Na Paulista vazia e na economia à
deriva, o golpe acumula sinais de um encontro marcado com um upgrade: Gilmar.
Saul Leblon
Apartados do fundamento das urnas, os
golpes de Estado são reféns de uma natureza intrinsecamente canibal.
A mediação dos conflitos se dá pela
espiral dos golpes dentro do golpe.
Não é uma surpresa histórica que o
assalto ao poder consumado em agosto de 2016 acumule sinais desse encontro
marcado com a própria sina.
Contradições insolúveis ameaçam romper a
fina película da formalidade que orientou a ação inconstitucional desde a farsa
do impeachment até aqui.
A violência do desmonte econômico a serviço
do qual uma escória política e parlamentar foi alçada à capatazia do Estado
brasileiro corrói rapidamente os laços da aventura com a sua própria base.
O fracasso das manifestações em apoio à
Lava-Jato, domingo (26), é um sintoma desse esfarelamento.
Nem mesmo a classe média que se avoca
parte da elite dirigente encontra-se a salvo da demolição em marcha do Estado e
das bases do desenvolvimento.
Em pior hora ela se percebe parte de uma
nação.
A reforma da previdência expulsou-a da
zona de conforto para um degrau de incerteza futura no qual se nivela aos
segmentos dos quais sempre teve a obsessão de se descolar.
O desmonte dos instrumentos de comando
da economia por Brasília e Curitiba devora o chão dos pés humildes, mas também
o piso das varandas gourmets.
Desde 2014, 50 mil engenheiros perderam
emprego no Brasil. Assim sucessivamente.
O relógio da crise avança em rota de
colisão com o das urnas de 2018, que tem como favorito Luiz Inácio Lula da
Silva.
Compreende-se a sofreguidão nervosa dos
cronistas embarcados para trazer notícias frescas de uma recuperação econômica
sempre adiada.
À falta dela, o cinismo cunhou o termo
‘despiora’.
É sintomático: enquanto a vida real
acumula 13 milhões de desempregados e a taxa de ociosidade em alguns setores
industriais chega a 50%, como nas fábricas de caminhões pesados, cronistas
falam de um ‘fim de ano inédito, com inflação na meta e juro de um dígito’.
Enaltecem a paz salazarista que reina no
cemitério das nações.
Essa que já destruiu a engenharia pesada
brasileira; desmontou o setor naval, o de óleo e gás; entregou o pré-sal;
descarnou a Petrobras; implodiu a CLT; devolveu as relações trabalhistas a uma
arena selvagem pré-Vargas e congelou direitos sociais por vinte anos.
A ação é de tal ordem irresponsável que,
mesmo retalhando o orçamento, a conta não fecha, sob impacto do efeito
contracionista na receita fiscal.
A queda da arrecadação empurrou o
neoliberalismo aloprado a um cavalo de pau nos seus próprios termos.
Em meio à pior recessão em um século,
recorre-se à elevação de impostos como recurso desesperado para conter o
déficit na faixa de explosivos R$ 140 bilhões até dezembro.
Que chances teria nas urnas o candidato
desse furdunço estratégico que golpeou a democracia em nome do mercado e agora
ameaça enterrar os dois na mesma cova recessiva?
À falta de nomes, recorre-se ao recurso
clássico: um golpe dentro do golpe.
O roteiro está nas entrelinhas do
jornalismo embarcado.
Descarta-se Temer; consumada a vacância presidencial
abre-se avenida da eleição indireta para a qual qualquer excrescência serve à
sanção de uma escória parlamentar amarrotada no bote de salva-vidas.
A opção mais oferecida é a do incansável
‘garante’ da ‘legitimidade’ em todas as frentes antissociais, antinacionais e
antidemocráticas: Gilmar Mendes.
Respira-se esse cheiro azedo de togas e
ternos empapados da sofreguidão nervosa que marca as escaladas de demolição do
Estado de Direito nos solavancos da História.
Consulte os anos 30 na Alemanha, os 50
do macarthismo norte-americano, os 60 da ditadura brasileira, os 70 do massacre
chileno...
Era esse o clima de dane-se o pudor por
parte das elites e da escória que a serve.
Faz parte desses crepúsculos
institucionais a perda dos bons modos e a convocação das soluções de exceção,
enquanto o “jornalismo isento” finge não ver a curva ascendente do arbítrio.
Com a mesma desenvoltura com que se
anistiou montanhas de dólares remetidos ao exterior, o ‘candidato’ Gilmar
Mendes pilota sua quase-campanha impulsionado por duas bandeiras.
·
Bandeira 1: a
anistia ao ‘caixa 2 do bem’ (o dos amigos);
·
Bandeira 2: a
anulação de delações vazadas, que ora prejudicam círculos tucanos e
assemelhados.
Quando a caixa d’água furada de Curitiba
vazou velhacamente a gravação ilícita da conversa telefônica entre Lula e
Dilma, a toga-mor reagiu diferente.
Achou ‘normal’.
Mais que normal: Gilmar recomendou ‘foco
no conteúdo’. E a mídia foi para apoteose unida, com os desdobramentos sabidos.
É um padrão; que ora se repete.
Dá para ouvir os gritos da democracia
sendo violada na sala ao lado, enquanto os jornalistas irradiam notícias da
‘despiora’ que, sugestivamente, requer um impostaço de emergência.
A falta de escrúpulos reflete a
antessala de uma truculência que sobe rápido os degraus da exceção; do golpe
dentro do golpe.
Essa é a hora diante da qual a
resistência progressista não pode mais piscar.
O óbvio hoje começa por defender Lula -
presencialmente até e cada vez mais, diante do cerco do arbítrio que se
intensifica.
Por quê?
Porque sem defender Lula não será
possível defender mais ninguém, e mais nada, do galope desembestado da ganância
rentista montada na cumplicidade togada.
Por ninguém, entenda-se o Brasil
assalariado e o dos mais humildes.
A imensa maioria da população, enfim.
Aquela que vive do trabalho, depende de
serviços públicos, tem seu destino atado ao do país, ao do pré-sal, ao da
reindustrialização, ao da democracia social, carece de cidadania, respira pelo
salário mínimo e enxerga na CLT e na Previdência os únicos anteparos ao
infortúnio no presente e no futuro.
Lula é a espinha histórica das costelas
que precisam se unir para conter a des-emancipação social fria e calculista em
marcha no país.
Desempenha essa função por uma razão
muito forte.
Essa que o milenarismo gauche parece ter
esquecido - ou hesita em saber que sabe - enquanto aguarda o juízo final de Moro para recomeçar do zero.
‘Recomeçar do zero’ é a profilaxia
recomendada pelos sábios do golpe em todas as frentes.
‘Sim, vamos esquecer o passado’.
Mas, principalmente: vamos esquecer
Lula.
Porque ele é – ainda é Lula - a inestimável
referência de justiça social a qual a imensa parcela dos brasileiros de hoje e de ontem se reconhecem.
É dele a voz rouca que quando fala é
ouvida no campo e nas cidades.
Mais que simplesmente ouvida: respeitada
e compreendida numa algaravia de credibilidades arrasadas.
A resiliência dessa voz é que ela não
carrega só palavras.
Carrega experiência, luta, erros,
acertos, raiva, riso, derrotas, vitórias, cujo saldo são conquistas coletivas
encarnadas em holerite, comida, casa, universidade, emprego, autoestima e
esperança.
Lula é a espinha dorsal de cuja
destruição depende o êxito do torniquete de interesses mobilizados contra a
construção de uma democracia social na oitava maior economia do mundo,
principal referência da luta apelo desenvolvimento no Ocidente.
FHC disse-o em um debate no jornal O
Globo, em outubro do ano passado, dois meses depois do golpe, quando a guilhotina
no pescoço de Lula parecia iminente:
‘Sem Lula o PT seria apenas um partido
médio; com ele torna-se um perigo nacional’.
No fundo, queria dizer:
‘Sem Lula, o Brasil se torna uma nação
média, humilde, bem-comportada - por assim dizer, domesticável’.
Com Lula, o Brasil se transforma em uma
possibilidade de soberania com capacidade de aglutinação popular e mundial em
torno do desenvolvimento para a justiça social – uma mistura de consequências
perigosas...
É claro como água de fonte.
Lula representa esse diferencial
inestimável.
Ele fala com quem a Globo gostaria de
falar sozinha.
Com o Brasil que os Marinhos gostariam
de monopolizar sem dissonâncias.
E quase conseguem – exceto quando a voz
rouca atravessa o monólogo do fatalismo conservador.
Por isso o milenarismo gauche que reage
à ofensiva de Moro aceitando a pauta do juízo final, flerta com a eutanásia.
‘Recomeçar do zero’ é tudo o que o
conservadorismo mais cobiça para quebrar o coração da resistência ao golpe.
O coração da resistência ao golpe
consiste em não aceitar o fuzilamento sumário do legado de doze anos de luta
por um desenvolvimento mais justo e independente.
Ademais dos erros e equívocos cometidos -
que não podem ser subestimados e devem ser discutidos para que não se repitam -
os acertos mostraram a viabilidade de se construir uma democracia social no
Brasil do século XXI.
Isso não é pouco.
Aliás, é tanto que a força dessa
possibilidade no imaginário nacional levou o capital local e imperial a considerar
que era hora de acionar um justiceiro de Curitiba para faxinar a história de
sua ‘nódoa inaceitável’.
Lula.
Por essa mesma razão, com objetivo
inverso, dia 3 de maio será preciso defender essa possibilidade histórica,
presencialmente até.
Nesse dia Moro vai interrogar Lula. As
possibilidades de um Gilmar Mendes dentro do golpe vão depender muito do que
acontecerá nesse dia em Curitiba.
Quem vai organizar as caravanas?
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