segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Privatização dos aeroportos


QUINTA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO DE 2017

Privatização dos aeroportos

Só espero que todos aqueles que consideravam que 'concessão não era privatização' antes de 2016 agora tenham refletido o bastante a respeito do equívoco.

Paulo Kliass *


Inicio meu dia com a leitura de uma notícia que me deixou um pouco atordoado. Não devo ter entendido bem. A matéria trata de um suposto “plano de criação de uma subsidiária da Infraero para ficar com os aeroportos lucrativos ou potencialmente rentáveis que ainda não foram privatizados”. Ou seja, o governo Temer considera a hipótese de constituição de uma empresa estatal em meio a esse discurso todo liberalóide de supremacia do mercado sobre o setor público? E a tão falada crise fiscal a ser combatida por todos os meios? No mínimo, esquisito.


Antes de cair no discurso simplista de que agora todos os sinais estariam trocados, acho importante recuperar no tempo o histórico e o debate a respeito do setor aeroportuário. Lembro-me como se fosse ontem, mas essa polêmica teve início quatro anos atrás. Escrevi um artigo em fevereiro de 2012, onde eu criticava a iniciativa da Presidenta Dilma de promover um festival de concessões de serviços públicos e de infraestrutura para iniciativa privada.
Ao longo do texto eu procurava identificar os equívocos de tal estratégia de cunho inequivocamente liberal, argumentando que havia um conjunto amplo de formas de privatizar as estruturas da administração pública. Desse ponto de vista, promover a concessão de ferrovias, portos, rodovias e aeroportos para a exploração pelo capital nacional e internacional configurava-se em uma modalidade bastante conhecida e utilizada de privatização pelo mundo afora.

Os adeptos do chapabranquismo a todo custo não hesitaram em me criticar. Eu estaria fazendo o jogo da direita, ao criticar a proposta do governo. Eu não estaria percebendo o óbvio: concessão não seria privatização. As condições para a transferência das atividades ao capital privado naquele momento seriam muito menos danosas ao erário público do que as experiências promovidas por governos tucanos. E por aí seguia o blábláblá. Mas não havia meio de dourar a pílula.

Dilma e a nova fase de privatização da infraestrutura.
Infelizmente Dilma não deu ouvidos aos muitos que alertávamos para os riscos envolvidos em tal operação suicida, que significa uma perigosa mudança de rota em direção aos braços dos representantes da ortodoxia liberal e dos hábeis negociadores que se especializaram em fazer fortunas sugando os recursos públicos de forma ilegal e/ou ilegítima. E assim foi dado início a mais uma etapa do processo de aprofundamento da privatização da infraestrutura em nosso País.
À época, o enorme esforço de contorcionismo retórico dos defensores do indefensável se concentrou no argumento de que “concessão não é privatização”. O recurso a tal muleta era mesmo uma necessidade até mesmo de sobrevivência política. Afinal, como dormir sossegado à noite ou discutir com os colegas que até a véspera eram críticos do processo privatizante que tantos males havia causado ao Brasil e à maioria do nosso povo? Árdua tarefa!
Ocorre que não poderiam ignorar que a venda do patrimônio de uma empresa estatal para o empresário é apenas uma dentre as inúmeras formas de privatização que o mundo capitalista já conseguiu conceber e realizar. Pode-se privatizar a gestão de uma empresa ainda de maioria acionária do Estado por meio de facilidades e acordos oferecidos ao mundo do capital. Pode-se privatizar a estrutura de serviços de saúde, por exemplo, por meio dos contratos de gestão oferecidos às famosas organizações sociais. Pode-se privatizar o ensino universitário ao ampliar desmesuradamente a oferta de vagas em instituições privadas – tudo isso com a mão generosa do Estado assegurando recursos para programas como o Prouni e o Fies. Enfim, reduzir o debate a “concessão vs privatização” é uma falsa polêmica. Os termos dessa equação não são antagônicos.Como escrevi logo depois, ainda em 2012, considero que concessão é iguala a privatização.
Concessão é uma forma de privatização.
Assim, pode-se também promover a privatização de serviços públicos por meio de contratos de concessão ao capital. É esse o caso de portos, ferrovias, metrôs, energia, telecomunicações, hidrovias e aeroportos, entre tantos outros. Mas desçamos ao detalhe dos terminais aeroportuários, que nos interessa mais nesse momento. O processo foi feito de maneira lenta, retirando da empresa estatal federal responsável pelo setor a atribuição exclusiva de tal operação. A Infraero foi perdendo a responsabilidade pela gestão de seu patrimônio. Ela foi sendo obrigada a abandonar a sua própria razão de ser, em última instância.
Em agosto de 2011 foi realizado o leilão de um aeroporto ainda pouco conhecido: São Gonçalo do Amarante (RN). A concessão teve início em janeiro do ano seguinte, com todas as fichas tendo sido colocadas no potencial de turismo internacional, especialmente europeu, com destino ao Nordeste brasileiro.
Na sequência, foi realizado um movimento mais ousado, com a entrega de três aeroportos mais apetitosos em termos de potencial de faturamento. Em fevereiro de 2012, foi realizado o leilão em que o governo Dilma ofereceu Brasília (DF), Guarulhos (SP) e Viracopos (SP) ao capital privado. As concessões aos consórcios  tiveram início alguns meses depois, em julho do mesmo ano.
O terceiro lote finaliza essa primeira etapa, quando são outorgados os direitos exploratórios das unidades do Galeão (RJ) e de Confins (MG), que também se localizam dentre os terminais brasileiros de maior movimento e de grande potencial econômico-financeiro. Em meio aos representantes do governo no processo figuravam Moreira Franco e Eliseu Padilha, que não se continham em louvar a participação tão desejada de grupos internacionais nas novas gestões “competentes, profissionais e privadas” dos aeroportos sob nova direção. Os leilões foram realizados em novembro de 2013 e as concessões privadas tiveram início em maio de 2014.
Entre 2011 e 2014 foram 6 aeroportos concedidos.
As generosidades foram concedidas por períodos de exploração que variam entre 20 e 30 anos, com uma média pouco superior a 26 anos nesses 6 primeiros casos. Os detentores do capital privado foram contemplados com recursos públicos para suas operações e têm sido sistematicamente beneficiados com medidas de elevação de tarifas aeroportuárias e condições favoráveis às concessionárias. Apesar da Infraero ainda manter uma participação minoritária formal na composição acionária, a empresa federal não participa da gestão de nenhum dos aeroportos concedidos.
Dando sequência a esse cronograma, o governo Temer definiu a concessão ao mundo privado de outros quatro aeroportos igualmente estratégicos. Os terminais de Porto Alegre, Salvador, Florianópolis e Fortaleza deverão ser leiloados em 16 de março próximo. A conjuntura de crise tem apresentado uma série de incertezas a respeito da disposição do “espírito animal” do empreendedorismo privado em recolher os valores aos cofres públicos em troca do potencial de arrecadação de receita futura.
Essa deve ser, aliás, uma das razões para a surpreendente proposta da nova/velha dupla Moreira Franco e Eliseu Padilha de constituir uma nova empresa pública para atuar na área. Assim, os terminais mais saborosos seriam transferidos para a estatal a ser constituída, com o objetivo declarado de resguardar os “bons” ativos da Infraero e facilitar sua transferência ao capital privado.
Temer prepara o novo pacote de terminais privatizados.
Dessa forma, mantém-se a racionalidade do processo privatizante. Oferecer ao capital toda a sorte de bondades e reduzir ao máximo os riscos da operação. O Estado permanece com a responsabilidade de oferecer serviços aeroportuários de menor rentabilidade, em localidades mais distantes dos centros de maior movimento. Ao mesmo tempo em que fica com o osso do sistema, o setor público se encarrega de oferecer o filé mignon ao capital privado em troca de alguns poucos e minguados recursos apresentados nos leilões. Vale observar que esses lances serão ainda mais desvalorizados em função da recessão que nos aflige. 
Aliás, todos os investidores estão de olho para saber quando e como serão privatizados Congonhas (SP) e Santos Dumont (RJ). Eles são aeroportos muito bem localizados e com alto potencial de exploração econômico-financeira. Ambos simbolizam quase à perfeição o caso típico de prévio investimento pesado do Estado para depois oferecer o empreendimento prontinho para o usufruto seguro por parte do consórcio privado.
Só espero que todos aqueles que consideravam que “concessão não era privatização” antes de 2016 agora tenham refletido o bastante a respeito do equívoco e venham se somar na denúncia de mais essa tentativa de oferecer ao capital privado nacional e internacional a responsabilidade pela gestão dos aeroportos brasileiros.
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Texto original: CARTA MAIOR

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