Joaquim de Carvalho
No dia 2 de julho do ano
passado, um grupo de blogueiros, com o Centro de Estudos de Mídia Alternativa
Barão de Itararé e o Mega Cidadania à frente, foi ao Ministério Público Federal
no Rio de Janeiro e entregou uma representação com 25 páginas do processo da
Receita Federal em que os donos da TV Globo são responsabilizados pela prática
de crime contra a ordem tributária.
O procurador recebeu os
documentos e encaminhou para a Polícia Federal, que abriu inquérito. “Tinha
grande esperança de que o crime fosse, finalmente, apurado, em razão da
independência do Ministério Público”, diz Alexandre César Costa Teixeira, autor
do blog Mega Cidadania.
No último 7 de outubro, dois
dias depois do primeiro turno das eleições, o inquérito foi arquivado, por
decisão do delegado Luiz Menezes, da Delegacia Fazendária da Superintendência
da Polícia Federal no Rio de Janeiro. A decisão teve endosso do Ministério
Público e foi acatada pela 8ª Vara Federal Criminal do Estado.
“A frustração é muito grande.
Eu me empenhei muito para que esse caso não ficasse impune”, disse Alexandre,
ao saber que a representação dele e de seus amigos acabou no arquivo da Justiça
Federal.
“Eles não chamaram nenhum de
nós para depor, mesmo sabendo que fomos nós que conseguimos as páginas do
processo que havia desaparecido da Receita. É um absurdo”, afirma. “O
sentimento é de indignação”, diz ele, que já foi funcionário do Banco do Brasil
e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Alexandre faz parte de uma
rede que atuou na internet, em junho do ano passado, para fortalecer as
manifestações de rua. Foi ele quem entregou a Miguel do Rosário, do site O
Cafezinho, os documentos que incriminavam a Globo, o que provocou, em julho de
2013, uma manifestação em frente à porta da Globo, na rua Von Martius, Jardim
Botânico, em que foram distribuídos adesivos com a frase “Sonegação é a maior
corrupção”.
O processo desapareceu da
Receita Federal no dia 2 de janeiro de 2007, quando já estava separado para que
uma cópia fosse encaminhada ao Ministério Público Federal, com uma
representação para fins penais, em que Roberto Irineu Marinho, João Roberto
Marinho e José Roberto Marinho são apontados como responsáveis por crimes
contra a ordem tributária.
Uma investigação da Receita
Federal apontou a agente administrativa Cristina Maris Meinick Ribeiro como
responsável pelo sumiço. A prova mais forte contra ela é um vídeo que registra
a sua entrada e saída da Delegacia da Receita Federal.
Na entrada, Cristina Maris
aparece com uma bolsa. Na saída, além da bolsa, ela tem uma sacola, onde,
segundo testemunhas, estavam as três pastas do processo.
Seis meses depois do crime, a
agente administrativa acabou presa, a pedido do Ministério Público Federal, mas
ficou apenas dois meses e meio atrás das grades.
Sua defesa, formada por cinco
advogados, conseguiu no Supremo Tribunal Federal um habeas corpus, numa decisão
em que o relator foi o ministro Gilmar Mendes.
Em janeiro de 2013, Cristina
Maris foi condenada a 4 anos e onze meses de prisão. O juiz que assina a
sentença escreveu que Cristina agiu “com o evidente propósito de obstar o
desdobramento da ação fiscal que nele se desenvolvia, cujo montante
ultrapassava 600 milhões de reais.”
No mesmo processo em que foi
condenada por ajudar a Globo, Cristina Maris respondeu à acusação de interferir
no sistema de informática da Receita Federal para dificultar a cobrança de
impostos de outras três empresas.
Cristina Maris vive hoje num
apartamento da Avenida Atlântica, esquina com a Rua Hilário de Gouveia, em
Copacabana, mas não dá entrevista. Informado de que eu gostaria de conversar
com ela, o porteiro acionou o interfone e, depois de falar com alguém, disse
que ela não estava.
O processo da Receita Federal
permaneceu desaparecido até que Alexandre conseguiu com um amigo cópia de 25
páginas do processo e as entregou para Miguel do Rosário, que publicou em O
Cafezinho.
Eu fui apresentado ao amigo
de Alexandre em um apartamento no centro da cidade. Sob condição de não ter seu
nome revelado, ele me levou, no dia seguinte, a uma casa no subúrbio carioca, e
ali telefonou para outra pessoa, a quem pediu para trazer “a bomba”.
Não eram apenas 25 páginas,
mas o processo inteiro, original.
Meia hora depois, chegaram
dois homens, um deles com uma mochila preta nas cotas.
Abrigaram a mochila e tiraram
de dentro os dois volumes do processo, mais o apenso.
Os documentos são originais,
inclusive os ofícios da TV Globo, em papel timbrado, em que a empresa,
questionada, entrega os documentos exigidos pela Receita Federal.
Alguns desses documentos são
os contratos em que a Globo, segundo o auditor fiscal Alberto Sodré Zile,
simula operações de crédito e débito com empresas abertas no Uruguai, Ilha da
Madeira, Antilhas Holandesas, Holanda e Ilhas Virgens Britânica, a maior parte
delas paraísos fiscais.
Esses contratos, que o
auditor Zile classifica como fraude, têm a assinatura de Roberto Irineu Marinho
e de João Roberto Marinho. TV Globo, Power, Porto Esperança, Globinter, Globo
Overseas são algumas das empresas que fazem negócios entre si para, ao final,
adquirir uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, a Empire, que tinha como
sede uma caixa postal compartilhada com Ernst & Young Trust Corporation e
detinha os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002.
Analisada superficialmente, a
papelada indica que a Globo tem uma intensa atividade internacional, e está em
busca de novos espaços no exterior. Vistos com lupa, como fez o auditor da
Receita Federal, esses documentos mostram que tudo não passou de simulação.
As empresas são todas
controladas pela família Marinho e os contratos são de mentirinha. No fundo, o
que a Globo busca é se livrar do imposto de renda que deveria ser pago na
fonte, ao comprar os direitos de transmissão da Copa do Mundo.
O amigo de Alexandre
esclarece que os dois homens que guardam a bomba não pertencem à quadrilha que
faz desaparecer processos das repartições públicas do Rio de Janeiro, a qual a
ex-funcionária da Receita Federal Cristina Maris prestou serviço.
Os processos estiveram em
poder da quadrilha até que o amigo de Alexandre conseguiu resgatá-lo da única
maneira que se negocia com bandidos: pagando o preço do resgate. Ele não diz o
valor.
Alexandre recebeu os
originais e quis entregá-los à Polícia Federal num fim de semana. Mas, ao saber
que se tratava do inquérito da Globo, o delegado de plantão teria se recusado a
ficar com os documentos.
Alexandre decidiu então esperar
ser chamado para depor, oportunidade em que entregaria uma cópia do processo ou
mesmo o original, caso o delegado quisesse. Mas a intimação que ele esperava
receber nunca chegou.
“Dizem que o processo da
Receita Federal foi remontado, com cópias fornecidas pela Globo. Seria
interessante comparar o original com esse processo remontado, se é que foi
remontado”, afirma.
Na sexta-feira da semana
passada, eu procurei o delegado encarregado do inquérito, Luiz Menezes.
Quando perguntei do
inquérito, ele disse: “Esse inquérito já foi relatado e foi para a justiça
federal.” Quando perguntei sobre a conclusão dele, respondeu: “Arquivo”. Por
quê? “A Globo apresentou o DARF de recolhimento do imposto.” O senhor se lembra
de quanto era o DARF? “Não”.
Na 8ª Vara Federal Criminal
do Rio de Janeiro, a informação que obtive é que, no dia 7 de outubro, o
processo deixou de existir, tomando o caminho do arquivo, como sugerido pelo
delegado, com a anuência do Ministério Público Federal.
Sobre a hipótese de ter havido
crime de lavagem de dinheiro, cuja punibilidade não é extinta mesmo com o
pagamento de imposto atrasado, o delegado Luiz Menezes não quis falar.
Por que um processo que
desapareceu dos escaninhos da Receita Federal em janeiro de 2007, beneficiando
a TV Globo, sobreviveu no submundo do crime?
Segundo o amigo de Alexandre,
a situação saiu do controle da Globo quando o processo caiu nas mãos de um
homem que tentou extorquir dinheiro da empresa.
“A Globo pagou para fazer
desaparecer o processo da Receita e teria que pagar de novo”, diz.
Aqui entra uma versão em que
é difícil separar a lenda da verdade.
Com a ajuda de um aparato
policial amigo, a Globo teria tentado retomar os documentos à força, mas a
operação falhou, e o processo continuou no submundo até que foi trazido à luz
pela militância na internet.
Hoje, mesmo contendo
informações de teor explosivo, as autoridades querem distância do processo.
“A Globo é blindada. Nós
tentamos chamar a atenção para o problema, mas ninguém se dispõe a ouvir”, diz
Alexandre.
Na época da Copa, Alexandre
procurou as empresas de outdoor do Rio de Janeiro, para divulgar um anúncio em
que informa da existência do processo e pede a apuração.
A campanha era assinada pelos
blogueiros, mas nenhuma empresa de outdoor aceitou abrigar a mensagem.
Enquanto órgãos oficiais não
investigam o caso, o processo da Receita Federal que envolve a Globo continuará
sendo transportado em mochilas no subúrbio do Rio de Janeiro.
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