“Comunistas" em Harvard ?
Suplicy
encontrou aliados.
abs Weber
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· ZUCKERBERG EM HARVARD,
ELE DEFENDEU A IDEIA DE RENDA MÍNIMA GARANTIDA PELO ESTADO. O DONO DO FACE NÃO
ESTÁ SOZINHO NESSA CRUZADA SOCIAL (FOTO: PAUL MOROTTA/GETTY IMAGES)
O tradicional discurso de
formatura da universidade Harvard teve um teor político incomum este ano.
Convidado a falar de suas experiências e valores aos graduandos de uma das mais
importantes universidades de negócios do mundo, o bilionário Mark Zuckerberg,
fundador do Facebook, deixou de lado as fronteiras da tecnologia, das redes
sociais e do empreendedorismo digital. Escolheu como tema central “a criação de
propósito”. E defendeu como caminho uma alternativa ainda polêmica, mas que vem
ganhando espaço no mundo: a de que os Estados garantam uma renda mínima a seus
cidadãos, independentemente de classe socioeconômica, para que eles deem conta
de despesas básicas como alimentação, moradia e saúde. Sim, aqui no Brasil a
gente já ouviu um bocado sobre isso, assunto preferido e projeto de vida do
ex-senador Eduardo Suplicy, do PT. Virou até folclore, mas, na prática, não
saiu do papel: seu projeto de Renda Básica de Cidadania, transformado em lei em
2004, nunca foi regulamentado. Zuckerberg ainda não conversou com Suplicy, mas,
na formatura de Harvard, já falou como ele: “Chegou a hora de nossa geração
definir um novo contrato social. Deveríamos explorar ideias como a da renda
básica universal para garantir que todos tenham segurança para testar novas
ideias”.
A proposta de inclinação
socialista na boca de um dos homens mais ricos do mundo pode soar estranha. Mas
Zuckerberg não é doido, nem está sozinho. Ele faz parte de um grupo de
lideranças do Vale do Silício que vêm ampliando a visibilidade de um movimento
internacional em favor da renda básica universal, organizado em rede desde
meados dos anos 80. Elon Musk, fundador da Tesla, a montadora de carros
elétricos que recentemente ultrapassou a Ford em valor de mercado, declarou em
fevereiro que o modelo é possivelmente a melhor solução para lidar com a crescente
abundância de bens e a escassez de empregos geradas pelas novas tecnologias.
Albert Wenger, sócio da Union Square Ventures, empresa de capital de risco com
aplicações em companhias como Duolingo, SoundCloud e Kickstarter, escreveu um
livro em que defende a ideia, chamado World After Capital (“Mundo pós-capital”,
em uma tradução livre). E Sam Altman, presidente da Y Combinator, investidora
de estrelas da nova economia como Airbnb, Reddit e Dropbox, não só é favorável
ao modelo como está bancando, por meio da companhia que dirige, um experimento
do tipo em Oakland, na Califórnia – o projeto começou este ano distribuindo
entre US$ 1 mil e US$ 2 mil mensais a cem participantes, e deve crescer para
mil participantes nos próximos meses.
O tema é antigo e tem atraído
pensadores à direita e à esquerda do espectro político. Formas de renda básica
universal são discutidas ao menos desde a Antiguidade. Entre seus defensores ao
longo da história estão nomes como o do matemático e ativista político Antoine
Caritat, marquês de Condorcet; o político britânico Thomas Paine, um dos
signatários da independência dos Estados Unidos; e o pensador John Stuart Mill,
autor de Princípios da Economia Política. Em décadas recentes, a ideia atraiu a
atenção de economistas liberais como Milton Friedman e Paul Krugman. E por
muito pouco não foi implantada pelo governo americano, na década de 70, sob o
governo Nixon – com o escândalo de Watergate e a renúncia do presidente, o
projeto acabou enterrado. Para muitos liberais, o modelo é atraente por abrir a
possibilidade de simplificação dos sistemas de seguridade social e eliminar a
burocracia relacionada a eles. Para a esquerda, é uma forma de reduzir
desigualdades sociais geradas pelo capitalismo.
A ONG GIVEDIRECTLY ESCOLHEU UM VILAREJO RURAL DO QUÊNIA
PARA AVALIAR OS EFEITOS DA RENDA MÍNIMA SOBRE A POPULAÇÃO (FOTO:
DIVULGAÇÃO/GIVEDIRECTLY)
UM MUNDO SEM
EMPREGO
Mas existe um motivo bem mais
inquietante pelo qual o tema se tornou recorrente nas declarações públicas dos
bilionários do Vale do Silício. Com novos avanços da tecnologia, incluindo a
Inteligência Artificial, são grandes as chances de que muitos postos de
trabalho deixem de existir nos próprios anos. E não somente trabalhos de baixa
qualificação, como dirigir um táxi. Estudo recente da consultoria McKinsey
indica que 45% das atividades hoje remuneradas podem ser automatizadas com
tecnologias já demonstradas. Na lista estão trabalhos feitos atualmente por
executivos de finanças, médicos e CEOs. Só nos Estados Unidos, essas atividades
rendem atualmente cerca de US$ 2 trilhões anuais em salários.
O estudo
foi feito lá fora. Mas trata-se de uma realidade cada vez mais presente também
no Brasil. Por aqui, há exemplos, como o da EDP, que ilustram a velocidade das
transformações em curso. A companhia de energia de origem portuguesa já tem
mapeados mais de 190 processos em sua operação no país que pretende robotizar
nos próximos três anos. A promessa é a de que os funcionários que antes se
dedicavam às tarefas automatizadas sejam realocados ou assumam funções
estratégicas. Mas Miguel Setas, presidente da EDP no Brasil, admite que haverá
dispensas.
Há no mundo uma intensa
controvérsia sobre os efeitos da tecnologia na redução dos postos de trabalho.
Uma corrente defende que para cada tarefa extinta surgem outras novas. As novas
atividades, contudo, exigirão requalificação técnica, e muitas pessoas que não
forem capazes de se adaptar ficarão sem emprego. Basta lembrar os estragos
causados pelos luddistas na primeira Revolução Industrial ou, mais recentemente,
os protestos de taxistas contra o Uber para imaginar o potencial de confusão
que vem por aí. Ter uma renda básica impediria que essa parcela da população
ficasse desamparada e pudesse se requalificar ou empreender. Também garantiria
a manutenção de um mercado consumidor amplo para dar vazão ao aumento da
produtividade. E neutralizaria efeitos sociais negativos das inovações,
reduzindo o potencial de críticas aos seus principais beneficiários, as
companhias de tecnologia.
Para Martin Ford, futurologista e
autor do best-seller Rise of the Robots: Technology and the Threat of a Jobless
Future (“Ascenção dos robôs: Tecnologia e a ameaça de um futuro sem emprego”),
essa revolução das máquinas não é um cenário tão distante. Algo entre 15 e 20
anos. “Pode ser até mais cedo do que isso. Qualquer tipo de trabalho que seja
repetitivo e previsível será automatizado. Pessoas com um nível de escolaridade
menor são as que estão em maior perigo. Mas cada vez mais pessoas formadas
serão impactadas também”, diz Ford. “A questão é: o que você vai fazer, então?
Muitas pessoas estão percebendo que algum tipo de renda básica universal seja a
melhor solução. E claro, você ouve isso de executivos do Vale do Silício porque
são muito próximos da tecnologia e estão vendo o que está acontecendo. Estão
preocupados, por isso estão dando atenção ao assunto.”
: SEU PROJETO DE RENDA BÁSICA DE CIDADANIA,
TRANSFORMADO EM LEI EM 2004, JAMAIS FOI REGULAMENTADO (FOTO:MARCOS
ALVES/AGÊNCIA O GLOBO)
EMPIRISMO
SOCIAL
Em meio ao crescente debate, uma
série de projetos de renda básica universal vêm sendo estudados e anunciados ao
redor do mundo nos últimos anos. Na Suíça, uma proposta de adoção em escala
nacional chegou a ir a consulta popular – onde foi rejeitada, em meados de
2016. Países como Holanda, Finlândia, Quênia e Canadá têm projetos em fase
inicial de adoção. Cidades da Escócia e da Espanha discutem a ideia. Mas ainda
há um longo caminho pela frente até que iniciativas do gênero sejam adotadas em
escala nacional – se é que um dia serão. O número de pessoas contrárias à renda
mínima universal ainda é muito maior que o de seus defensores – na Suíça, por
exemplo, a ideia foi rejeitada por 77% dos eleitores.
Entre os motivos para isso estão
principalmente questões de ordem moral e financeira, além da percepção de que
exigiria mudanças culturais e políticas tão grandes que é simplesmente
impossível que venha a ser adotada. Segundo os críticos morais, a entrega de
dinheiro de forma regular e sem contrapartidas pode ter efeitos psicológicos
nocivos sobre a população, como o desinteresse pela busca de trabalho e – dá
para acreditar? – incentivo ao vício em drogas. A forma de financiamento, em um
momento em que muitos países estão afogados em déficits fiscais, é outra preocupação.
Muitas questões permanecem de fato
em aberto. O valor ideal dos pagamentos, a melhor forma de entrega do dinheiro
e os efeitos macroeconômicos da adoção em larga escala da renda básica
universal são pontos a serem discutidos, admitem seus defensores. Para eles,
porém, a dificuldade de adoção é tão grande quanto a enfrentada no passado por
ideias consideradas utópicas, como o fim da escravidão, a democracia e os
direitos civis. E já há bons indícios de que os receios no campo moral sejam
infundados. Um estudo assinado por Ioana Marinescu, professora assistente da
Escola Harris de Políticas Públicas da Universidade de Chicago, por exemplo,
mostrou que no Alasca, onde funciona o mais amplo e antigo projeto de renda
básica universal do mundo, o abandono do trabalho foi irrelevante. Em
contrapartida, houve redução no número de internações hospitalares e aumento do
consumo e dos níveis de escolaridade da população.
O estudante americano Kevin
Simmons, de 23 anos, é um exemplo dos efeitos do programa. Ainda bebê, mudou-se
do estado de Washington com a família para o Alasca. Durante toda a vida, cerca
de US$ 1,2 mil eram depositados anualmente na sua conta bancária sem que ele
precisasse fazer nada. Quando terminou o ensino médio, usou o dinheiro para
ajudar a pagar a faculdade. Hoje, cursa design de produto em Los Angeles.
Simmons conta que muitas famílias não têm as mesmas condições que a dele e usam
o dinheiro que recebem para contribuir no pagamento das contas de casa. Mas que
nunca chegou a ver alguém depender exclusivamente dos recursos que vêm do
fundo, criado em 1976 pelo governo com royalties do petróleo – o programa de
renda básica, porém, só começaria a funcionar em 1982. O Alasca, coincidência
ou não, é o estado menos desigual dos Estados Unidos.
Elon Musk
vê no modelo de renda básica a melhor solução para lidar com a fartura de bens
e a falta de emprego geradas pela tecnologia”
Na África, outro experimento
iniciado no ano passado tem mostrado resultados igualmente positivos, ainda que
sobre aspectos diferentes. Ele foi criado para avaliar o impacto da renda
mínima sobre a vida de populações inteiras no longo prazo. A ONG americana
GiveDirectly, queridinha no Vale do Silício, recebe doações ao redor do mundo
e, como o nome bem diz, dá diretamente aos moradores de vilarejos rurais pobres
no Quênia – tão pobres que, em alguns deles, comer em público, “ostentar” a
comida, é considerado falta de educação. Os pagamentos em dinheiro começaram a
chegar a um vilarejo piloto em outubro do ano passado e têm sido usados pelos
beneficiários para a construção de casas, compra de gado, redes de pesca ou,
simplesmente, comida – o que não seria possível de outra forma. Cada
beneficiário recebe cerca de US$ 22 por mês, uma fortuna para os padrões
locais.
Hoje, no vilarejo piloto,
aproximadamente cem pessoas recebem o dinheiro. No segundo semestre, a
iniciativa completa será colocada em prática. Seis mil receberão dinheiro
mensalmente durante 12 anos. Um segundo grupo, de 10 mil pessoas, receberá
mensalmente por dois anos. E um terceiro, também de 10 mil pessoas, receberá o
valor referente a dois anos, mas de uma vez só. A organização quer analisar os
efeitos em cada uma das “amostras”. “Nosso principal objetivo é aprender”, diz
Joe Huston, diretor financeiro da GiveDirectly. “Se você tem uma renda
garantida, esse nível de segurança muda as suas escolhas? Universalidade, ou
seja, dar o dinheiro para todos na população, e não só à parte mais vulnerável
dela, é importante?”
O resultado desses e de outros
programas em fase inicial de implantação servirão de base para o avanço da
discussão nos próximos anos. Sejam eles positivos ou negativos. Como coloca o
futurista Federico Pistono, autor do livro A Tale of Two Futures (“Um conto de
dois futuros”), em sua leitura na plataforma de vídeos TED Talks, ainda não
existem evidências suficientes, nem contra nem a favor da renda básica
universal. Para ele, é preciso testá-la em populações maiores, realmente
representativas, com grupos controle e levando em consideração as diferentes realidades
de cada país, durante períodos de tempo mais amplos. “Precisamos de mais
informações e de informações melhores”, afirma. “Mas, diante dos desafios, não
há por que não tentar.”
Suplicy explica de outro jeito. “A
maior vantagem de um programa de renda mínima é do ponto de vista da dignidade
e da liberdade do ser humano”, ele diz. “É a moça que não consegue dar de comer
em casa para suas crianças e acaba vendendo o seu corpo... É o jovem que,
pelas mesmas razões, resolve ser o ‘aviãozinho’ da quadrilha de
narcotraficantes... Com o básico, essas pessoas vão ganhar o direito de dizer
‘não’.”
Esta
reportagem foi originalmente publicada na edição de julho de 2017 de Época
NEGÓCIOS.
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