Ignácio Ramonet*
Qual o
desenho do novo cenário mundial? Quais são suas principais características? Que
dinâmicas estão determinando o funcionamento real de nosso planeta? Que
características dominarão nos próximos 15 anos, daqui a 2030?
Para
analisar este novo cenário e prever seu futuro imediato, vamos utilizar a
bússola da geopolítica, uma disciplina que nos permite compreender o jogo geral
das potências e avaliar os principais riscos e perigos. Para antecipar, como um
tabuleiro de xadrez, os movimentos de cada potência adversária.
E o que
nos diz esta bússola?
1. O declínio do Ocidente
A
principal constatação é o declínio do Ocidente. Pela primeira vez desde o
século 15, os países ocidentais estão perdendo poder frente à ascensão das
novas potências emergentes. Começa a fase final de um ciclo de cinco séculos de
dominação ocidental do mundo. A liderança internacional dos EUA viu-se ameaçada
pelo surgimento de novos polos de poder (China, Rússia e Índia) em escala
internacional. A “degradação estratégica” dos EUA já começou. O “século
americano” parece chegar ao seu fim, enquanto o “sonho europeu” desaparece.
Embora os
EUA sigam sendo uma das principais potenciais planetárias está perdendo sua
hegemonia econômica para a China. E já não exercerá mais sua “hegemonia militar
solitária” como fez desde o fim da Guerra Fria (1989). Estamos caminhando para
um mundo multipolar em que os novos atores (China, Rússia e Índia) têm vocação
para construir sólidos polos regionais e a disputar a supremacia internacional
com Washington e seus aliados históricos (Reino Unido, França, Alemanha e
Japão).
Na
terceira linha aparece uma série de potências intermediarias, com demografias
em alta e fortes taxas de crescimento econômico, convertendo-se também em polos
hegemônicos regionais e com tendência a se transformar, daqui a 15 anos, em um
grupo de influência planetária (Indonésia, Brasil, Vietnã, Turquia, Nigéria,
Etiópia).
Para ter
uma ideia da importância e da rapidez da degradação ocidental que se avizinha,
basta observar essas cifras: a participação dos países ocidentais na economia
mundial vai passar de 56%, hoje, para 25% em 2030. Ou seja, em menos de 15 anos
o Ocidente perderá mais da metade de sua preponderância econômica. Uma das
principais consequências será que os EUA e seus aliados não terão mais os meios
financeiros para assumir o policiamento do mundo. De tal modo que esta mudança
estrutural poderá debilitar o Ocidente duplamente.
2. A incontida emergência da China
O mundo
está “desocidentalizando” e é cada vez mais multipolar. Destaca-se, mais uma
vez, o papel da China que emerge, a principio, como uma grande potência do
século 21 - apesar de estar longe de representar ainda uma autêntica rivalidade
com Washington. Por um lado, a estabilidade da China não está garantida, porque
coexistem em seu seio o capitalismo mais selvagem e o socialismo mais
autoritário. A tensão entre essas duas dinâmicas causará, cedo ou tarde, uma
ruptura que poderá debilitar sua potência.
De
qualquer maneira, hoje, os EUA seguem exercendo uma indiscutível dominação
hegemônica sobre o planeta. Tanto no terreno militar (fundamental), quanto em
vários outros setores cada vez mais determinantes, em particular, na tecnologia
(Internet) e no soft power (cultura de massas). Isso não quer dizer que a China
não tenha realizado também avanços prodigiosos nos últimos anos. Nunca na
história um país cresceu tanto em tão pouco tempo.
No
momento, enquanto declina o poder dos EUA, a ascensão da China é incontida. Já
é a segunda potência econômica do mundo, à frente do Japão e da Alemanha.
Para os
EUA, a Ásia é agora a zona prioritária desde que o presidente Barack Obama decidiu
a reorientação estratégica de sua política externa. Os EUA buscam frear a
expansão da China, cercando-a com bases militares e apoiando seus aliados
locais tradicionais: Japão, Coréia do Sul, Taiwan e Filipinas. É significativo
que a primeira viagem de Obama, depois da sua reeleição em 2012, tenha sido a
Birmânia, Camboja e Tailândia, três países da Associação de Nações da Ásia do
Sudeste (ASEAN), uma organização que reúne os aliados dos Estados Unidos na
região, cujos membros têm problemas de limites marítimos com a China.
Os mares
da China tornaram-se as zonas com maior potencial de conflito armado da área
Ásia-Pacífico. Há tensões entre China e Japão a propósito da soberania sobre as
ilhas Senkaku (Diaoyú para os chineses). Também a disputa com Vietnã e
Filipinas sobre a propriedade das ilhas Spratly está subindo o tom
perigosamente. A China está modernizando toda sua marinha em alta velocidade.
Em 2012, lançou seu primeiro porta-aviões, o Lioning, e está construindo um
segundo, com a intenção de intimidar o governo norte-americano. A China suporta
cada vez menos a presença militar dos EUA na Ásia. Entre estes dois gigantes,
está se instalando uma perigosa “desconfiança estratégica” que, sem dúvida,
poderá marcar a política internacional nessa região até 2030.
3. O terrorismo jihadista
Outras
das ameaças globais indicadas por nossa bússola é o terrorismo jihadista
praticado, ontem pela Al-Qaeda, e hoje pelo Estado Islâmico (ISIS). As
principais causas do terrorismo atual têm de ser buscadas nos desastrosos erros
e crimes cometidos pelas potências que invadiram o Iraque em 2003 - além das
intervenções caóticas na Líbia (2011) e na Síria (2014).
O Oriente
Médio segue situado no atual foco de desestabilização do mundo. Em particular,
em torno da inextricável guerra civil na Síria. O que está claro é que, nesse
país, as grandes potências ocidentais (EUA, Reino Unido e França), aliadas aos
Estados que mais difundem pelo mundo a concepção mais arcaica e retrógrada do
islã (Arábia Saudita, Qatar e Turquia), decidiram apoiar, com dinheiro, armas e
instruções, a insurgência islamista sunita. Os EUA constituíram nessa região um
amplo “exército sunita” com o objetivo de derrubar Bashar Al-Assad e prejudicar
um grande aliado regional do Irã. Entretanto, o governo de Bashar Al-Assad, com
o apoio da Rússia e do Irã, resistiu e segue consolidando-se. O resultado de
tantos erros é o terrorismo jihadista atual que multiplica os atentados odiosos
contra civis inocentes na Europa e nos EUA.
Em algumas
capitais ocidentais segue-se pensando que a potência militar maciça é
suficiente para derrotar o terrorismo. Mas a história militar mostra exemplos
abundantes de grandes potências incapazes de derrotar adversários mais débeis.
Basta recordar os fracassos norte-americanos no Vietnã, em 1975, e na Somália,
em 1994. Em um combate assimétrico, aquele que pode mais, não ganha
necessariamente. O historiador Eric Hobsbawn nos recorda que “Na Irlanda do
Norte, durante cerca de 30 anos, o poder britânico se mostrou incapaz de
derrotar um exército minúsculo como o IRA. Certamente o IRA não venceu, porém
nem por isso, foi vencido”.
Os
conflitos do novo tipo, quando uma potência enfrenta o débil ou o louco, são
mais fáceis de começar do que de terminar. E o emprego maciço de meio militares
pesados não necessariamente permite alcançar os objetivos buscados.
A luta
contra o terrorismo também está justificando, em matéria de governança e de
política doméstica, todas as medidas autoritárias e todos os excessos,
inclusive uma versão moderna do “autoritarismo democrático” que tem como alvo,
além das organizações terroristas, todos os manifestantes que se opõem às
políticas globalizantes e neoliberais.
4. Há crises para muito tempo
Outra
constatação importante: os países ricos seguem padecendo de consequências do
terremoto econômico-financeiro que foi a crise de 2008. Pela primeira vez, a
União Europeia, (e o “Brexit” confirma), vê ameaçada sua coesão e até sua
existência. Na Europa, a crise econômica durará ao menos mais uma década, até
pelo menos 2025.
Há crise,
em qualquer setor, quando algum mecanismo deixa de atuar, começa a ceder e
acaba rompendo-se. Essa ruptura impede que o conjunto da maquinaria siga
funcionando. É o que aconteceu com a economia mundial desde o estouro da crise
das subprimes em 2007-2008.
As consequências
sociais desse cataclismo econômico foram brutalmente inéditas: 23 milhões de
desempregados na União Europeia e mais de 80 milhões de pobre. Os jovens, em
particular, são as principais vítimas; gerações sem futuro. Mas as classes
médias também estão assustadas, porque o modelo neoliberal de crescimento
abandonou-as à margem do caminho.
A
velocidade da economia financeira de hoje é de relâmpago, enquanto que a
velocidade da política, em comparação, é de caracol. Resulta que fica cada vez
mais difícil conciliar tempo econômico e tempo político. E também crises
globais e governos nacionais. Tudo isto provoca, nos cidadãos, frustração e
angústia.
A crise
global produz perdedores e ganhadores. Os ganhadores encontram-se,
essencialmente, na Ásia e nos países emergentes, que não têm uma visão tão
pessimista da situação, como os europeus. Também há muitos ganhadores no
interior dos países ocidentais, cujas sociedades encontram-se fraturadas pela
desigualdade entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres.
Na
realidade, não estamos suportando uma crise, mas uma série de crises, uma soma
de crises mescladas tão intimamente umas às outras que não conseguimos
distinguir entre causas e efeitos. Porque os efeitos de umas são as causas das
outras, e assim até formar um verdadeiro sistema de crises. Ou seja,
enfrentamos uma autêntica crise sistêmica do mundo ocidental, que afeta a
tecnologia, a economia, o comércio, a política, a democracia, a identidade, a
guerra, o clima, o meio ambiente, a cultura, os valores, a família, a educação,
a juventude etc.
Do ponto
de vista antropológico, essas crises estão sendo traduzidas por um aumento do
medo e do ressentimento. As pessoas vivem em estado de ansiedade e incerteza.
Voltam os grandes pânicos frente a ameaças indeterminadas, como podem ser a
perda do emprego, os choques tecnológicos, as biotecnologias, as catástrofes
naturais, a insegurança generalizada. Tudo isso constitui um desafio para as
democracias, porque esse terror transforma-se, às vezes, em ódio e repúdio. Em
vários países europeus, e também nos EUA, ele dirige-se hoje contra o
estrangeiro, o imigrante, latinos, ciganos, subsaarianos, “sem visto” etc. Crescem
os partidos xenófobos e de extrema direita.
5. Decepção e desencanto
É preciso
entender que, desde a crise financeira de 2008 (da qual ainda não saímos), nada
é igual em nenhum lugar. Os cidadãos estão profundamente desencantados. A própria
democracia, como modelo, perdeu credibilidade. Os sistemas políticos foram
sacudidos pela raiz. Na Europa, por exemplo, os grandes partidos tradicionais
estão em crise. E em toda parte percebemos o crescimento de formações de
extrema direita (na França, na Áustria e nos países nórdicos) ou de partidos antissistema
e anticorrupção (Itália, Espanha). A paisagem política parece radicalmente
transformada.
Esse
fenômeno chegou aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda
populista de direita devastadora, então encarnada pelo Tea Party. A ascensão do
multimilionário Donald Trump na corrida pela Casa Branca prolonga essa onda e
se constitui numa revolução eleitoral que nenhum analista soube prever. Ainda
que sobreviva, aparentemente, a velha bicefalia entre democratas e
republicanos, a ascensão de um candidato tão heterodoxo como Trump constitui um
verdadeiro terremoto. Seu estilo direto, popularesco, e sua mensagem
maniqueísta e reducionista, com apelo aos baixos instintos de certos setores da
sociedade, conferiram-lhe um caráter de autenticidade aos olhos do setor mais
decepcionado dos eleitores de direita.
A esse
respeito, o candidato republicano soube interpretar o que poderíamos chamar de
“rebelião das bases”. Melhor que todos, ele percebeu a fratura cada vez maior
entre as elites políticas, econômicas, intelectuais e midiáticas, por um lado,
e a base do eleitorado conservador, por outro. Seu discurso violentamente
antiburocracia de Washington, antimídia e anti-Wall Street seduz, em particular,
os eleitores brancos, pouco cultos e empobrecidos pelos efeitos da globalização
econômica.
6. Terremotos e mais terremotos
Poderíamos
dizer que outra grande característica do novo cenário global são os terremotos.
Terremotos financeiros, monetários, das bolsas, climáticos, energéticos,
tecnológicos, sociais, geopolíticos, como o restabelecimento de relações entre
Cuba e Estados Unidos, ou, em outro sentido, o golpe de Estado institucional no
Brasil contra a presidenta Dilma Rousseff. Terremotos eleitorais como a vitória
do “não” na Colômbia aos Acordos de Paz entre o governo de Juan Manuel Santos e
as FARC; ou o “Brexit” no Reino Unido, ou o êxito da extrema direita na
Áustria, ou a derrota de Angela Merkel em várias eleições parciais na Alemanha.
Ou o enorme terremoto que poderia constituir, efetivamente, a eventual vitória
eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos.
Acontecimentos
imprevistos irrompem com força sem que ninguém, ou quase ninguém, os tenha
visto chegando. Há uma falta de visibilidade geral. Se governar é prever,
vivemos uma evidente crise de governança geral. Em muitos países, o Estado que
protegia os cidadãos deixou de existir. Há uma crise da democracia
representativa: “Não nos representam!”, diziam os “indignados”. As pessoas
reivindicam que a autoridade política volte a assumir seu papel condutor na
sociedade. Insiste-se na necessidade de reinventar a política e de que o poder
político ponha fim ao poder econômico e financeiro dos mercados.
7. Internet, ciberespionagem e ciberdefesa
O novo
cenário global também se caracteriza pela multiplicidade de rupturas
estratégicas, cujo significado às vezes não compreendemos. Hoje, a Internet é o
vetor da maioria das mudanças. Quase todas as crises recentes têm alguma
relação com as novas tecnologias da comunicação e da informação, com a
desmaterialização e a digitalização generalizadas, e com a explosão inédita das
redes sociais. Mais que uma tecnologia, a Internet é, pois, um ator fundamental
da crise. Basta recordar o papel de WikiLeaks, Facebook, Twitter e das demais
redes sociais na aceleração da informação e da conectividade social pelo mundo.
Daqui a
2030, no novo cenário, algumas das maiores coletividades do planeta já não
serão países, mas comunidades congregadas e vinculadas entre si pela Internet e
pelas redes sociais. Por exemplo, ‘Facebooklândia’: mais de um bilhão de
usuários. Ou ‘Twitterlândia’, mais de 800 milhões. Sua influência, no jogo da
geopolítica mundial, poderia revelar-se decisiva. Hoje, as estruturas de poder
se borram graças ao acesso universal à rede e ao uso de novas ferramentas
digitais.
Por outro
lado, pela estreita cumplicidade que algumas grandes potências estabeleceram
com as grandes empresas privadas que dominam as indústrias de informática e de
telecomunicações, a capacidade em termos de espionagem de massas cresceu também
de forma exponencial. As mega empresas como Google, Apple, Microsoft, Amazon e,
mais recentemente, Facebook estabeleceram laços estreitos com o aparato do
Estado em Washington, especialmente com os responsáveis pela política exterior.
Essa relação converteu-se numa evidência. Compartilham as mesmas ideias
politicas e têm idêntica visão de mundo. Em última instância, os estreitos
vínculos e a visão comum do mundo, por exemplo, do Google e do governo
estadunidense estão a serviço dos objetivos da política externa dos Estados
Unidos.
Essa
aliança sem precedentes (Estado-aparato militar de segurança-megaempresas da
Web) – criou um verdadeiro império da vigilância, cujo objetivo claro e
concreto é colocar a Internet sob escuta, toda a Internet e todos os
internautas, como denunciaram Julian Assange e Edward Snowden.
O
ciberespaço converteu-se numa espécie de quinto elemento. O filósofo grego
Empédocles sustentava que nosso mundo estava formado por uma combinação de
quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Mas o surgimento da Internet, com seu
misterioso “interespaço” superposto ao nosso, formado por bilhões de
intercâmbios digitais de todo tipo, por seu roaming, seu streaming e seu
clouding, engendrou um novo universo, de certo modo quântico, que vem completar
a realidade do nosso mundo contemporâneo como se fosse um autêntico quinto elemento.
Nesse
sentido, deve-se ressaltar que cada um dos quatro elementos tradicionais
constitui, historicamente, um campo de batalha, um lugar de confronto. E que os
Estados tiveram de desenvolver componentes específicos das forças armadas para
cada um desses elementos: para a terra, o exército; para o ar, a aeronáutica;
para a água, a Marinha; e, com caráter mais singular, para o fogo, os
bombeiros, ou “soldados do fogo”. De modo natural, todas as grandes potências
estão acrescentando hoje, aos três exércitos tradicionais e aos combatentes do
fogo, um novo exército, cujo ecossistema é o quinto elemento: o ciberexército,
encarregado da ciberdefesa, que tem suas próprias estruturas orgânicas, seu
Estado maior, seus cibersoldados e suas próprias armas: supercomputadores
preparados para defender as ciberfronteiras e travar a ciberguerra digital no
âmbito da Internet.
8. Uma mutação do capitalismo: a economia colaborativa
Trinta
anos depois da expansão maciça da Web, os hábitos de consumo também estão mudando.
Impõe-se pouco a pouco a ideia de que a opção mais inteligente é usar algo em
comum, e não necessariamente comprando-o. Isso significa abandonar, pouco a
pouco, uma economia baseada na submissão dos consumidores e no antagonismo ou
na competição entre os produtores - e passar a uma economia que estimula a
colaboração e o intercâmbio entre os usuários de bens e serviços. Tudo isso
causa uma verdadeira revolução no seio do capitalismo, que está operando uma
nova mutação, diante de nossos olhos.
É um momento
irresistível. Milhares de plataformas digitais de intercambio de produtos e
serviços estão se expandindo com muita rapidez. A quantidade de bens e serviços
que podem ser alugados ou trocados mediante plataformas online - sejam pagas ou
gratuitas (como a Wikipédia) - é já literalmente infinita.
Em nível
planetário, essa economia colaborativa cresce atualmente entre 15% e 17% ao
ano. Com alguns exemplos de crescimentos absolutamente espetaculares. Por
exemplo, o UBER, o aplicativo digital que conecta passageiros com motoristas,
em apenas cinco anos de existência já vale 68 bilhões de dólares e opera em 132
países. O AIRBNB, a plataforma online de hospedagem para particulares surgida
em 2008 e que já encontrou cama para mais de 40 milhões de viajantes, vale hoje
na Bolsa (sem ser proprietária de uma única habitação) mais de 30 bilhões de
dólares, ou seja, mais que os grandes grupos Hilton, Marriott ou Hyatt.
A esse
respeito, outro traço fundamental que está mudando - e que foi nada menos que a
base da sociedade de consumo - é o sentido de propriedade, o desejo de posse.
Adquirir, comprar, ter, possuir eram os verbos que melhor traduziam a ambição
essencial de uma época em que o ter definia o ser. Acumular “coisas” (casas,
carros, geladeiras, televisores, móveis, roupa, relógios, livros, quadros,
telefones etc.) constituía, para muitas pessoas, a principal razão da
existência. Parecia que, desde o início dos tempos, o sentido materialista de
posse era inerente ao ser humano.
A
economia colaborativa constitui assim um modelo baseado no intercâmbio e no
compartilhamento de bens e serviços por meio do uso de plataformas digitais.
Inspira-se nas utopias de compartilhamento e de valores não mercantis como a
ajuda mútua ou a convivialidade, e também do espírito de gratuidade, mito
fundador da Internet. Sua ideia principal é: “o meu é seu”, ou seja,
compartilhar em vez de possuir. E o conceito básico é a troca. Trata-se de
conectar, por via digital, as pessoas que buscam “algo” com as pessoas que o
oferecem. As empresas mais conhecidas desse setor são: UBER, AIRBNB, NETFLIX, BLABACAR
etc.
Muitos
indícios levam a pensar que estamos assistindo ao ocaso da 2ª Revolução Industrial,
baseada no uso maciço de energias fósseis e em telecomunicações centralizadas.
E vemos a emergência de uma economia colaborativa que obriga o sistema
capitalista a mudar.
Por outro
lado, num contexto em que as mudanças climáticas tornaram-se a principal ameaça
para a sobrevivência da humanidade, os cidadãos não desconhecem os perigos
ecológicos inerentes ao modelo de hiperprodução e de hiperconsumo globalizado.
Aí também a economia colaborativa oferece soluções menos agressivas para o
planeta.
Num
momento como o atual, de forte desconfiança com relação ao modelo neoliberal e
às elites políticas, financeiras, midiáticas e bancárias, a economia
colaborativa parece aportar respostas a muitos cidadãos em busca de sentido e
de ética responsável. Exalta valores de ajuda mútua e desejo de
compartilhamento. São critérios que, em outros momentos, foram argamassa de
teorias comunitárias e de ambições socialistas. Mas que hoje são – e ninguém
duvide – o novo rosto de um capitalismo mutante, desejoso de afastar-se da
selvageria amarga de seu recente período ultraliberal.
Nossa bússola
também nos indica a aparição de tensões entre os cidadãos e alguns governos em
dinâmicas que vários sociólogos qualificam de “pós-políticas” ou
“pós-democráticas”. Por um lado, a generalização do acesso à Internet e a
universalização do uso das novas tecnologias estão permitindo à cidadania
alcançar altas cotas de liberdade e desafiar seus representantes políticos
(como durante a crise dos “indignados”). Mas essas mesmas ferramentas
eletrônicas proporcionam aos governos, como já vimos, uma capacidade sem
precedentes para vigiar seus cidadãos.
9. Ameaças não militares
“A
tecnologia – assinala um informe recente da CIA – continuará sendo o grande
nivelador, e os futuros magnatas da Internet, como poderia ser o caso do Google
e do Facebook, possuem montanhas de base de dados, e manejam em tempo real
muito mais informação que qualquer governo”. Por isso, a CIA recomenda ao
governo dos EUA que faça frente a essa ameaça eventual das grandes corporações
de Internet, ativando o Special Collection Service, um serviço de inteligência
ultrasecreto – administrado em conjunto pela NSA (National Security Agency) e o
SCE (Service Cryptologic Elements) das Forças Armadas – especializado na captação
clandestina de informações de origem eletromagnética. O perigo de que um grupo
de empresas privadas controle toda essa massa de dados reside, principalmente,
em que poderia condicionar o comportamento em grande escala da população
mundial e inclusive das entidades governamentais. Também se teme que o
terrorismo jihadista seja substituído por um ciberterrorismo ainda mais
impactante.
A CIA
leva a sério esse novo tipo de ameaça porque, afinal, o declínio dos Estados
Unidos não foi provocado por uma causa externa, mas por uma crise interna: a
quebra econômica ocorrida a partir de 2007-2008. O informe insiste em que a geopolítica
de hoje deve interessar-se por novos fenômenos que não possuem, forçosamente,
um caráter militar. Pois ainda que as ameaças militares não tenham
desaparecido, alguns dos principais perigos que nossas sociedades correm hoje
são de ordem não militar: mudanças climáticas, mutação tecnológica, conflitos
econômicos, crime organizado, guerras eletrônicas, esgotamento dos recursos
naturais.
Sobre
esse último aspecto, é importante saber que um dos recursos que está se
esgotando mais aceleradamente é a água doce. Em 2030, 60% da população mundial
terá problemas de abastecimento de água, dando lugar ao surgimento de
“conflitos hídricos”. Em contraste, no que diz respeito aos combustíveis
fósseis, a exploração de petróleo e de gás de xisto está alcançando níveis
excepcionais, graças às novas técnicas de fraturamento hidráulico. Os Estados
Unidos já são quase autossuficientes em gás, e em 2030 poderão ser em petróleo,
cujos custos de produção tendem a baratear. Além disso, encorajam a
relocalização de suas indústrias. Mas, se os EUA – principal importador atual
de combustíveis fósseis - deixarem de importar petróleo, pode-se prever a queda
do preço do barril. Quais serão então as consequências para os grandes países
exportadores?
10. Rumo ao triunfo das cidades e das classes médias
No mundo
a que nos dirigimos, 60% das pessoas viverão nas cidades, pela primeira vez na
história da humanidade. E, como consequência da redução acelerada da pobreza,
as classes médias serão dominantes e triplicarão, passando de 1 para 3 bilhões
de pessoas. Isso que, em si, é uma revolução colossal, acarretará como
consequência, entre outros efeitos, uma mudança geral dos hábitos culinários e,
em particular, um aumento do consumo de carne em escala planetária - o que
agravará a crise ambiental.
Em 2030,
os habitantes do planeta seremos 8,5 bilhões, mas o aumento demográfico cessará
em todos os continentes, menos na África, com o consequente envelhecimento
geral da população mundial. Em troca, o vinculo entre o ser humano e as
tecnologias protéticas acelerará o surgimento de novas gerações de robôs e a
aparição de “super-homens” capazes de proezas físicas e intelectuais inéditas.
Muito
raramente o futuro é previsível. Nem por isso, deve-se deixar de imaginá-lo, em
termos de prospectiva. Isso nos prepara para agir diante de diversas
circunstâncias possíveis, das quais só uma se realizará. Para isso, a
geopolítica é uma ferramenta extremamente útil. Ajuda-nos a tomar consciência
das rápidas evoluções em curso e a refletir sobre a possibilidade, para cada um
de nós, de intervir e apontar o rumo. Para tratar de construir um futuro mais
justo, mais ecológico, menos desigual e mais solidário.
* Diretor
do Le Monde Diplomatique
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