Constituinte para quem?
Uma nova Constituição agora seria
naturalmente uma carta autoritária, reacionária, deslavadamente entreguista,
antipovo e antinação.
As forças dominantes da Constituinte de 1946
estavam unidas em torno de um projeto liberal-democrático.
E hoje?
São diversas, por óbvio, as
óticas mediante as quais é possível interpretar a História, passo primeiro
e indispensável para a correta intervenção no processo social.
A História pode ser vista como
processo, derivado da intervenção humana, como também pode ser vista, e o é
frequentemente, como um fato autônomo, objetivo, pronto, acabado, parado.
A primeira hipótese lembra uma
sucessão de fatos que se encaixam segundo uma determinada lógica que se
expressa mediante o movimento, ou, mais precisamente, uma progressão dialética;
a segunda lê a História como quem contempla um fotograma, uma pintura, um
quadro de arte pendurado na parede.
Essa visão é irmã gêmea do dogma.
Nela, a verdade é atemporal, a realidade está congelada, as palavras de ordem e
os pleitos políticos estão imunes à intervenção da vida real.
Ilustração desta visão é o enredo do
romance A ponte do Rio Kwai, do francês Pierre Boulle, que se
fez mundialmente conhecido pelo filme (de mesmo nome) que teve Alec
Guinness num dos melhores momentos de sua longa carreira cinematográfica.
A história é simples, é possível
resumi-la.
Prisioneiro dos japoneses, na II
Guerra Mundial, o Cel. Nicholson é intimado a construir uma ponte, fundamental
para a estratégia nipônica. Nosso herói não apenas aceita o encargo como o
executa, comandando sua tropa de prisioneiros ingleses com rigor técnico,
esmero e dedicação, até paixão, porque é assim que sua formação ética dirige
seu trabalho e sua vida. Não lhe confrange, porém, saber que aquela ponte era
fundamental para o esforço de guerra japonês. Fala mais alto seu compromisso
com a engenharia. E quando os soldados americanos e ingleses chegam para destruir
o engenho, o pobre Nicholson, desesperado, tudo tenta para salvá-lo. Porque o
fundamental, para ele, era sua honra depositada na obra, e exatamente por isso
ele a defendia com unhas e dentes, sem cogitar das consequências de seu
uso pelos japoneses.
Essas imagens me ocorrem quando
setores da esquerda brasileira, mais próximos de Hegel do que de Marx, estão a
defender a convocação de uma Constituinte, para já, sem cogitar da correlação
de forças que determinará sua composição e seu conteúdo.
Nada mais legítimo e nada mais
necessário do que uma Constituinte para “passar o País a limpo”, como reclamava
Darcy Ribeiro. Mas, antes, precisamos desmantelar o golpe e reconquistar a
sociedade.
A Constituinte de 1946 instalou-se
após a queda de Vargas e a de 1988, na sequência da derrubada da ditadura
militar. Ambas foram precedidas de grandes mobilizações populares e,
principalmente, avanço político, mas mesmo assim estivemos longe de conquistar
a hegemonia, embora tenha sido possível muitas conquistas na ordem democrática
e social com o texto de 1988.
O atestado de sua relevância é o
denodo com o qual os presidentes eleitos sob o novo regime constitucional se
empenharam na sua descaraterização.
Nesse sentido foram campeões José
Sarney e FHC, aquele que prometeu “enterrar a era Vargas”, depois de pedir que
esquecêssemos o que havia escrito em seu tempo de sociólogo.
Como é sabido, não tivemos forças
para salvar os principais avanços – e assim a Constituição ‘cidadã’ sofreu 95
emendas que atingiram, principalmente, os direitos trabalhistas, a defesa da
economia nacional e nossa soberania.
Mesmo assim nos trouxe até aqui. Para
desestabilizá-la fez-se necessário um golpe de Estado reacionário que reuniu ao
capital rentista o atraso político do agronegócio e as mais reacionárias seitas
religiosas, como os diversos setores do neopentecostalismo.
São símbolos dessa desmontagem – que
nos desafia – a “reforma trabalhista” cujo único objetivo é retirar direitos
que remontam há mais de 60 anos, fragilizando ainda mais o trabalho em face do
capital, e a reforma da Previdência, que pretende punir aqueles que mais
dela necessitam, os pobres. Cogita-se, até, de acabar com a Justiça do
Trabalho, acusada de protetora da classe operária.
Mas nada é tão significativo dos
crimes em andamento que o projeto de certo líder tucano que simplesmente
pretende revogar a Lei Áurea! Sua excelência propõe que a jornada de
trabalhador rural passe para 12 horas e em vez de salário receba comida e choupana
para morar.
A alta burguesia rural, protegida
pelo Estado sob seu controle, beneficiária de empréstimos que não são pagos,
consumidora dos investimentos da Embrapa,
descomprometida com objetivos nacionais, voltada para o mercado exterior, não
faz concessão na luta de classe, num didatismo que torna incompreensível
aqueles que ainda apostam na conciliação.
O outro lado dessa luta de classe,
que se opera contra os trabalhadores e contra o país, é o avanço de uma visão
reacionária, protofascista, de Estado e sociedade, disseminada diariamente,
insistente e sistematicamente pela mídia monopolizada ideologicamente. Uma
imprensa que desde muito renunciou ao jornalismo para transformar-se em
trincheira do pensamento e da ação de direita.
Esse proselitismo tem dado frutos,
como lembra o esforço midiático visando à desestabilização da presidente Dilma,
a campanha pelo impeachment, a implantação do golpe. E, presentemente, sua
sustentação.
Um e seus frutos – e nesse afã a
razia fascistoide conta com a colaboração de setores desgovernados do Poder
Judiciário e do Ministério Público –, é a desmoralização da política, dos
políticos e dos partidos.
Para quê e por quê?
Ora, não há possibilidade de vida
democrática sem partidos e sem políticos. A desmoralização da política e dos
políticos foi o aríete da direita brasileira, que, com a omissão comprometedora
dos liberais e a ação da imprensa, criou as condições subjetivas necessárias ao
golpe de 1964.
Essa mesma tática é renovada
presentemente, com os mesmos objetivos.
Sem descartar as perspectivas futuras
de uma Constituinte, a tarefa do curto prazo é a defesa da ordem constitucional
democrática, ponto de partida para a retomada da hegemonia, e a salvação, sem
casuísmos, das eleições de 2018.
Aos pobres e deserdados a democracia
é fundamental, tanto quanto o governo de exceção é o regime de preferência das
classes dominantes.
Lamentavelmente, não estão presentes
as condições políticas que asseguraram a convocação das constituintes de 1946 e
1988, e muito menos os textos democráticos que legaram.
Esta é a questão central, pois a
política, em qualquer tempo e onde quer que se experimente, é produto da
correlação de forças.
E esta, hoje, não nos é favorável.
Esta conclusão mais do que óbvia, não
descarta o projeto maior – uma Constituinte –, apenas nos adverte da
necessidade de conhecer previamente sua oportunidade, pois seu projeto só se
justifica, para nós, como instrumento de avanço dos interesses da democracia e
das grandes massas.
Esta é a questão fulcral: não se
trata, para nós, da defesa pura e simples de uma Constituinte, mas de uma
determinada Constituinte. Tanto assim que a direita também a reivindica,
pelas páginas autorizadas do O Estado de S. Paulo,
e pela pena de seus intelectuais orgânicos, de que é exemplo o ‘Manifesto’
assinado por Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias.
A Constituinte das elites –
condicionada pelo monopólio político-ideológico, reacionário e golpista, dos
meios de comunicação de massa associados ao capital internacional – é a
promessa, hoje, de uma carta autoritária, reacionária, deslavadamente
entreguista, antipovo e antinação.
Já a Constituinte de que carecemos,
sustentada pelas ruas cheias de povo, é aquela que – a partir de novo pacto –
tenha forças para escrever uma Carta que retome as conquistas históricas de
nossa gente e avance no plano da democracia.
Hoje, não temos condições de garantir
esse salto de qualidade.
Para nos habilitarmos à Constituinte,
projeto de médio prazo, precisamos cuidar de nossas organizações
partidárias, em crise exposta, e contribuir para a reorganização do movimento
social, de que a Greve unitária de 28 de abril foi um marco.
Esses dois objetivos construirão as
bases políticas necessárias à construção de uma Frente Ampla (como a que
precipitou a derrota da ditadura em 1984) na qual, ao lado das esquerdas,
orgânicas ou não, caibam todos aqueles que conosco estejam dispostos a resistir
e derrotar o atual governo. E precisamos, por óbvio, travar a luta ideológica.
Ao lado da resistência congressual e
popular, contra as ‘reformas’ da ordem do dia do Planalto, precisamos discutir
com a sociedade os diversos projetos de reforma política, que podem definir as
condições de disputa das eleições de 2018, que precisamos assegurar (e só a
mobilização popular assegurará) em condições de justa competitividade.
Essa reforma, à mercê desse Congresso
e do conluio com o Planalto, jamais será aquele que fala aos interesses
das massas, mas, a contar com nossa capacidade de mobilização, poderá
compreender alguns avanços, como a continuidade da proibição do financiamento
privado das campanhas eleitorais de par com seu barateamento, o voto em listas
fechadas, e o fim da reeleição.
Ao fim e ao cabo, uma certeza: nunca
foi tão importante para as forças populares a defesa da ordem constitucional
democrática, agredida por um governo ilegítimo e um Congresso sem
representatividade.
*
Cientista político e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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