'Marisa e Lula'
Aos 25 anos, a senhora que hoje luta
pela vida, abriu a porta de sua casa a uma visitante ilustre, para nunca mais
fechá-la: a luta por um Brasil mais justo.
Saul Leblon
Chegará o dia em que o enredo pronto que
existe dentro da legenda ‘Marisa e Lula’ merecerá o olhar de um cineasta
brasileiro.
Um diretor atento a um Brasil contra o
qual a mídia sempre manteve, e intensificou, uma relação depreciativa, mais
belicosa e obsessiva que a dispensada agora aos veículos de comunicação por Trump, enxergará neles a personificação
de um dos períodos mais generosos e vitais da vida nacional.
O improvável revestirá os passos
iniciais na trajetória deste casal de trabalhadores no maior polo industrial do
Brasil.
Um homem e uma mulher de origem simples,
jovens, mas viúvos, apetrechados no máximo de um cristianismo ingênuo a
revestir a luta pela sobrevivência, um dia abriram a porta de sua casa a uma
visitante ilustre, para nunca mais fechá-la.
Era a história.
E ela os arrebatou.
Surpreendentemente, porém, e nisso
reside o magnetismo da trama há léguas de ser uma fábula de seres perfeitos,
também foi arrebatada por eles, com todos os riscos inerentes a uma coisa e
outra num dos períodos mais turbulento da vida nacional.
Estamos no Brasil de 1974, em plena
ditadura militar.
Nesse enredo de carne e osso as cenas se
desenrolam quase prontas aos olhos de quem quiser enxergá-las.
É uma história de resistência e luta, de
coragem e medo, curtida em derrotas e superação, temperada de doses de
grandezas e fraquezas, cuja soma conflituosa afronta a prateleira do previsível
e do edulcorado para arrombar a fronteira que dividia o passo seguinte do país.
Contra todas as probabilidades eles não
foram derrotados pela avalanche que recobriria seu destino pelo resto da vida.
Marisa e Lula afrontaram a hierarquia
inoxidável do mundo burguês, patronal e conservador e também do universo
pequeno burguês no qual poderiam ter se acomodado na ampla sala de estar
reservada aos mansos.
Para a surpresa de uns – deles mesmos,
talvez - e horror de outros, lograram tomar as rédeas do cavalo xucro da
histórica que passou na sua frente, mudando a direção dele e o enredo de suas
vidas.
Estão juntos há 43 anos assim. Sem parar
o trote agalopado.
Um ano depois de se casarem, em 1975,
Lula seria eleito presidente do mais estratégico sindicato de trabalhadores do
país, inserido no maior polo automobilístico da América Latina.
Lula assumiu o Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo quando o general Geisel era o ditador do Brasil.
O país ingressava num ciclo vertiginoso
de luta por democracia e de levantes operários contra o arrocho econômico e
sindical.
O ABC era o coração da impaciência
operária. Mas a opressão patronal assegurada pelos militares empurrava
velozmente a reivindicação salarial para a confrontação política.
Não era o que eles preconcebiam. Longe
disso. Mas era o que se impunha como um efeito dominó a cada passo do embate.
Pois bem, Marisa e Lula não se deixaram
encurralar pelos repetidos chamados do toque de recolher que dispara na vida de
um casal nas situações de perigo que ameaçam o teto e a prole.
Logo, muito logo, nas mãos de Lula, o
sindicato dos metalúrgicos ficaria nacionalmente conhecido como uma das
principais fortalezas da frente ampla de luta por liberdades democráticas que
se esparramava pelo país irradiando a audiência da voz rouca do mar ao sertão.
As ruas eram uma extensão dessa
consciência que se adensava contra o que não era mais tolerável, a censura, a
tortura, a repressão, o arrocho, enfim, a interdição do futuro na vida de uma
nação.
O lar de Marisa, 25 anos, e Lula, 30
anos, foi arrebatado por esse turbilhão da história que entrou pela sala, logo
estava na cozinha tomando sopa de madrugada, esparramou colchonetes e fez dali
um acampamento de prontidão permanente por democracia e justiça social.
Era assim a casa de Marisa recém-casada.
Ou melhor, a casa da senhora hoje com 66
anos e uma hemorragia cerebral - que respira por aparelhos na UTI de um hospital,
em cuja entrada o ódio escarnece de seu drama e ergue cartazes em que pede a
prisão de seu marido.
Sua casa tornou-se uma arriscada
trincheira da luta por democracia e justiça social, num tempo em que erguer
cartazes por democracia e justiça social dava cadeia, não raro, pancada e
tortura.
O lar dessa senhora em coma induzido era
um gigantesco cartaz de audácia operária na noite do Brasil.
O filme à espera de um diretor abriria
com a leitura vagarosa dos estandartes de ódio, solitários, mas exclamativos de
um sentimento incontido das elites e do seu entorno contra tudo o que se refira
àquela casa, à mulher e ao homem que a partir dela os desafiou e venceu.
No ambiente frio da UTI desta São Paulo
cinzenta de janeiro de 2017, o silêncio só é entrecortado pelos equipamentos
que monitoram o metabolismo fragilizado pelo aneurisma rompido.
O boletim médico informa que o quadro da
paciente Marisa Letícia é estável.
O que se luta para preservar ali, porém,
é justamente algo que se mexe como a história e que por se mexer opõe-se ao
cerco que pretende afogá-lo numa grande hemorragia de demonização e
esquecimento.
O alvo é certeiro.
A memória é um pedaço do futuro.
A daquele período, sobretudo preciosa
para o presente.
Não apenas para entender o Brasil atual,
a partir dos protagonistas ora capturados pela máquina avassaladora de picar e
reconstruir reputações e legados deformando-os.
Não só para repor o que está sendo
lixiviado, sangrado diariamente na mídia.
Mas ela, a memória, também é crucial
para repor o orgulho, a credibilidade, a confiança e, sobretudo, a faísca capaz
de religar a esperança que respirava naquela casa onde brotariam as sementes do
país que trinta anos depois vicejaria.
Esse que está sendo ceifado agora com
rancor inaudito, um Brasil que ainda não somos, mas que poderemos ser no século
XXI.
A metamorfose do improvável nas ruas do
país naqueles primórdios contradiz o impossível hoje elevado à condição de
permanente.
Não é hagiografia filmada.
É uma história real, de gente de carne e
osso.
Que se entregou sem se perguntar onde
era a porta de saída de volta à rotina, e o fez de peito aberto, pondo na mesa
empregos, filhos, o presente e o futuro, numa aposta contra o estabelecido, com
os riscos e a violência sabidos.
Gente comum se agiganta em circunstâncias
incomuns, ao não recuar diante delas.
Esse resgate feito de carne e osso é
indispensável para repor a grandeza e as fraquezas da carne e do osso humano na
fricção da história brasileira hoje sufocada pela mentira e o ódio.
Carta Maior recuperou uma das raras
entrevistas em que a personagem que hoje luta pela vida em uma UTI, assim como
lutou pela sua e a de milhões nesses 43 anos, rememora o seu olhar sobre os
acontecimentos desse início, cujo epílogo persiste em disputa.
A resistência ao esquecimento é um
pedaço dessa disputa.
A entrevista é de 2002, feita durante a
campanha que levaria o PT pela primeira vez ao governo.
É atual porque devolve a Marisa o
direito de se proteger daquilo que os indígenas mais temem diante de uma
câmera: o roubo de alma.
Da alma da mulher que ia visitar o
marido preso pela polícia política da ditadura sem fraquejar nem lhe pedir que
fraquejasse; da esposa e mãe, sozinha, que, ao contrário de todos os
prognósticos, quando o sensato era recuar e sumir, abriu a casa para ser o
sindicato quando os três sindicatos de metalúrgicos do ABC sofreram intervenção
na grande greve de 1979, coroada pelas lendárias assembleias de 60 mil pessoas
no estádio da Vila Euclides; a alma da mulher que organizou com outras mães e
esposas uma audaciosa passeata de
mulheres e filhos em uma São Bernardo tomada por tropas da repressão, em defesa
dos maridos, dos operários e sindicalistas presos; a alma da Marisa que
costurou a primeira bandeira do PT; e que se politizou assim, como protagonista
de uma história feita com as próprias mãos, sobre a qual nem ela, nem ele,
Lula, jamais seriam convidados a opinar se ficassem esperando o convite dos que
agora tomaram de assalto a engrenagem e a reescrevem com fel, ferro e fogo.
Repita-se, não é uma elegia à pureza dos
oprimidos.
É um enredo de luta entre opressores e
oprimidos.
Nessa fricção, virtudes e defeitos se
misturaram na implacável máquina de mastigação que é a experiência da política
e do poder no capitalismo que eles encararam sem se despir da única armadura
que sempre os acompanhou: a consciência de que viver é lutar.
A memória da senhora de 66 anos que hoje
trava a batalha pela vida não vale pelo saldo de pureza que ela até possa
externar.
Vale pelo legado desse percurso
inconcluso.
Feito de instituições e direitos que
ajudou a demarcar.
E de possibilidades que contribuiu para
esboçar na vida brasileira.
É nesse legado que repousa a
possibilidade deste país de presos degolados se tornar um dia uma sociedade
virtuosa.
Pautada em pedra e cal por direitos
entre iguais e por democracia entre diferentes, que só pode ser democracia se
for levada às últimas consequências na repartição do bem comum.
Inclusive para garantir a expressão de
quem hoje se posta diante do hospital onde Marisa e Lula travam a batalha de
vida e morte para persistirem nessa busca.
E ali destilar a represália dos que
rugem contra o enredo de filme à procura de um diretor que se desata aos nossos
olhos à simples menção da legenda indivisa: ‘Marisa e Lula’.
Abaixo, a entrevista de Marisa Letícia
ao site da campanha do PT de 2002:
(...)
Para Marisa Letícia Lula da Silva, 52
anos, esposa de Luiz Inácio Lula da Silva, 57, o candidato a presidente pela
Coligação PT-PL-PCdoB-PC-PMN, a casa nunca foi apenas o refúgio familiar, mas
também um ponto de intersecção de alguns dos fatos políticos mais importantes
que mudariam a face do Brasil nas últimas três décadas.
As greves do ABC, a repressão do regime
militar, a luta pelas Diretas, a fundação do PT e as campanhas presidenciais do
marido ganharam as ruas e viraram História, mas antes atravessaram a soleira da
porta e transitaram pela sala e a cozinha de Marisa. Em 1975, com um ano de
casamento, Lula chegou à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo (SP). Três anos depois, começaria o ciclo histórico de greves
no ABC paulista.
A política incorporou-se assim a sua
vida como algo natural, quase uma extensão da rotina doméstica frequentemente
adaptada para abrir novos espaços à mesa do almoço, ou receber visitantes que
desde os anos 70 passaram a ter na casa do líder metalúrgico um ponto de
referência nacional.
Lá estiveram senadores, deputados,
vereadores, personalidades de todos os matizes. Alguns se incorporaram à
família definitivamente. Frei Betto, por exemplo, cansou de dormir no chão da
sala durante as greves metalúrgicas dos anos 78/80, designado especialmente
pelo então Bispo de Santo André, Dom Cláudio Hummes, hoje arcebispo de São
Paulo, para ajudar na segurança de Lula.
Tornar-se a primeira-dama, a partir de 1º
de janeiro, portanto, é uma hipótese que não chega a sobressaltar essa neta de
italianos, mãe de quatro filhos, avó de dois netos, que começou a ganhar a vida
muito cedo.
Aos nove anos Marisa já trabalhava como
pajem; aos 13, ainda sem carteira regular de trabalho, empregou-se na fábrica
de chocolates Dulcora, em São Bernardo, onde ficou até os 21 anos.
Casada, tornou-se funcionária da rede
municipal de ensino, que deixou para cuidar dos filhos.
Nem sempre, porém, o trânsito do país
para dentro da casa foi tranquilo. Na greve de abril de 1980, Marisa e Lula
acordaram sobressaltados pelos gritos dos agentes do Dops - Departamento de Ordem Política e Social.
Eram cinco e meia da manhã, ainda estava
escuro. A residência cercada por homens de metralhadoras em punho foi
despertada por berros no portão: Cadê o Lula? Viemos buscar o Lula, viemos
buscar o Lula.
“Foi terrível, mas mantivemos a tranquilidade.
Lembro-me que ele ainda disse - calma, vou tomar um café antes de sair,
enquanto eu arrumava a mala”. Lula ficou preso 31 dias, saiu duas vezes nesse
intervalo. Uma para visitar a mãe agonizante; outra, para o funeral de dona
Lindu.
Diante da crescente exposição pública do
marido, Marisa preferiu a discrição aos holofotes. Mas por trás deles ajudou a
organizar passeatas de mães e filhos de metalúrgicos, em 1980, quando os
líderes estavam presos e o sindicato sob intervenção. Foi ela também que de
forma pioneira inaugurou o hábito da participação feminina na vida sindical do
ABC. Foi Marisa, ainda, quem cortou e costurou a primeira bandeira do PT - feita
em sua casa, claro -, quando da fundação do partido, em fevereiro de 1980.
Hoje, ela tenta preservar um pouco mais
a fronteira familiar, pelo menos nos raros fins de semana em que o marido está
no apartamento onde residem, em São Bernardo. “Proíbo conversa política e
filtro as ligações telefônicas. Notícia ruim, à noite, fica para o dia
seguinte”, sentencia com a voz firme, mas serena. Mais que simplicidade, seu
jeito reflete a maturidade de quem aprendeu na prática que tudo tem um tempo e
nada vinga sem esforço. “As coisas foram acontecendo aos poucos na nossa vida,
ao longo de anos de luta. A projeção do Lula foi a evolução natural de uma
pessoa de muita persistência. Quando quer algo, ele consegue”, diz com
conhecimento de causa.
Em 1973, viúva, mãe de um filho do
primeiro casamento, ela conheceu de perto a tenacidade do galante diretor do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
Foi um namoro rápido. Um cerco
telefônico e uma manobra ousada de ocupação do terreno do rival definiram as
núpcias, sete meses depois do primeiro encontro.
“Lula chegou em casa um dia e avisou meu
namorado que precisava tratar um assunto muito sério comigo. Mandou o sujeito
embora - pode?”, balança a cabeça ainda perplexa com a lembrança. Perseverança
equivalente ela identifica na sua trajetória política. “Em 1980, quando fui a
Brasília pela primeira vez, disse a Lula: eles não vão abandonar o poder nunca.
Hoje tenho certeza de que ele vai chegar lá. E espero que faça algo pela
juventude - tenho certeza que o fará. A violência me assusta. Quando leio os
jornais já nem presto atenção nos nomes, fixo apenas a idade das vítimas. É
terrível o que está acontecendo com os jovens no Brasil”, desabafa.
Aqui
os principais trechos da sua entrevista:
·
Qual a origem da
sua família?
Meus pais são descendentes de italianos.
O sobrenome do meu pai é Casa; o da minha mãe, Rocco. Meus avós, tanto do lado
paterno, como os do lado materno, conheceram-se no navio vindo da Itália.
Conheceram-se no mar, casaram-se em São Bernardo e tiveram vários filhos. Foram
posseiros e para não dividir as terras faziam casamentos entre eles, algo que
naquele tempo era normal. Tenho várias primas-irmãs: os irmãos de meu pai
casavam-se com as irmãs de minha mãe e vice-versa.
·
Em que bairro
eles moravam?
Atualmente chama-se bairro dos Casa, em
São Bernardo do Campo, antigo sítio dos Casa, onde meu avô fez a capela de
Santo Antônio, que está lá até hoje. A maioria dos irmãos do meu pai chama-se
Antônio; os de minha mãe também; o meu avô, idem.
·
Eles plantavam o
quê?
De tudo um pouco. Batata doce,
batatinha, milho. Tinha gado, tinha galinha, pato. Saí do sítio com cinco anos
de idade.
·
Vocês são em
quantos irmãos?
Minha mãe teve quinze filhos. Três
morreram ao nascer. Vivos, hoje, somos nove. Mamãe trabalhava na lavoura, os
maiores ajudavam e os menores ficavam num chiqueirinho cavado na terra. Minha
mãe deixava a gente ali dentro, para não fugir. Eu tinha uns dois ou três anos.
Sou a penúltima dos irmãos. Tenho irmã que poderia ser minha mãe, pela
diferença de idade.
·
Qual é o nome dos
seus pais?
Regina Rocco Casa e Antonio João Casa.
·
Foi uma infância
difícil?
Não, em casa tinha fartura. Como minha
mãe plantava e colhia e também tinha criação, nunca ninguém passou fome. Ela
fazia aquela galinhada, galinha com polenta para o jantar ou a minnestra, um
caldo de feijão com muito legume, arroz, carne...
·
Vocês frequentavam
a cidade?
A gente só saía para ir à capela. A
cidade era longe. Só por volta de 1955, quando minhas irmãs mais velhas
começaram a trabalhar nas tecelagens a gente saiu do sítio, aí em definitivo.
Meus irmãos também estavam buscando emprego nas fábricas de móveis. Mudamos
para o bairro Assunção. Meu pai comprou uma casa muito grande, com quintal onde
ele continuou criando seu porquinho, galinha, horta. Ficou sempre nessa vida.
Mas ainda não tínhamos luz, a água era de poço. Minha mãe cozinhava no fogão à
lenha. Foi nessa época que comecei a estudar, numa escolinha de madeira. Só na
terceira série é que fui para um colégio no centro, o Grupo Escolar Maria
Iracema Munhoz.
·
Qual era teu
sonho de vida?
Eu queria dar aula, gostava muito de
criança. Meu pai achava que mulher tinha que aprender a lavar, cozinhar e
costurar. Educação rígida, à antiga. Aos nove anos as meninas começavam a
ajudar dentro de casa. Eu não gostava muito dessas coisas, mas fiz cursinhos de
corte e costura, culinária...
·
Você começou a
trabalhar com que idade?
Aos nove anos. Fui ser pajem dos filhos
do sobrinho do Cândido Portinari, um dentista muito famoso em São Bernardo, o
Jaime Portinari. Ele tinha três filhas. Eu tomava conta dessas meninas porque a
mãe dava aula. Ela trabalhava à tarde e eu estudava de manhã, as duas no mesmo
colégio. Depois nasceu mais uma menina e eu com nove anos tomava conta de uma
recém-nascida. Morava nesse emprego, dormia lá.
·
Ficou muito
tempo?
Saí mocinha para trabalhar em fábrica,
na Fábrica de Chocolates Dulcora. Tinha 13 anos. Foi necessário tirar uma
carteira especial de menor, com autorização do pai. Tenho essa carteira até
hoje. Depois, com 14 anos, você já tirava a carteira normalmente. Eu comecei
como embaladora de bombom alpino.
·
Como era para
você trabalhar assim tão criança?
Sempre gostei de ser útil, adorava isso.
Era um sonho trabalhar fora, ter o próprio dinheirinho. Fazia com prazer, mas
hoje tenho consciência de que lugar de criança é mesmo na escola, com tempo
para brincar e aprender. Trabalhei na Dulcora oito anos. Saí para casar.
·
Seus pais eram
bravos?
Meu pai era muito enérgico, minha mãe
contornava as coisas. Mas namorar não podia, imagine! Minha mãe inventava
historinhas para a gente poder sair, mas era difícil. Das irmãs eu era a mais
rebelde. Gostava de participar de tudo, reuniões, centro cívico, festinhas de
igreja, meu pai não deixava...
·
E para namorar?
Namorar naquela época era bate-papo,
dava a mão, ele levava você até a esquina de casa e ponto.
·
Você tem alguma
lembrança política dessa época?
Não, nenhuma. A gente não tinha
televisão e meu pai proibia falar de política dentro de casa. Ele não gostava.
Nunca comentou o porquê. A gente sabia é que os avós tinham passado momentos
difíceis na Itália, vieram fugidos por causa de política e proibiam de falar no
assunto. Meu pai seguiu a regra. Televisão em casa só entrou quando eu já era
bem mocinha. Mas nós ainda rezávamos toda tarde, às seis horas. Paquera então,
só longe de casa, na Marechal Deodoro (rua central de São Bernardo), logo após
o cinema, à tarde. Comprava-se pipoca e depois era sobe e desce a Deodoro...
·
Com que idade
você teve o seu primeiro casamento?
Casei com o primeiro namorado, o Marcos,
aos 19 anos. Casei e continuei trabalhando. Só saí da Dulcora quando
engravidei. Marcos era motorista de caminhão, transportava areia. Como a gente
queria comprar casa própria, ele pegava o táxi do pai, que só trabalhava à
noite, para fazer bicos à tarde e nos fim de semana. Ficamos casados apenas seis
meses. Marcos foi assassinado quando eu estava grávida de quatro meses.
Trabalhava com o táxi num domingo à tarde quando foi assaltado e morto. Meus
sogros queriam demais essa criança, aí praticamente me adotaram. Fiquei morando
com eles até o Marcos completar um aninho. Então fui trabalhar num colégio de
Estado, como inspetora e substituta, mas contratada pela prefeitura. Aí voltei
para a casa de minha mãe, porque ela tinha mais tempo para tomar conta do nenê,
enquanto eu estivesse no serviço.
·
Como você
conheceu o Lula?
Eu recebia uma pensão de viúva. Naquela
época você tinha que passar em qualquer sindicato para recolher um carimbo e
depois receber no INPS. Costumava ir ao sindicato dos marceneiros. Mas houve
umas mudanças de local e a sede dos metalúrgicos passou a ficar mais perto para
mim. Foi assim que conheci o Lula, que trabalhava no Serviço de Assistência
Social do sindicato.
·
O Lula já
conhecia seu sogro?
É o que ele conta. Diz que eles se
conheciam porque tomava o táxi do seu Cândido às vezes. Os dois conversavam
sobre a nora viúva etc., mas ele não me conhecia, nem houve nenhum arranjo para
esse encontro entre nós. Foi pura coincidência a ida ao sindicato.
·
Ele atendeu você?
Não, foi um menino, um mocinho chamado
Luisinho. Expliquei que precisava do carimbo para receber a pensão. Diz o Lula
que já havia avisado a esse rapaz: assim que chegasse uma viuvinha nova, era
para chamá-lo porque ele também era viúvo (a primeira esposa de Lula, Maria de
Lurdes, operária tecelã, faleceu grávida e o filho também morreu).
·
O tal Luisinho
chamou mesmo o Lula?
Exato. Inventou que o carimbo estava com
um probleminha, foi lá dentro e quem voltou foi o Lula. Chegou e já senti que
havia algo diferente. Percebi logo, porque nunca precisou tanta cerimônia para
receber uma pensão que eu já tinha há três anos. O Lula disse que havia mudado
a lei, eu teria que deixar o carnê para renovar etc... E pediu meu telefone.
Caí que nem uma bobinha. Trabalhava na secretaria de uma escola na época. Desse
dia em diante o telefone não parou mais de tocar.
·
E você não
atendia?
Um dia atendi. Ele disse que já podia
passar para assinar a papelada. Cheguei, começou tudo de novo. Senta um pouquinho;
vou te explicar; aquele papo... Vamos tomar um cafezinho? Foi nessa hora que
deixou cair a carteirinha do sindicato e falou: tá vendo, eu também sou viúvo.
Respondi: ah é?
·
Nenhuma simpatia
nesse primeiro contato?
Não, naquele tempo, o que uma mulher
mais queria na vida era casar e ter um filho. Eu já tinha passado por essa
experiência. Mas ele não desistiu. Telefonava, insistia, por fim, marcamos um
almoço no São Judas, no bairro Demarchi (tradicional restaurante do ABC).
·
O Lula sabia que
você era nora do tal chofer de táxi?
Ele diz que ficou desconfiado, porque as
histórias batiam. Mas foi tudo coincidência. Jamais foi montado um encontro.
·
E o namoro como
começou?
Eu já tinha um namorado, vizinho da
família que eu conhecia desde criança. Uma coisa assim descompromissada. Mas o
Lula não queria saber. Um dia descobriu a minha rua. Chegou com um TL azul
turquesa. Viu uma senhora, pediu informações. Era justamente minha mãe. Eu
estava tomando banho para encontrar o namorado. Quando saio, quem está lá com a
minha mãe? O Lula. Pedi que fosse embora porque tinha um compromisso, mas ele
só deu uma voltinha com o TL e retornou. Chegou e foi logo dizendo para o meu
namorado dar licença, que tinha assunto muito sério a tratar comigo. Mandou o
cara embora. Pode? Aí já havia conquistado a simpatia de minha mãe porque era
um sujeito mais alegre, mais dado que o outro. Ela ofereceu um aperitivo, o
Lula entrou e, bom, tive que acabar o namoro porque ele já não saía mais de
casa...
·
Casaram-se rápido?
Depois de sete meses. Mas não casei
grávida não (risos). O Fábio, meu primeiro filho com o Lula, nasceu com nove
meses e nove dias depois do casamento. Depois, com um ano de casado, em 1975,
ele ganhou a eleição para a presidência do sindicato dos metalúrgicos.
·
Como foi essa
coisa de ele virar uma figura pública?
Eu não estranhei muito porque, como
disse, comecei a acompanhá-lo. Levava as esposas dos trabalhadores, organizava
festas, projetos sociais. Passamos a reivindicar a presença de mulheres nas
chapas. Então foi uma evolução junto.
·
E quando começam
as greves, veio o medo?
Medo a gente sempre tem um pouquinho.
Mas o dia a dia vai mostrando tanta força que muitas vezes você se pergunta:
será que eu fiz isso mesmo? Por exemplo, nós fizemos aquela passeata das
mulheres em 1980, quando os dirigentes sindicais estavam todos presos. Hoje,
você pensa, parece uma loucura. Encheu de polícia. Os homens queriam dar apoio,
mas nós dissemos, não, e saímos. Fizemos só com as mulheres. Botei as crianças
na rua, meus filhos no meio daquela multidão, polícia para tudo quanto é lado.
·
Como era para
eles ver o pai na televisão?
Tive que fazer um trabalho com isso, mas
acho que ficaram com uma cabeça boa. As coisas foram acontecendo aos poucos,
fomos nos adaptando. Quando ele aparecia na tevê eu brincava com os meninos:
querem ver seu pai, olha ele aí, porque eles já quase não viam mais o pai.
·
Você virou mãe e
pai?
É, mas foi tranquilo. Tinha reunião de
pais na escola, lá ia eu. Tinha joguinho dos pais, lá ia a mãe. Não tinha
problema, eu sabia que era importante.
·
A sua casa também
virou uma sucursal do sindicato?
Virou mesmo. Em 1980, tomaram o
sindicato da gente com a intervenção. Não tínhamos para onde ir. Desocupei a
sala da frente e disse: pronto, aqui é o sindicato. E a secretária era eu.
Vinham políticos, almoçavam, alguns dormiam lá em casa. Depois, montamos um
fundo de greve na Igreja, para arrecadação de alimentos. Aí desconcentrou um
pouco. Quem ajudou muito nessa época foi Dom Cláudio Hummes, que era bispo de
Santo André e hoje é arcebispo de São Paulo.
Vocês acabaram conhecendo muita gente nesse
processo. O Fernando Henrique Cardoso também?
Sim, sim, em 1978 quando ele foi
candidato ao Senado, o Lula apoiou, demos o maior apoio a ele. Foi nessa época
também que conhecemos os deputados do PMDB, Suplicy, Geraldinho Siqueira,
Sérgio dos Santos... Mas a gente ficava com um pezinho atrás, porque nós éramos
sindicalistas e eles, políticos.
·
E a prisão do
Lula, em 1980?
Nossa casa estava cercada há muito
tempo. Policiais na esquina, gente rondando à noite. Eu tinha um pouco de medo
pelas crianças. Mas tinha consciência de que estávamos mudando alguma coisa
importante. Depois, o irmão do Lula, o Frei Chico, já havia sido preso. Preso
político. Fomos visitá-lo, conversamos muito. Aquilo tudo foi deixando um
sentimento de revolta em mim. Eu sabia que era preciso mudar. E para mudar
alguém tinha que enfrentar aquela situação porque se ficasse pensando como meu
pai, que não queria nada com política, as coisas não sairiam do lugar nunca.
·
Quando o Lula
decolou como liderança, o que você sentiu?
Achei que era isso mesmo, um momento
importante, algo que alguém precisava assumir. Tinha orgulho. Mas também sentia
falta dele, claro, sentia falta de ter alguém com quem conversar, discutir...
·
E a prisão?
Então, a casa estava cercada há várias
semanas. Frei Betto, Geraldinho Siqueira, o Jacó Bittar, o Olívio Dutra e
vários outros dormiam lá para nos dar alguma cobertura.
·
Como é que vocês
conheceram o Frei Betto?
Olha, foi até gozado. Um dia o Lula
avisou: vem um frei almoçar aqui. Para mim, tudo bem, almoçava tanta gente lá
que não fazia diferença. Come o que tem. O Lula precisou sair e lá pelas tantas
me aparece na porta um jovem. Eu estava esperando um frei, com aquela bata,
chinelo, um velhinho, enfim, com roupa toda marrom. Então me aparece um
rapazinho e diz: - Sou o Frei Betto, trouxe uma pasta para o almoço. Respondi
brincando: você pensa que nesta casa não tem comida? Somos grandes amigos até
hoje.
·
E quando a
polícia chegou?
Bom, primeiro, ligaram dizendo que o
motorista do deputado Geraldinho Siqueira havia sumido. Saiu para buscar
jornais e sumiu. Fomos dormir. Cedinho bateram no portão. Era umas cinco e
meia. Tudo escuro. Frei Betto atendeu - Cadê o Lula, nós vamos levar o Lula,
nós vamos levar o Lula... Um bando de homens armados de metralhadora com uma
Veraneio que fechou a saída da garagem, onde ficava o nosso Fiat. Meu quarto
dava para a rua. Acordei assustada, chamei - Lula, Lula, estão aí atrás de
você.
·
E ele, apavorou?
Nada. Falou exatamente assim - Calma,
calma, vou tomar meu café, trocar de roupa, manda esperar. Eu queria que o Frei
Betto e o Geraldinho acompanhassem a viatura, mas eles já tinham prendido o
motorista do deputado justamente por isso. E barraram a saída do nosso Fiat.
Foi uma cena horrorosa, metralhadoras para tudo quanto é lado, mas as crianças
não acordaram, graças a Deus. Pegaram o Lula, enfiaram dentro do carro e
sumiram. Não falaram nada, nada. A gente não sabia para onde o levariam. Até o
Fiatizinho esquentar, já tinham desaparecido. Então começamos a ligar para Deus
e o mundo, e descobrimos que estava no DOPS. Ele e vários outros. Foram pegando
todo mundo da diretoria do sindicato.
·
Lula tomou o tal
café?
Tomou, trocou de roupa...
·
E as crianças?
Não falei sobre a prisão num primeiro
momento. Dei um tempo em banho-maria, depois expliquei devagarzinho, direitinho
para não assustar. Mas eu tive problemas com o mais velho na escola. O Marcos
se recusava a ir à aula. Quando fui saber, eram colegas que acusavam: seu pai é
bandido. Está preso, é bandido. O Marcos sentava lá na frente, eles jogavam
aviãozinho dizendo essas coisas. Acabei permitindo que ele se afastasse por um
tempo, o que o levou perder o ano letivo. No semestre seguinte fui à escola e
falei com a diretora. Expliquei o que havia acontecido e disse que elas
deveriam esclarecer as crianças. Esse tipo de preconceito não podia continuar.
Só então o Marcos voltou aos estudos.
·
O Marcos era
filho do seu primeiro casamento?
É. Eu o ensinei a chamar o Lula de tio,
mas ele preferia pai mesmo. Aos nove anos, disse ao Lula que queria ter o mesmo
sobrenome dele. E o Lula assumiu isso legalmente com alegria, com a maior
satisfação. Hoje ele é Marcos Cláudio Lula da Silva.
·
Nesse período da
prisão morreu a mãe do Lula?
Ela já estava muito mal, com câncer,
queria ver o filho. Nós conseguimos que o Lula saísse uma vez da prisão, antes
da morte, coisa que pouca gente sabe. Convencemos o Romeu Tuma (diretor do Dops na época) a permitir essa visita.
Depois, ele voltou para o velório. Saí do Dops
com o Lula. Mas quando chegamos ao enterro os trabalhadores cercaram o carro da
polícia. Estavam revoltados. Lula pedia calma. Mas os operários haviam parado
as fábricas, eram ônibus e ônibus que chegavam, uma situação tensa, de nervos à
flor-da-pele, que exigiu muita habilidade e liderança do Lula.
·
As crianças foram
visitar o pai no Dops?
Foram. Preparei os meninos. Expliquei
como era para eles não terem medo. Disse que tinha polícia, mas que o papai
estava bem, contei sobre o lugar, enfim, tentei evitar surpresas que
assustassem uma criança. Quando chegamos, o Tuma disse: -Olha, dona Marisa, é
melhor a senhora ir para a minha sala com as crianças que eu vou buscar o Lula.
Quando ele apareceu na porta, o Fábio pensou que a cela era ali e falou - Papai
você não tá preso, você tá num hotel! Tinha quatro aninhos.
·
Quando você ouviu
falar em PT pela primeira vez?
Nesse tempo a discussão já havia
começado, em pequenos grupos, lá em casa. No início, muitos políticos diziam:
Lula, para que criar outro partido, basta entrar num dos que já existem. Mas
ele respondia: quero criar um partido diferente de todos, um partido dos
trabalhadores. A primeira bandeira do PT eu é que fiz.
·
Como é essa
história?
Eu tinha um tecido vermelho, italiano,
um recorte guardado há muito tempo. Costurei a estrela branca no fundo
vermelho. Ficou lindo. A gente não tinha núcleo, não tinha nada. Minha casa era
o centro. Começamos então a estampar camisetas para arrecadar fundos. Vendíamos
uma para comprar duas. Estampava a estrelinha, vendia, comprava mais. Foi assim
que começou o PT.
·
Você se lembra da
primeira vez em que se falou de Lula na Presidência?
Em 1980, Lula foi julgado no Superior
Tribunal Militar, em Brasília. Foi a primeira vez que visitei a capital.
Fizemos um passeio e o guia foi mostrando as mansões, aquela ostentação toda.
Quando acabou eu disse - Lula, vamos parar com tudo isso: esses caras não vão
deixar você chegar ao poder nunca. Eles não vão largar isso aqui jamais. Fazem
qualquer coisa, mas não abandonam essa vida...
·
Você mantém essa
opinião?
Não, hoje não mais. O PT cresceu muito e
na verdade já começou a mudar o país. Tem prefeituras, tem governos de estado.
A mudança começou. Mas ainda vão resistir muito. Vão lutar muito para deixar a
gente chegar ao poder. Mas hoje temos chance. O povo está descontente demais.
Além do que, existe uma característica do Lula que pesa muito. É algo que vem
de berço: o Lula quando quer uma coisa consegue. E ele vai conseguir melhorar
esse país. Ele mudou na época da ditadura militar, não mudou?
·
O que te dá mais
medo no Brasil hoje?
A violência. Os nossos jovens são a
principal vítima. Quando leio os jornais já não olho nem nome, nada. Fixo-me na
idade: uns moleques, viu? Só moleques. É o que me dá mais medo, me dá dó, dá
pena. Mas eu sei que se essa juventude tiver a chance de uma escola, uma boa
educação e trabalho, o país muda.
Muda. Tenho certeza que muda.
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