A nova etapa da
Lava-Jato
A
nova etapa da Lava-Jato e a dificuldade da esquerda para lutar contra os
arbítrios jurídicos
Miguel do Rosário
A quinta-feira amanhece quente em todo
Brasil, como esperado.
A rotina do golpe não apresenta mais
surpresas, a não ser que haverá nova surpresa, novo arbítrio e novo golpe,
todos os dias.
A Lava-Jato iniciou uma nova fase, a
Operação Eficiência, cheia de prisões preventivas (incluindo aí de Eike Batista)
e conduções coercitivas desnecessárias.
A esquerda sumiu do mapa. Mas como ela
pode lutar contra o arbítrio jurídico?
Ela – a esquerda – aprendeu a lutar a
batalha política. Venceu muitas eleições. Quando a direita descobriu, todavia,
que a fórmula do sucesso é manter a luta na esfera jurídica, a esquerda ficou
completamente desorientada. Até porque é muito fácil manipular a esquerda.
Prenda-se um rico aqui, mande-se investigar um adversário político, e pronto: a
esquerda, acostumada à luta partidária, onde o adversário é o mau, é aquele que
deve ser destruído, como irá agir?
Num de seus maiores clássicos, o 18 de
Brumário, Marx tentou explicar isso à esquerda, mas é complicado mesmo:
como o grande capital é capaz de se voltar contra a sua própria classe, contra
a própria burguesia e contra seus próprios representantes políticos e
empresários, como fez Luís Napoleão, para angariar apoio popular, ganhar
eleições e, em seguida, consolidar o domínio do… grande capital.
É assim a Lava-Jato: ela destrói as
grandes empresas nacionais de construção civil, destrói seus negócios no Brasil
e no exterior e o passo seguinte é a Petrobras contratar apenas… empresas
estrangeiras, mesmo que estas estejam envolvidas em grandes esquemas
internacionais de corrupção. O grande capital terá conseguido, enfim, dominar o
mercado brasileiro de construção civil, à custa de milhões de desempregados,
redução dos investimentos em infraestrutura, devastação política, aniquilamento
ou controle das instituições políticas e financeiras que ainda eram governadas
pelo princípio da soberania popular, como o BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa e
o próprio governo federal.
O grande capital terá ampliado, assim, o
seu domínio sobre uma das maiores economias do mundo.
Como o próprio procurador-geral da
República definiu brilhantemente, durante sua participação em Davos, onde foi
mostrar quem manda no Brasil: a Lava-Jato é pró-mercado…
Na luta jurídica, o objetivo não é
destruir o adversário e sim fazer prevalecer alguns princípios.
Por exemplo, alegar presunção de
inocência em favor de um adversário é o que se pode esperar de mais oposto à
lógica da luta partidária.
Aécio, Cunha, Sérgio Cabral, Eike
Batista? Presunção da inocência para eles? Não me faça rir, diz o lutador
partidário.
A diferença mais profunda, porém, entre
as lutas política e jurídica, é que a jurídica, ao contrário da luta política,
é ferozmente contramajoritária, porque entende que os preconceitos mais
arraigados, mais violentos, estão justamente na consciência popular.
A esquerda, por sua vez, aprendeu a
ganhar os votos do pobre, porque defende políticas públicas boas para ele, mas
não tem instrumentos, não na política, para mudar preconceitos jurídicos
atávicos, como aqueles relativos, por exemplo, à cultura do linchamento, pela
qual o adversário deve “pagar” pelo que fez. Isso vale tanto para o adversário
partidário como para o de classe.
Em seu livro As Origens do Totalitarismo,
Hannah Arendt analisa, melancolicamente, as dificuldades e a indiferença dos
partidos políticos de esquerda, da França do final do século XIX, com os
arbítrios evidentes que se levantaram, numa maquinação jurídica do Estado muito
semelhante ao que vemos na Lava-Jato (assim como foi parecido com a Ação Penal
470), contra Alfred Dreyfus. Dreyfus era um militar judeu muito rico,
arrogante, que sempre gostou de ostentar suas riquezas. Como a esquerda
francesa, mergulhada até o pescoço na luta de classes, poderia defendê-lo?
Arendt, porém, é implacável em sua condenação a essa postura da esquerda,
porque, na época em que escreveu seu livro, já sabia muito bem quais seriam as
consequências, para toda a humanidade.
Arendt detecta, em seu estudo, que as
lideranças de esquerda eram simpáticas à causa, quer dizer, queriam defender
Dreyfus, mas, assim como hoje a esquerda em relação à Lava-Jato (a esquerda
hoje quer criticar, sabe que tem algo de errado, mas não sabe como agir), não
sabiam como aquilo poderia lhes gerar algum benefício político. Quando
Clemenceau, famosa liderança da esquerda francesa, resolve comprar, embora
tardiamente, a luta em defesa de Dreyfus, perde as eleições seguintes. No
entanto, essa mesma liderança, Clemenceau, alguns anos depois, quando a onda na
opinião pública virou, se tornou o mais poderoso político francês do primeiro
quarto do século XX, ocupando o cargo de primeiro-ministro duas vezes entre
1906 e 1920. A coragem de Clemenceau, embora aparentemente não lhe tenha gerado
lucro político num primeiro momento, granjeou-lhe um sólido prestígio, que
durou toda a sua vida.
Se o PT tivesse assumido uma postura
mais corajosa e assertiva desde o início das conspirações midiático-judiciais,
lá em 2005, talvez estivesse hoje, mais de dez anos depois, numa situação muito
mais confortável.
E assim, eu já testemunhei colegas da
esquerda defendendo punições a qualquer custo, mesmo conscientes da ilegalidade
do processo, dos empreiteiros acusados pela Lava-Jato, com o argumento de que
eles seriam “uns filhos da puta que exploram o povo há muitos séculos”. Não
percebem que este ódio de classe, que já é, por si, um tanto vulgar (além de
hipócrita), está sendo manipulado contra eles mesmos, contra a democracia,
contra o povo brasileiro?
Na luta jurídica, contudo, não há esse
maniqueísmo vulgar. Ninguém deve ser condenado por razões políticas, muito
menos por razões de classe, e sim porque a Justiça encontrou provas de sua
participação individual num crime específico. E mesmo assim, mesmo que essas
provas existam, jamais a pena do indivíduo deve incluir o peso de uma culpa
histórica e social, como tem feito o esquema golpista, desde o mensalão.
Por exemplo, qual o sentido em condenar
o almirante Othon Silva, pai da energia nuclear brasileira, a 43 anos de
prisão?
Num debate do qual eu participei no ano
passado, um professor de Ciências Políticas me disse, à socapa, quando
conversávamos sobre o caso do cientista, algo como “me desculpe, mas Othon
Silva roubou”.
Primeiramente, não acredito nisso. Não
vi provas suficientes de que o almirante Othon Silva tenha “roubado”. A
acusação da Lava-Jato é contra suas consultorias, que teriam somado alguns
milhões ao longo de muitos anos. Não achei suficiente, até porque é natural que
um especialista em energia nuclear preste consultorias sobre… energia nuclear,
e ganhe bem. O ministro da Justiça também ganhou muito dinheiro com consultoria,
mais que o doutor Othon Silva, não precisou sequer provar nada, e o STF
arquivou o processo…
Em segundo lugar, condenar um homem de
quase oitenta anos a quarenta anos de prisão?
Que país do mundo condena o seu
cientista nuclear mais importante a 43 anos de prisão? Só mesmo o Brasil da
Lava-Jato.
A esquerda brasileira contava, até
então, que a elite liberal, por uma questão de bom senso, tivesse essa função,
através da mídia, de conter os instintos mais violentos do povo. E inclua-se,
aí, nesse povo, todo mundo, incluindo classe média e ricos, que não são mais
sofisticados que ninguém em se tratando de cultura jurídica.
Mas a elite liberal foi a primeira a ser
neutralizada culturalmente pela grande mídia e pela Lava-Jato.
E assim a Lava-Jato, que alguém disse
que comeria Aécio em primeiro lugar, vai antes comendo todo mundo, porque sabe
muito bem dosar o “timing” de suas operações.
A Lava-Jato manipula o próprio PT, e a esquerda
em geral, desde o início da operação. E quando eu falo Lava-Jato, entenda-se a
inteligência que a governa, que não é, evidentemente, a do PowerPoint, e sim a
da Globo, que controla a narrativa.
Quando aumentam, nos setores
progressistas, as críticas à operação, a Lava-Jato divulga uma delação contra
alguém do outro lado, seja um tucano, seja alguém ligado ao governo Temer. Ou
seja, sacrifica algum cordeiro gordo de seu próprio rebanho, fazendo a esquerda
acreditar que, se aprender a falar direitinho o idioma do adversário, poderá
vencê-lo nesse terreno.
E assim, vemos deputados do PT tentando
atacar seus adversários dizendo que eles são “investigados pela Lava-Jato”,
como se isso significasse alguma coisa. Ora, seguindo essa lógica, Lula é o
“comandante máximo” da corrupção no Brasil…
Eu fico, primeiramente, irritado com
isso, mas depois tenho até compaixão, porque entendo as dificuldades políticas
de um parlamentar, que passou a vida inteira lutando na esfera partidária, de
repente mudar a chave de seu discurso, e aprender as técnicas marciais da luta
jurídica.
Veja o caso dessa nova etapa da Lava-Jato:
para que novas conduções coercitivas? Para que novas prisões preventivas? A
realidade já mostrou, com as tragédias que ocorreram nas últimas semanas, que o
sistema prisional brasileiro explodiu, justamente pelo abuso de prisões
preventivas e provisórias, ou seja, sem condenação. Não cabe mais gente. E o
que faz a Lava-Jato? Aposta mais ainda na prisão preventiva, que é aquela
determinada antes mesmo que o indivíduo possa se defender, antes mesmo, muitas
vezes, que ele sequer saiba do que está sendo acusado.
A esquerda poderia pôr seus think tanks para lhe ajudar nessa luta,
mas ela não tem think tanks… A
fundação Perseu Abramo, do PT, publica apenas boletins chorosos sobre a
criminalização dos movimentos sociais, sem avançar nenhuma reflexão minimamente
sofisticada sobre a questão jurídica. As centrais sindicais, igualmente se
investir em inteligência, repetem chavões…
Semana passada, participei de um debate
com um deputado famoso da esquerda carioca. Havia só gente de esquerda. Em
determinado momento, comentou-se sobre a prisão de Sérgio Cabral. O deputado
mencionou, com orgulho, que o ex-governador não estava recebendo nenhuma
regalia. Até aí tudo bem. Mas aí ele falou o que seria uma dessas “regalias”:
Cabral teria pedido uma tela antimosquito para sua cela. O Estado não deu. O
deputado falou aquilo como se fosse muito positivo que o Estado recusasse, a um
ser humano, uma proteção básica contra mosquitos, num país tropical, em pleno Verão,
na época em que vivemos o auge de graves epidemias de dengue, febre amarela,
zika etc.?
Que espécie de barbárie está tomando
conta do Brasil?
www.ocafezinho.com 26/01/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário