas, tampouco seu tecido era feito de amplo direito de defesa e do contraditório ao Presidente diretamente eleito. Dilma, ao contrário, teve melhor azar. Mas nem tanto. É regra básica do direito constitucional, especialmente nos direitos e garantias fundamentais, a exigência de uma conduta típica penal para denunciar alguém. Do contrário, a garantia constitucional do devido processo legal é violada.  
 
No Brasil de 1964-2016, seja de algodão cru ou de veludo constitucional, o autoritarismo civil sempre se abrigou na legalidade. A lei, a constituição, a ordem são máquinas colheitadeiras de legitimação da dominação social. É difícil para a elite política, a elite econômica, a elite social conviver com o voto popular. Em certas quadras, como agora, é preciso “flexibilizar a constituição”, segundo Moutinho da Costa (STF, 1964), ou de fazer “uma pausa democrática para um freio de arrumação”, como disse Ayres Britto (STF, 2016). Aliás, foi isso que levou o brasilianista Anthony Pereira, diretor do Instituto Brasil da Kings College (UK), a concluir pelo alto grau de cooperação – pra não dizer cumplicidade – do Poder Judiciário brasileiro com nossa tradição autoritária renovada em 1964. Isso, inclusive, reduziu o custo político das graves violências massivas inerentes às ditaduras. E nunca as eleições foram abandonadas. Apenas eram adaptadas.
 
Demétrio Magnoli, uma opinião liberal antipetista crescente e crente na legalidade do impedimento, escreveu – muito bem, por sinal – que neste momento se derrama no tapete democrático a lama da tradição conciliadora das elites políticas brasileiras. O grande sintoma teria sido o acordo político que absolveu Dilma pessoalmente, apenas cassando-a. Depois da cisão, a conciliação. Contudo, ventilo outra hipótese. Conjecturo se, na verdade, não seria justamente este consenso entre elites é que tenha sido quebrado. É a poliarquia de Robert Dahl, com seus mínimos procedimentais, democraticamente insuficientes, que foi esfacelada. Se a legalidade, entendida como respaldo do judiciário, é instrumento de golpes de Estado, temos uma importante cisão em marcha: a competição eleitoral como meio legítimo de disputa de poder político – que inclui aceitar seu resultado, o abandono do direito penal como perseguição política, o Estado de Direito, o pacto político concretizado em 1985-1989, entre as elites políticas, foi quebrado. Enquanto a imunidade penal dos militares restou intacta. 
 
Estamos diante de um tempo em que as regras não escritas são colocadas à prova. Aqui, na minha opinião, é onde reside o grande fator de instabilidade política do regime daqui para frente. É o fim da estratégia conciliatória? 
 
Ninguém sabe onde vamos parar. Rodrigo Sá Motta, historiador e professor visitante da Universidade de Paris III, é cirúrgico ao demostrar semelhanças com 1964: Primeiro, foi a surpresa. Quem esperava, há três anos, que Dilma seria derrubada? Segundo, uma crise política que reforçou a polaridade social provocada, em grande medida, por fatores estruturais (cultura política). Terceiro, havia um governo de centro-esquerda acuado pelas maiores instituições de mídia, decididas, com apoio minoritário no Congresso, em quadro de crise econômica. Quarto, mobilização de grupos de direita e protestos de rua contra o governo. Quinto, o governo é alvo de argumentos anticomunistas e anticorrupção. Sexto, a maioria da classe média, com sentimento de abandono político, e setores superiores, ofendidos pela perda de privilégios, em polvorosa, querendo a queda a todo custo, sem apego a regras institucionais. Sétimo, setores populares pouco empolgados em defender o governo.Oitavo, um crescimento da opinião liberal incomodada com uma política desenvolvimentista; Nona, a ocupante do Executivo era herdeira de um líder carismático sem o brilho de seu mestre. E, décima, para lembrar de René Dreiffus: Fiesp abriu o caixa para financiar a deposição.     
 
É evidente que há diferenças. A tradição de uso instrumental da anticorrupção é seguida do antipetismo, algo distinto, mas derivativo da tradição anticomunista brasileira. Esta, por sua vez, manteve-se na retaguarda, presente, pois não vivermos mais a guerra fria. Contudo, a influência internacional dos EUA – marcada no “combate” a corrupção – se mostrou latente desde a interceptação até no treinamento dos atores legais da Lava-Jato. E a internet quebrou o monopólio da informação da grande mídia, sem superar seu poder hegemônico.
 
Norberto Bobbio, cientista político liberal, em seu dicionário de política, é claro em chancelar uma definição de golpe de Estado como a derrubada de um governo por órgãos do Estado que, pelo menos, contam com a cumplicidade armada (lembrem-se do áudio de Jucá: os milicos estão conosco). É seguido por mobilização política e de um reforço no aparato burocrático e policial do Estado (lembre-se de Alexandre de Morais: precisamos de mais armas e menos pesquisas). Somando-se à quebra do Estado de Direito e do pacto político de elites da competição eleitoral, tecnicamente, é ingênuo não classificar de golpe o que tivemos. 
 
Então caminhamos – ou colocamos o pé direito – para uma ditadura? Ninguém sabe ao certo. Mas as recentes flexibilizações do direito de reunião e da liberdade de expressão às manifestações – que colocaram nas ruas 100 mil pessoas, menos de uma semana após a deposição da presidenta –são preocupantes. Isso se agrava com a descoberta da participação ativa das Forças Armadas na repressão à oposição política, com uso de técnicas de combate ao “inimigo sem uniforme”. No plano institucional, as eleições municipais, ainda diretas, serão um termômetro importante do estado de saúde da estratégia de conciliação. E se coalizão do golpe for derrotada? Assim como os desdobramentos das operações judiciais, o avanço do pacote de cortes de direitos trabalhistas e previdenciários (desfecho do golpe), a absolvição de Eduardo Cunha e, principalmente, a reação popular organizada nas ruas serão os ingredientes do futuro.  
 
Porém, uma coisa é certa: vivemos tempos de intensa mobilização política, de uma descontituinteprovocada pela quebra da regras não escritas e, talvez, isso inaugure um momento constituinte. Os meninos que ficaram incomunicáveis (nem no Estado de Defesa isso é permitido), detidos para averiguação por 24hs e soltos pelo juiz Rodrigo Tellini –que afirmou vivermos “dias tristes para nossa democracia, em que seus cidadãos precisam aguentar tudo de boca fechada” –foram precisos: pela democracia, não tem arrego. Enquanto não voltar a escolher a(o) presidente com meus dedos, amanhã será maior. 
 
* Advogado e consultor em direitos humanos, mestre e doutorando em Ciência Política na UNB, membro do Grupo de Pesquisa “Democracia e desigualdades” da UNB (Demodê) e Internacionalização do Direito e Justiça de Transição da USP (Idejust). 
 
Leituras indicadas: 
 
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. (Vozes, 1981)
PEREIRA, Anthony W. . Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina (Paz e Terra, 2010).
BARBÉ, Carlos. Verbete Golpe de Estado. In: Dicionário de política I Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (Editora UNB, 1998).
SÁ MOTA, Patto Rodrigo. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (Perspectiva, 2002)


Créditos da foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado

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