A crise que engolfa a República desde
2013 é eminentemente política. E na política é que devemos procurar uma saída.
Os desarranjos econômicos, de velha data, são consequências que não encontrarão
alternativa se tratados como fenômenos em si, como querem os economistas
oficiais e tonitrua a grande imprensa.
Roberto Amaral*
A crise, política, não nasceu com ele,
mas agravou-se profundamente com o golpe de Estado midiático-parlamentar
instalado com a deposição da presidente Dilma Rousseff.
O golpe se inaugura com o impeachment,
mas nele não se esgota, pois o ato de força era, apenas, o ponto de partida
para o golpe maior, ora em processo, a saber: a instauração, sem apoio na
soberania popular, de um radical projeto neoliberal, antinacional, antipopular,
recessivista, antitrabalhista e antidesenvolvimentista que presentemente se
empenha, com lamentável sucesso, na desconstrução do País, mediante o
desmantelamento do Estado democrático voltado para o social, a desmontagem da
ordem constitucional-jurídica, da economia nacional e dos direitos sociais, em
nome dos interesses do capital financeiro, internacional e rentista.
Como consequência das características
ideológicas do ‘Projeto’, a crise, originalmente política, tende a
transformar-se, perigosamente, em crise institucional com desfecho que nem as
pitonisas de plantão podem prever.
Tratemos
dessa ameaça
São vários e robustos os indicadores
dessa tendência que nos faz recordar os idos dos anos 1950 e 60, lembrando que
a História não se repete, sabemos todos, a não ser a primeira vez como tragédia
e a segunda como farsa.
O que nos aguarda?
A fonte da crise,
político-institucional, é a ilegitimidade do Poder, e para essa doença não há
remédio fora da reconstrução da ordem político-constitucional pela única via
conhecida pelo direito democrático, uma Constituinte.
Para quando? Convocada por quem? Fruto
de um novo pacto ou simplesmente produto da explosão político-social?
Um dos indicadores dessa crise é a
desconstituição do Estado democrático com a transferência permanente de poderes
a órgãos despossuídos de amparo na soberania popular, órgãos intermediários da
burocracia estatal que se investem de um império sem base no ordenamento
constitucional, transformam-se em ‘poderes’ autônomos e, como tal, são aqueles
únicos que não observam limitações ao seu agir. Não conhecem o país nem se
reconhecem nele. Habitam um Olimpo idealizado no espaço, uma peça de ficção sem
compromisso com a realidade, reinando sobre a História, sobre os homens e sobre
as coisas, sem vínculos com o país e seu destino. Vicejam no vácuo ensejado
pela ilegitimidade ética e constitucional do novo ‘regime’, frágil pela origem,
por seu agir, e como súcia acossada pelos tribunais.
Não é trivial que, de uma forma ou de
outra, sejam acusados de atos de improbidade o dito presidente da República e
seis de seus ministros, além dos presidentes da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal, e que, entre os senadores alvos de delação, se perfilem o líder
do governo e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça.
A ilegitimidade do poder derivado do
golpe midiático-constitucional permitiu que, dentro da estrutura burocrática
estatal, emergissem órgãos atuando como se fossem ‘poderes’ da República, que
só conhece o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Mas, hoje, o
procurador-geral da República se comporta como chefe de poder e o Poder
Judiciário renuncia ao seu papel de guardião da Constituição para agredi-la em
sucessivas decisões, e na mesma medida invade a competência legiferante,
privativa do Congresso Nacional.
Um juiz de piso não se peja de cometer
arbitrariedades e atua, nos processos ao seu encargo, como promotor e delegado
de polícia.
Um ministro do Supremo e presidente do
TSE se transforma em assessor privado de políticos que, mais dia menos dia,
terá de julgar.
Veja-se o desplante e o escárnio:
presidente do TSE reúne-se com o presidente da República que por ele será
julgado na ação de impugnação da chapa Dilma-Temer, e encontra-se com
presidentes de partidos governistas para discutir uma proposta de reforma
constitucional que assegure a sobrevivência dos parlamentares acusados de
corrupção.
No TSE, vale-se de seu papel de
presidente para tentar manipular o tribunal e livrar o presidente da República
da iminente cassação de seu mandato, nesse e nos demais casos agindo sem
disfarçar sua condição de ministro vinculado aos interesses do governo e do
PSDB, interesses que se projetam em sua atividade judicante.
Entre um convescote e outro, presente
diariamente na mídia, Gilmar Mendes deita falações sobre processos em andamento
no STF e no TSE.
Está virando regra a aproximação de
ministros em jantares palacianos ou não com advogados e membros do Executivo e
do Legislativo.
O ministro Alexandre Moraes, ex-chefe de
polícia de Geraldo Alckmin em São Paulo, deverá fazer crescer a lista dos
comensais, pois num barco-garçoniére estacionado no Lago do Paranoá foi
encontrar-se com senadores que, no dia seguinte, julgariam sua indicação para o
STF.
Gilmar Mendes também nisso faz escola.
As diatribes do ministro Gilmar Mendes,
useiro e vezeiro em agredir o decoro e a isenção que se devem exigir de um
magistrado, justificaram o ingresso, por juristas eminentes, junto ao Senado
Federal, de dois pedidos de impeachment. As peças foram recusadas pelo eminente
e notório senador Renan Calheiros, então presidente da Casa. A recusa, porém,
faz sentido: o longevo senador por Alagoas é portador de cinco processos e será
julgado no STF, por, entre outros, o ministro Gilmar Mendes.
Essas observações me foram despertadas
pelo insólito duelo verbal da semana passada entre o ministro Gilmar Mendes e o
procurador-geral da República, personagens centrais da lamentável, pobre e abastardada
vida política nacional.
O ministro, em sessão da 2ª turma do STF
– visivelmente abespinhado com a divulgação pela imprensa de nomes de próceres
do PMDB e do PSDB constantes da ‘lista do Janot’ – acusa a PGR do crime de
vazamento seletivo de depoimentos de delatores da Lava-Jato lavrados nos autos
sob sua guarda, e ainda a acusa de querer ‘passar por cima do STF’,
transformando-o em um fantoche seu.
Diz a certa altura: - “(…) vazamento de
informações sob sigilo é eufemismo para um crime”; “Quem não tiver essa noção
... Não é digno de ocupar os cargos que porventura está a ocupar”; “A mídia não
estaria divulgando nomes se esses nomes não tivessem sido fornecidos”; “Não
tenho dúvidas de que aqui está narrado um crime. A Procuradoria não está acima
da lei”; “a divulgação de dados sob sigilo é uma ‘forma de chantagem implícita
ou explícita. É uma desmoralização da autoridade pública’” [FSP, 22/3/2017].
Em discurso na Escola do Ministério
Público da União, em Brasília (no último 21 de março) o procurador-geral, após
afirmar que as críticas à PGR vinham de “mentes ociosas e dadas a devaneios” e
por quem teve interesses contrariados pelas suas ações, acusa Gilmar Mendes de
“decrepitude moral” e “disenteria verbal”.
Por fim, em sua catilinária, trata, para
repudiá-la, da promiscuidade de ministros com os palácios do poder e a
imprensa, numa referência óbvia a Gilmar Mendes: “Procuramos nos distanciar dos
banquetes palacianos. Fugimos dos círculos de comensais que cortejam
desavergonhadamente o poder público. E repudiamos a relação promíscua com a
imprensa.”
O STF
escolheu fazer ‘ouvidos de mercador’ para o duelo de acusações, e assim, o
melhor que se pode dizer é que todos têm razão em seus conceitos recíprocos.
* Roberto Amaral é cientista político e
ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
Fonte: Blog
do Roberto Amaral
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